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Guerra dos Mascates/I/IX

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Afinal recobrara o mascate a fala. que eles são capazes de praticar estas

— Deveras, Padre João, você julga maldades?...

— Capazes eram, e de mais, se os deixássemos! Mas eles que façam o levante, e lhes mostraremos!

— Um levante?... conseguiu balbuciar o Correia com a língua perra.

— Pois então, homem!... Não está aqui a cópia do manifesto que contam remeter para Lisboa, com o governador?

— Virgem Santíssima!

— De que se espanta você?

— Ah! padre, que desgraça!

— Diga que fortuna!

O mascate não tugiu; porém a cara agalgada retorquiu por ele com uma eloqüência irresistível.

Que mais desejamos nós, os do Recife? Que os fariseus de Olinda ponham em prática seus perversos intentos! Então o senhor governador acreditará no que lhe havemos dito; e fará respeitar a vontade de El-Rei, capturando os mais famosos entre os tais fidalgotes de meia-cara.

— Mas o levante?

— O levante, abate-se! respondeu com fleuma admirável o padre.

— Mas quem? O padre, com os seus congregados da Madre de Deus?

— Nada; lá isso é da sua competência, Miguel Correia, e dos outros da militança. Nós os acompanharemos com as nossas preces...

— Sim; bem fechados no convento!

— Porque assim o exige o meu santo ministério, que por gosto estaria a frente dos nossos guerreiros, para bater a brecha em Olinda.

— A brecha!... A brecha!... Pois olhem: comigo não contem! gritou Miguel Correia furioso a medir de uma à outra ponta a comprida sala com uma desencadernação de passos inconcebível. Não é lá por medo; mas eu não posso ver matar aos meus semelhantes. No fim de contas sou cristão, antes de ser mercador; e uma vila de mais ou de menos na terra não é razão para se estar a gente a comer como cães esfaimados!

Tendo neste solilóquio enérgico feito sua declaração de voto, o nervoso mascate barafustou pela casa adentro, meio peremptório de impedir a réplica do frade e assim melhor se convencer da verdade do próprio dito.

O reverendo o acompanhou com um olhar de zanga:

— Se todos forem deste jaez, estamos aviados. É cada um ir tratando de arrumar a trouxa e deixar a terra aos senhores dela. Perder a melhor ocasião!

— O reverendo, então, acredita que os de Olinda fazem o levante!

— Pois este papel? perguntou o padre surpreso.

— André de Figueiredo, bem sabe o reverendo, que é de todos o mais empenhado contra o Recife. Foi ele quem encomendou o manifesto ao licenciado Davi de Albuquerque, que o ditou, e eu tirei a jeito esta cópia, quando o passava a limpo.

— Então?

— Olhe, sr. padre, pelo voto dele, amanhã já se punha o motim na rua; mas é que a melhor gente está em dúvida por causa do velho Capitão-Mor João Cavalcanti. Então se emprazaram para um dia destes em casa do dito, a fim de acordar-se no melhor.

— Pelo que vejo, ainda não é negócio resolvido! Que pena!

— Agora, uma cousa me parece a mim, que ao reverendo sem dúvida já lembrou. Se o governador, sabendo do manifesto, mandasse prender alguns...

— É verdade; ocorreu-me há pouco. Ótima idéia. Vou já tratar disto!

Ergueu-se o padre e despedindo o rapaz foi em procura do Miguel Correia no interior da casa. Conseguiu explicar-lhe o novo plano ou, como se diria atualmente em linguagem parlamentar, a última fase da questão olindense.

O mercador apoiou com entusiasmo a emenda substitutiva. O expediente da captura efetuada pela tropa de guarnição, em nome de El-Rei, além de não atacar os nervos do capitão do terço, podia ser um poderoso tônico, livrando-o dos constantes sobressaltos em que vivia.

