Guerra dos Mascates/I/VII
Seriam 5 horas da tarde.
Os dois companheiros se tinham ido; ficara o poeta de novo solitário na erma praia. Com pouco levou ele a cabo a décima principiada. Repassaudo-a então uma e muitas vezes na memória, tratava de a limar com uma pachorra horaciana.
Nesse trabalho, avançara contornando a praia na direção de Fora de Portas. Aí desdobrava-se um painel encantador. Na cúpula, dossel magnífico de ouro franjado a púrpura; embaixo, uma alcatifa imensa de chamalote azul recamada de brancos lises. No centro, um peristilo majestoso formado por grupos de elegantes colunas e rematado em ogiva pelas verdes arcadas.
As tintas deste deslumbrante painel dava-as o sol no ocaso, o mar em bonança e os ramalhetes dos coqueiros, que ensombravam a formosa ilha desse nome, também chamada do Nogueira. Esse berço gracioso de palmeiras,. com as oscilações que a brisa da tarde imprimia às longas hastes e aos frondosos penachos, parecia embalar-se no seio das ondas.
Aquém apareciam as ribas arenosas onde brinca o travesso Capiberibe tecendo lindos meandros e cingindo as quintas pitorescas do Monteiro. Finalmente pelo mar estendia-se o negro cordão do recife. Enroscando-se pelos abrolhos e cobrindo-os de grossos rolos de espuma, davam as vagas aquele dorso granítico feições de enorme serpente do mar, preposta à guarda das formosas hespérides de Pernambuco.
Passava o Sr. Lisardo de Albertim em face de todos estes primores da palheta divina, sem os ver sequer. Não é isso de estranhar em poetas, anomalias de carne e osso que fazem o desespero dos fisiologistas e dos alfaiates.
Mais deliciosos que todos esses lanços de vista sobre o mar, achava ele uns tabuleiros de mata-pasto que bordavam a areia nessas abas da povoação, destacando sobre as faxinas das cercas vizinhas. Aquelas varinhas ligadas com embiras tinham especial encanto para o nosso poeta, que enfiava por elas uns compridos olhos e deleitava-se na contemplação... do que, não sei eu; mas ali não havia senão umas galinhas a ciscar, umas goiabeiras encarquilhadas e umas panelas de borco no terreiro.
Pior foi quando bruxulearam entre a faxina as dobras de uma saia azul de algodão tecido na costa da Mina, em África. Nunca vestuário de baile, apontoado por mãos francesas e recheado de meia dúzia de ninharias parisienses, com esdrúxulas designações, objeto da pasmaceira da gente do tom, teve no salão do Cassino poder igual ao daquela saia, para excitar em tão alto grau as emoções de um poeta.
Aquele azul era celeste; uns gadanhos de carvão e gordura o tisnavam aqui. e ali, mas eram justamente esses laivos que traziam presa a alma do mancebo. Tinha a saia um remendo de serafina; quando o percebeu, ele não se pôde conter que não soltasse uma exclamação de júbilo e ficasse em um êxtase indefinível.
Assim, agachado entre o mata-pasto, com os olhos naquela bendita aparição esteve bom pedaço. A saia tinha-se entrouxado perto das marmitas; e pelo movimento destas, assim como pelo chiar do punhado de palha e coaxar d'água, parecia haver ali uma lavagem de panelas.
De repente o poeta começou a tremer; batia-lhe o coração com palpitações violentas.
Dera causa a essa repentina comoção um novo incidente. Observara o Lisardo que dois tornozelos pretos e suas competentes canelas moviam-se debaixo da tal saia, na direção da cerca, onde havia uma portinha para o mata-pasto, bem defronte do nosso rimador. Em sobressalto, lançou ele os olhos ao redor para ver se o espreitavam e escondeu-se por trás das moitas.
