Guerra dos Mascates/II/IX
Há quem pense que nada se move neste mundo sem licença da mulher.
Do mais não sei; mas de guerra posso afirmar que nunca as houve, nem é possível haver, quando não o queira a soberana saia.
Podia desfiar aqui um rosário de provas tiradas da história, além de um milhão de argumentos fisiológicos; mas isso nos levaria muito longe, e para o nosso caso basta o que se passava àquela hora aí na casa do Miguel Viana.
A sala estava cheia do mulherio que se atulhara pelos estrados, como era uso naquele tempo, e não motejem as moças de agora dessa moda de sentarem-se as nossas bisavozinhas com as pernas cruzadas, que se elas cá tornassem, não se haviam de rir menos vendo suas bisnetas ainda franguinhas e já repimpadas em cadeiras de alto espaldar como se fossem umas abadessas.
Sentada em tamborete baixo, a Senhora Rufina presidia ao areópago feminino.
— Mas, gentes, não acham que já é tempo de dar uma esfrega nessa súcia de pés-rapados? dizia a Senhora Rosaura que estava mordida com a escapula do filho.
— Não se agonie, senhora, que havemos de ensiná-los em regra; mas é preciso fazer as cousas com jeito, porque lá de barulhos não me falem. São capazes de meter os nossos homens na alhada, e tirar-lhe por aí a cabeça de uma cutilada! Então o meu, que já é tamaninho!
— Enquanto isso, vão os de Olinda roubando a seu salvo nossos filhos porque não têm quem lhes vá à mão! retorquiu a Senhora Rosaura com azedume.
— Ora, comadre, isto foi uma vadiagem do traquinas do rapaz que é mesmo da pele do cão. Outro dia, que não fez o demoninho lá em casa? Se ele tem bicho carpinteiro, sou capaz de jurar. Pois não, senhora!
— É mesmo! O capetinha não é capaz de assentar o sim-senhor um instante que seja, disse a velha Engrácia.
Carecemos de advertir ao leitor, que a Senhora Engrácia tinha uma linguagem um tanto espevitada; costumava empregar alguns termos em uma acepção peculiar sua.
Muitas locuções pitorescas que ainda hoje vogam pelo norte foram inventadas pela Senhora Engrácia, que até do português pouco sabia, e dizem certos sabichões que para cunhar palavras, se precisa saber latim, grego, e ser versado nas línguas vivas e mortas. Que tarelos!
Agora o que ela chamava sim-senhor, adivinhem se puderem, que a crônica neste ponto é omissa.
— Mas deixe estar, continuou a Rufina, que tudo se remedeia; eu já falei ao primo. Rebelo, que prometeu-me trazê-lo pela orelha; porém, não consinta que lhe ponha mais o pé em casa; de lá mesmo é arrumá-lo no primeiro navio que sair para o reino.
— É o que o Sr. Miguel Viana ia fazer por conselho do Ajudante Negreiros, quando o capetinha parece que desconfiou, e escafedeu-se; e logo para meter-se com aquela gente! Assim o agarre eu, como vai direitinho para Lisboa.
Ouviu-se um suspiro, que fez a Senhora Rufina lançar uma olhadela para o canto donde se escapara aquela tímida queixa. Ali estavam juntinhas a Marta e a Belinhas, que encontravam-se essa tarde pela primeira vez depois dos importantes sucessos de que foram teatro a janelinha do sótão e a rótula do beco.
Imagine-se pois o que não se tinham a contar as duas camaradas, e como eram curtos os momentos para sua garrulice. Cada uma começou dez vezes a história que a outra, impaciente, interrompia para continuar a sua; e assim aos pedaços, alinhavando aqui e cerzindo ali, conseguiram ambas dizer, não quanto queriam, mas bastante para o caso.
Acabava Belinhas de comunicar à amiga que o Lisardo àquela hora devia estar ao pé da cerca esperando vê-la na rótula; e Marta lembrava-se do Nuno que andava por longe, quando a ameaça da Senhora Rosaura de mandar o filho para Lisboa, arrancou-lhe aquele mavioso suspiro.
— Eu cá, se o caso fosse comigo, havia de remeter o pequeno para Lisboa, mas era depois de ter dado o troco aos tais fidalgos de meia-tigela.
Essa observação vinha da velha Engrâcia, que era uma das mais decididas do mulherio recifense.
— O troco, eles o hão de ter, que lho há de dar o governador, e com usura, tornou a Rufina como quem lambia por dentro.