Assentaram pois de comunicar o plano aos amigos que se ajuntavam quase todas as noites na calçada do mercador Viana; e como já estavam a pingar trindades, foram de passeio se encaminhando para ali. A companhia de ordinário começava a reunir-se com o escuro; porém o Miguel Correia tinha suas razões para chegar cedo.

Puseram-se os dois a caminho pela praia fronteira à Madre de Deus, quando os apanhou o toque de ave-maria. Depois de recitada a oração, deram-se mutuamente as boas-noites e, continuando o passeio, foram sair nas imediações da Rua da Moeda. Os quintais separados formavam um beco estreito por onde se entrava da praia para a cidade. Houvera ali outrora uma pequena porta, fabricada pelos holandeses, mas já em ruínas.

A um dos lados da travessa estava o outão com a rótula dos olhos negros. O Miguel Correia estendendo os olhos naquela direção, viu cousa que o pôs alerta. A gelosia estava entreaberta; e próximo da janela, encostado à parede, havia um indivíduo gesticulando. Tornou-se pensativo o homem; e seu companheiro teria reparado na torvação, se não fosse uma figura de retórica das mais retumbantes, e cujo efeito naquele momento ensaiava o padre sobre o mascate, pensando que este o escutava.

Quem era o indivíduo da rótula, já o sabemos. Ainda ali está onde ficou, o nosso poeta; mas parece que não perdeu seu tempo, o maganão. Quando o deixamos, estava ele em suores frios por causa de uns rebates de unhas rosadas que vinham da rótula.

Isso, porém, nada era á vista do que tinha de vir. De repente escapou-se dentre as persianas aquele som mavioso, que só têm duas cousas neste mundo: a brisa no seio da rosa e o hálito nos lábios de uma moça.

Um suspiro!... Haverá na mulher outra expressão que se lhe compare? O olhar é a centelha; o sorriso a corola resplandecente; o beijo a polpa deliciosa. Nada, porém, como essa fragrância melodiosa a destilar no seio da flor celeste, que se abre n'alma da virgem.

Felizmente para o Lisardo caíram do sino do Carmo as primeiras badaladas de trindades. O beato amante logo se pôs em atitude de cumprir com o dever religioso; nunca ele se desbarretara com tamanha presteza, nem rezara com tanto zelo como nesta ocasião. Também a gelosia se recolhera ao batente; e um silêncio respeitoso derramou-se por aqueles lugares já de si pouco ruidosos.

Quando se desvaneceram ao longe pelos ares as últimas e gemedoras percussões do bronze, o Lisardo levou o arrojo ao ponto de voltar o canto do olho para a rótula, prestes a retirá-lo com velocidade de relâmpago. Continuava cerrada a gelosia. Esta observação reanimou o mancebo, que se meteu a falar entre si.

— Com certeza ela não volta mais; foi rezar junto das velhas. Portanto posso me ir escapulindo. Que mais faço eu aqui? Podem bispar-me e depois... Ela mesma talvez não goste, e tanto que já recolheu-se.

Não acabara; rangeu de leve o gonzo da rótula, que se entreabriu; e os olhos negros começaram de novo a cintilar de modo que faria crer estavam apostados com a estrela da tarde, à qual luziria mais.

Lembrem-se daqueles moldes feitos em velho papelão, que as rendeiras pregavam outrora na almofada com espinhos de macaúba, e farão idéia justa da figura do meu pobre Lisardo cosido à parede por aquele molho de crivos.

Instante depois, ressoou ali um canto suave. Os olhos negros falavam:

— Já está escurecendo; são horas de ir para dentro!...

Foi este aparte proferido com certa lentidão pachorrenta de quem procura um pretexto para retardar o cumprimento da obrigação; com o mesmo vagar começou a rótula de fechar-se, e o Lisardo imóvel. Quando cuidava ele ouvir o correr do trinco, abriu-se de novo a banda da gelosia, e os olhos negros se puseram - à janela, mas desta vez zangados, porque diziam:

— Ah! também... Já me vou!...