A faxina da porta entreabriu-se. Uma preta de meia-idade, que tinha jeitos de cozinheira, estirou o pescoço pela fresta e olhou para fora. Não vendo o que esperava ia a recolher, quando ouviu rumor na moita e cuidou ver um vulto agachado. Logo após soou um psiu baixinho, e logo outro mais alto; afinal animou-se a aparecer o nariz do poeta e a mão do mesmo acenando.
Poupo ao leitor os trejeitos, negaças e requebros que de parte a parte se trocaram os dois antes de chegarem finalmente à fala.
— Está bom, sô moço, acabe com isso que eu tenho que fazer.
— Então, Benvinda...
A língua do poeta tremia como folha de bananeira.
— Então, você falou?...
— Pois então! Não falara!...
— E ela que disse?
— Que sim.
Aqui teve o Lisardo um soluço que de todo embargou-lhe a voz. Só a muito custo recobrou a fala, não a natural, mas uma sumida e fanhosa, que era pena ouvir.
— Deveras, Benvinda? Ela disse que sim? ...
— Disse, sô Lisardinho.
— Como foi que você falou? Onde estava ela?
— Meio-dia, quando ela veio no quintal apanhar goiaba, eu cheguei devagarinho e perguntei assim: "A menina Belinhas sabe?... Sô Lisardo, aquele moço que lhe manda os versos, tem um segredinho para dizer à menina."
— E que fez ela então, Benvinda? Conte-me tudo, tintim por tintim.
Deu uma risadinha gostosa e ficou vermelha que nem um tomatinho; depois deitou a correr para a cozinha.
— E não respondeu?
— Nem palavra.
— Mas então como disse você... Ah! Benvinda, que não imagina o mal que me fez.
— Espere lá, moço, que ainda não acabei. Quando ela chegou na porta da cozinha, voltou-se, chamando pelo meu nome, e bateu três vezes com a cabeça, assim!
— Adorada Belisa! murmurou Lisardo engalfinhando as mãos e pondo os olhos no céu.
De repente assaltou-o a dúvida:
— Mas, Benvinda, está você bem certa que ela consentiu!
— Pois, moço, a menina é lagartixa para bater com a cabeça à toa?
— Quem sabe se ela queria dizer Outra cousa! Talvez você não percebesse bem.
— Pois eu não sei o que faço? Sô Lisardinho em casando com a Belinhas, me põe forra logo, não é assim?
— Antes disso mesmo. Olhe; eu tenho um planozinho em que ando cogitando há dias. Vou mandar um memorial em verso ao Duque de Cadaval, pedindo a vara de meirinho do sertão que está vaga. Em apanhando o provimento, como espero, trato logo de vender o ofício por boas patacas; e então pode contar com a alforria. Se quer, empenho-lhe os meus sonetos, que já andam em cento e quarenta.
— Nada; não precisa; basta que prometa!
— Dou-lhe minha palavra.
— Então já se vê que eu hei de tratar do meu benefício, fazendo que sô Lisardinho fale cá á menina. Escute: não tardam trindades. Vá-se chegando aqui pelo lado da casa, encostado à última janela, e espere um instantinho, que eu vou arranjar tudo.
— Agora mesmo? exclamou o poeta espavorido.
— Já; é aproveitar a ocasião, enquanto as velhas estão ocupadas fazendo farténs lá dentro, porque esta noite ai vem cear muita gente. Se não for hoje, ninguém sabe quando será.
— Mas pode ela não gostar!...
— Deixe por minha conta.
— Não, o melhor é...
O diálogo foi interrompido por uma voz pachorrenta que chamava em escala cromática:
— Benvinda!... Benvinda!... Benvinda!...
O Lisardo quis meter-se pela terra adentro só de ouvir aquele chamado. preta acudiu às pressas, acenando-lhe de longe que fosse para o lugar aprazado.