Não se rendeu a Engrácia:
O governador é um trapalhão que não ata nem desata. Olhe, senhora, o verdadeiro era untarem as unhas ao Camarão, e então veriam a pisa que lhes ele assentava, na cabralhada de Olinda, e não lhe doessem as mãos, que é do que eles andam muito carecidos.
— Que o governador é remanchão, isso é, acudiu a Josefa do Cartacho em tom de importância. Fosse ele outra casta de homem que já o Recife estava cansado de ser vila.
— Apelo eu! tornou Rufina. Que estas cousas assim de supetão, senhora, sempre saem aferventadas. O D. Sebastião de Castro, fique com esta que eu lhe digo, é manhoso, e sabe o nome aos bois, como diz o meu homem. De mais a mais, enquanto ele estiver por nós, ainda que vá empalhando, somos do partido do rei, que sempre serra de cima. Por isso é que eu sustento, minha gente; nada de barulhos; que tudo se há de arranjar com jeito e paciência. Quem é que vai meter seu gadanho no fogo, quando pode tirar a sardinha com a mão do gato?
Um zumbido de aprovação acolheu o discurso da mulher do almotacé, prova de que predominava no concílio feminino o partido da paz. Efetivamente as recifenses, apesar de seu vivo desejo de verem criada a sua vila, não dissimulavam que os maridos, pais e irmãos, destros em manejar a vara e o côvado, fariam triste figura com as armas na mão; além de que não eram de todo insensíveis à galhardia dos mancebos de Olinda, os quais preparando-se a vencer os mascates, se rendiam aos requebros dos olhos feiticeiros das lindas mercadoras.
— Tá, tá, tá! treplicou a Engrácia, oposicionista acérrima. Vá-se fiando no bicho, que depois eu lhe contarei uma história. Olhem, gentes, eu sempre enquijilei com homem sonso.
Neste ponto barafustou pela casa dentro a Inacinha, a quem vinha comendo a língua a novidade que trazia.
— Ora muito bem chegada! disse a Rufina.
— Mais vale tarde do que nunca! observou a Rosaura a rir.
— Para a nova que trago, antes nunca chegasse! tornou a Inacinha com ar de importância.
— Que nova é essa, mulher? perguntou a Rufina.
— Que é?... Que é?... Ora adivinhem!
— Despache-se de uma vez, criatura. Não esteja ai a resmoer a gente! acudiu a Rosaura, que já se achava sobre brasas.
— Que há de ser? Um desaforo!...
— Da ralé de Olinda?
— De quem mais?
— Mas então que foi?
— A cousa é de cantiga. Eles mandaram pôr em trova... Já me esquece o nome do cujo... Mandaram pôr em trova para andar na boca do mundo.
— Ó mulher de meus pecados, não falarás?
— Que estou eu fazendo, dés que entrei? Agora se não me deixam acabar, não tenho eu a culpa.
— Pois acabe..
— Diga a trova.
— Isso, não digo. Então a gente mete assim no caco de repente uma embrulhada de versos?
— Neste caso o que trouxe você, gente? perguntou a Rufina.
— Está o que é! disse a Inacinha apresentando o bilhete que tirou do seio.
— Ah!
Murchou a. orelha ao mulherio que estava à escuta, com as ouças afiadas para a novidade. Naquele tempo ainda não se contava entre as prendas de uma boa dona de casa, o saber ler e escrever: era isso luxo fidalgo, que não chegava a todos. Não se estranhe pois o logro que sofreu nesse momento a curiosidade feminina.
— Marta! disse a Rufina, passado o primeiro pasmo. Toma este papel e lê o que está aí.
Ergueu-se a menina para obedecer à mãe, e aproximou-se da cantoneira onde bruxuleava a candeia. Belinhas acompanhara a amiga e por cima do ombro a ajudava a soletrar as palavras escritas em bastardinho.
Estavam ambas trêmulas e com as faces a arder; principalmente a que tinha de fazer a leitura.
Não era qualquer bagatela esta exibição. A travessa Marta não sentiria tão grande acanhamento, se mocinha de hoje, no dia seguinte ao deixar o colégio e as calças curtas, fosse obrigada a cantar em sala de baile a mais difícil cavatina de Rossini.
Decorrido o tempo necessário para que as duas meninas soletrassem todas as palavras e chegassem ao fim do papel, a Rufina interpelou a filha:
— Anda, menina!
— Senhora mãe!... balbuciou Marta.
— Lê!
— É uma cousa muito feia!
— Mas o que é? perguntaram as outras tinindo de curiosidade.
— Eu não sei!