Estiveram pouco tempo; de repente dali partiu um grito de susto, e a rótula puxada batera com força o batente que a repeliu:

— Ai, Jesus!... Um homem!...

Começando na janela continuou a voz no interior:

— E eu aqui sozinha!

Entraram os olhos negros a jogar o esconde-esconde. Iam-se chegando à rótula, e de repente furtavam-se com uma timidez cheia de feitiços.

O medo e o acanhamento outra cousa não é senão medo de certas ninharias; desaparece como por encanto quando se acha em face de outro maior. É capaz então de ir até a petulância. Se os olhos negros sabiam disto, não posso afirmá-lo; mas que os olhos negros são melhores fisiologistas do que os doutores arvorados em mestres de tal ciência, não haja dúvida.

Assim foi que o Lisardo, vendo a moça ter medo e vergonha dele, se encheu logo de certa importância. A coragem a pouco e pouco lhe aqueceu o ânimo; despregou-se a língua do palato e recobrou alguma flexibilidade. Teve dó dos olhos negros, lembrando-se da aflição que neles havia de produzir sua audácia.

Tossiu o nosso Lisardo; afinou de leve a garganta, e com o gesto mais arredondado, entrou a recitar para umas estrelas defronte:

DÉCIMA!

disse ele com voz de epígrafe e prosseguiu:

Entre um morrer e viver
Que me assalta a todo instante,
Traz-me sempre uma inconstante
Só constante em meu sofrer.
Quando me cuido morrer,
Dá-me Belisa uns carinhos;
Torno à vida aos bocadinhos,
Eis logo me deita uns olhos
Que o foram, mas já são molhos

De enfados por entre espinhos.

Apenas começou o recitativo, os olhos negros bruxulearam através da gelosia, e foram a pouco e pouco se enfiando tanto pelo gradil, que já se via junto deles uma testa branca de leite e um narizinho afilado do mais puro tipo pernambucano.

— Ai, ai!... murmuraram no fim os lábios que se adivinhavam em uma sombra rósea por entre o crepúsculo da rótula.

Compreendeu Lisardo que este monossílabo suspirado era a resposta eloqüente à sua décima; e que devia ele, para travar o diálogo, replicar. Mas não se tendo preparado, ficaria em seco, se lhe não ocorresse uma lembrança feliz. Repetiu os versos com um acionado mais correto.

Desgraçadamente desembocava pelo beco o Miguel Correia com o padre. Ao espanto da rótula que fechou-se de repente, percebeu o poeta a causa. Com tal cara de estatelado ficou ele, que o Miguel Correia sentiu uma agastura no estômago, e coseu-se ao reverendo. Mas, a distância suficiente, voltou-se com um gesto mal-encarado e escarrou duas vezes.

— Que lhe parece aquele sujeito encostado à rótula, Padre João? perguntou ao frade em dobrando o canto.

— Não reparei, não, homem. Mas então desconfiou de alguma cousa?

— Eu sei!. .. Se a menina estava na rótula, o caso não é para graças. É preciso que indague disto?

— Quer você meu conselho? Não indague de cousa alguma.

— Essa é boa. Então se a rapariga andar de namoricos pelo quintal, eu não devo curar disso?

— Para quê? respondeu o frade com um riso magano. Se por força você tem de casar, não é melhor que ignore o mais? O que olhos não vêem, coração não sente. O Viana ajustou dar-lhe a mão da menina quando ela entrar nos vinte anos; e eu, é preciso que saiba, já me preparei para abençoar o consórcio e trinchar o peru das bodas. Portanto, que mais quer o amigo?

— Quero saber a casta da mulher que levo para casa.

— Lá Isto nunca há de saber, nem que viva com ela cem anos.

— Mas em todo o caso sempre será bom advertir o pai.

— Disso me incumbo eu, como capelão da casa.