Começa agora um quarto de hora que eu desisto de historiar; um livro era mínimo espaço para descrevê-lo. O célebre quarto de hora de Rabelais, em que a barriga cheia curtia o martírio da bolsa vazia; e aquele outro chamado quarto de hora de pontualidade que, a título de cortesia, suportam os convidados de certos jantares marcados para as quatro e postos às sete; nada disso se compara ao transe referido.
Quero ver contudo se por meio de uma imagem dou ligeira idéia.
Não há quem não tenha visto voar no seu terreiro uma pena de galinha. Ludibrio do vento, o sutil objeto sobe e desce, vai e vem, foge e torna, avança e recua, gira sobre si, pára e move-se, para afinal esbarrar-se contra algum obstáculo.
Pois em vez de pena, imaginem um rapaz enamorado; e ajuntem em alta dose os tremores nervosos, os súbitos calafrios, os suores gelados, de mistura com os repetidos fogachos; e terão uma idéia do que foi o tal quarto de hora de espera para o nosso Lisardo.
Afinal o encontramos na parede do oitão, uma braça distante da janela, e oscilando ainda como uma pêndula entre o desejo de ficar e o ímpeto de fugir.
De repente a banda mais próxima da rótula entreabriu-se; dois dedos mimosos enfiaram pela gelosia, e um olhar negro e aveludado filtrou das estreitas frestas como um esguicho de mil centelhas miudinhas, desferidas por todos os lados. Viu Lisardo o enxame de faíscas e ficou deslumbrado e quedo.
Vão-se acabando aquelas antigas rótulas que escondiam tão guapos amores; se algumas ainda restam pelas grandes cidades, já perderam o suave perfume de castidade que dava a essas flores recatadas um arzinho de violetas. Agora a rótula será canteiro de arrudas e mentruzes.
Muitos inventos modernos se introduziram em compensação: os véus de filó, os crepúsculos artificiais, as máscaras de cetim, as gazes transparentes e outros engenhosos sistemas do ver e do não ver; mas a rótula, cá para mim, há de sempre deixar saudades. Uma linda moça através da gelosia é a imagem das mais belas criações de Deus, a flor entre a folhagem, a estrela entre o azul.
Mas nada como o encanto que a rótula dava ao olhar! Quando se movia brandamente embalada por mão descuidosa, parecia que estava peneirando aqueles relanços d'olhos em um pó sutil. Se Deus me concedesse pulverizar uma estrela e passá-la por um crivo bem fino, pudera eu pintar a trepidação graciosa de uns olhos negros por entre a rótula.
Esquecia-me advertir. Olhos para rótula deviam de ser negros. Os azuis, querem-se límpidos, serenos e desnublados, como os puros céus de uma alma angélica. Os outros, castanhos, pardos, verdes ou gázeos, que arranjem-se como puderem e melhor lhes for; porém, escusam de ter saudades da rótula.
Eram pois uns olhos negros, do mais belo negro, que se coavam pela rótula do oitão.
A princípio derramaram-se em torno; mas logo recolheram para se atirarem ao mancebo, como uns punhados de alfinetes. Devia de ser assim realmente, porque o pobre Lisardo sentiu o rosto a fervilhar.
Tão flexível antes, qual folha de cana, estava agora o nosso poeta estatelado à parede e rijo como estafermo. Fincava as costas ao muro, a ver se podia sumir-se por ele adentro; os olhares esparramados pelo mato fora tinham jeito de disparar; e de certo houveram já deitado a correr por aí além, caso não estivessem amarrados ao poste.
Os olhos negros e os dedinhos brancos cuidaram que os não tinha percebido o poeta. Abriu-se um cantinho à rótula; tornou logo a cerrar, rangendo de leve; buliu a aldraba devagarinho; enfim ouviu-se um rufo mavioso de unhas rosadas no gradil.
Estes rumores significativos mais espavoriam o poeta. O ríspido som do gatilho de um arcabuz que lhe apontassem ao peito, não lhe causara por certo maior pavor.