Que fazes ai com os olhos no papel?
— Lê tu, Belinhas!
— Eu! Deus me defenda!
— Marta, deixa-te de dengos. Lê, que te mando eu.
Quis obedecer a menina; mas a palavra que lhe espontava no lábio gentil, recolheu-se num assomo de pudor.
— Não posso!
— Oh! buginica! disse Rufina ameaçando de longe a filha com um coque.
— Olhem lá, gentes, não seja alguma brejeirada! observou prudentemente a Josefa.
— É mesmo! Pode sair daí uma sujidade!
— Que partes são estas agora! acudiu a Inacinha. Eu cá sou mulher de andar com porcarias?... AI o que tem demais é uma história cabeluda!
— Estão vendo!... Tem história cabeluda, senhora! exclamou a Josefa.
— Tenha o que tiver, há de ler, ou eu não me chamo Rufina, gritou a mulher do almotacé levantando-se.
— Eu pelo sim, pelo não, vou tapando meus ouvidos, disse a Josefa que estava latejando por saber.
— Agora é que te quero ver, sirigaita! dizia a Rufina ameaçando a filha com um beliscão. Se tiveres o atrevimento de me respingar, com certeza te meto no convento, não sei que diga! Anda, deita já para aí.
Afinal decidiu-se a Marta, que dum fôlego, antes que se arrependesse, leu de afogadilho o conteúdo do papel.
Todo o mascate é patife,
Labrego, cara de Judas;
E as mulheres do Recife
Tem as pernas cabeludas.
— Desavergonhados! gritou a Senhora Rufina.
— Desaforo!
— Já se viu um atrevimento igual?
A grazinada de um bando de maritacas, em roçado de milho, quando lhe disparam um tiro, pode dar uma idéia da algazarra que levantou no congresso feminino a quadra fatal, que ia conflagrar Pernambuco.
Chamar os mascates de patifes, labregos, judas e cousa pior, era sem dúvida uma insolência; mas não havia estranhar na canalha de Olinda que ela se despicasse dos epítetos afrontosos que também não lhe poupavam os recifenses.
O que, porém, não tinha nome e tomava as proporções de um atentado sem exemplo, era dizer-se que as damas do Recife tinham pernas cabeludas. Todos os tratos da inquisição não bastavam para punir este crime inaudito, que só podia ser expiado na fogueira.
Enquanto serena o alvoroço produzido pela leitura, aproveitamos para dizer a origem daqueles versos.
O Nuno, que era um grande abelhudo, certo dia espiando pelo buraco da fechadura, tinha visto na alcova da mãe uma perna tão cabeluda que a princípio lhe pareceu de tamanduá. Mas logo com espanto descobriu que pertencia a certa pessoa que nesse dia estava de visita em casa da comadre e fora ao quarto para concertar a saia.
Passando-se a Olinda onde a D. Severa o atanazava de perguntinhas, escapuliu ao rapaz a descoberta da perna cabeluda, que a dama muito apreciou encarregando logo ao Lisardo de a pôr em verso. As torturas por que passou o nosso poeta nessa ocasião não se descrevem; tentou ele em princípio descorar o epigrama, mas a ninfa olindense obrigou-o ponto por ponto a rimar aquela quadra em que ofendia a formosura sem par da sua adorada Belisa.
A rima foi recitada no serão do Capitão-Mor Cavalcanti e muito aplaudida. No outro dia teve o Cosme vento da cousa e logo tratou de a meter no bico da gente do Recife, na esperança de ir assim cada vez mais turbando as águas onde contava pescar. Do como o fez, já sabemos.
— Só enforcados! dizia a Josefa.
— Qual enforcados, senhora! Ainda picados como cabidela para fazer pastéis, ou assados na grelha do Santo Oficio, não pagam esse desaforamento, exclamou a Rufina.
— Eu como não tenho perna cabeluda!.... disse a Inacinha.
— Quem fala nisso agora, mulher? exclamou a Rufina furiosa. Tenha ou não, é o mesmo! Há de andar como as outras na boca do mundo.
— Mas quem foi o renegado que fez este verso?
— Espere!... Não me lembro mais do nome!
— Pois indague, que ele é quem há de tirar a prova do pelourinho de nossa vila. Já me estou regalando de o ver açoitar!
— Eu, se o encontrasse, arrancava-lhe os olhos com estas unhas!
No meio da tempestade levantada pela rima do Lisardo, tinham-se esgueirado da sala as duas meninas, que foram direitas ao quarto de Belinhas.
— Você não disse que ele está esperando? perguntou a Marta.
— Penso que está! respondeu corando a outra.
— Então é chamar?
— Eu, Marta?
— Pois, Belinhas, quem há de ser?
— Tenho vergonha!
— Então eu chamo por você.
E a Marta caminhou para a rótula com ar decidido.
— Está bom; eu vou! tornou Belinhas mais animosa.
Com efeito entreabriu a rótula, e viu junto ao oitão uma sombra.
— Anda, Belinhas!
A menina deu um psiu tão sumido que não se ouviu a dois passos. Marta, porém, repetiu o sinal com força muitas vezes.
O nosso Lisardo, assim avisado de repente, esteve a abalar dali, tonto com a aventura. Mas a voz impaciente da filha do almotacé o colou à parede.
— Venha!...
O nosso poeta ficou imóvel.
— Venha já!...
Parou-lhe a respiração:
— Senão fico zangada!
Foi preciso despachar a Benvinda para trazer à fala o poeta, que só depois de mil sustos e arrependimentos resolveu-se a acompanhá-la.
Quando ó Lisardo penetrou na alcova, a Belinhas o esperava encostada na cabeceira da cama, e a Marta escondida por trás do cortinado ficara de espreita, para animar a amiga a quem ensinara o recado.
Saiu porém a cousa ás avessas; porque o Lisardo depois de duas topadas que deu ao entrar, e que o iam levando ao chão, embutiu-se no canto do trumó como se fosse uma figura de pau; e a Belinhas repuxando as sanefas do cortinado, foi-se enrolando de modo que não se lhe via senão a ponta do pé.
Nesse jeito achou-se Marta descoberta, e vendo que os dois namorados não tugiam, assentou ela de tomar a si a tarefa e com a sua natural e graciosa petulância dirigiu-se nestes termos ao Lisardo imóvel e cabisbaixo.
— Saiba o Senhor Lisardo de Albertim que não veio aqui para ficar assim amuado num canto. Quando Belinhas o chamou foi para experimentar os seus extremos, porque tendo vindo lá de Olinda uns versos em que se dizem cousas muito ruins das moças do Recife, ao senhor, que se rendeu à formosura de uma dessas tão maltratadas, cabe responder.
Estremecera o Lisardo lembrando-se da quadra que a D. Severa o obrigara a fazer, e julgou-se perdido. Marta continuou, mostrando-lhe os aviamentos de escrever postos sobre o trumó.
— Ai está a pena e todo o mais recado de escrita. Arranje-se, que daqui não sairá sem estar pronta a rima. Há de ser uma cousa que belisque as tais bugínicas de Olinda. O senhor há de dizer, ouça bem, que elas são magras como um fuso; e que todo aquele espalhafato que mostram não é nada senão uma gaiola coberta de panos. Está entendido, senhor poeta? Pois trate de desempenharse da obrigação; e veremos então se os seus rendimentos por Belinhas são sinceros, e qual recompensa merece a sua fineza.
Inclinou-se o Lisardo ao trumó, e a musa da pirraça, sob a figura travessa da gentil Marta, inspirou-lhe contra D. Severa estes versos que, embora alusivos a todas as olindenses, eram todavia mentalmente dedicados à ninfa:
Escorridas como um fuso,
As damas de Olinda são;
Por fora aquele esparrame,
Por dentro é só armação
De pano, d'osso e arame.
Tendo lido a quintilha, a Marta aplaudiu com uma risadinha brejeira, e puxando de dentro do cortinado a mão de Belinhas, que resistiu de leve, a deu a beijar ao nosso poeta.
— Isto é para o senhor; agora para o Nuno.
A menina tirou do seio um raminho de alecrim, que entregou ao poeta, mas logo pareceu arrepender-se:
— Não, não lho dê; guarde para si.
Sentiu umas cócegas a Belinhas, que entreabrindo o cortinado acudiu mui pronta:
— Dê ao Nuno, dê sim, senhor, que isso não lhe pertence.
— Pois dê, se quiser; mas não que eu mande.
Partiu afinal o Lisardo; e as meninas voltaram à sala.
Quando ali entraram, acabava o congresso feminino de resolver a guerra a todo transe, distinguindo-se entre as mais belicosas a Senhora Rufina, que pouco antes se mostrara tão prudente e conciliadora.
Mas a história da perna cabeluda posta em verso tinha abespinhado a venerável matrona, que desde esse momento não respirou senão vingança, e tanto fez que terminou por desencadear a guerra dos mascates, apesar de todas as manhas de D. Sebastião.