Hamlet: drama em cinco actos/Acto primeiro/Cena III
Já embarcaram os meus creados e roupas. Adeus, minha irmã; quando ventos propicios encherem as vélas ao navio que me leva, espero que com a minha ausencia não esfriará a tua amisade, e que me darás novas tuas.
Duvídas porventura, irmão?
Quanto ao que respeita a Hamlet e á sua frivola amisade, considera-a como uma moda ephemera, um capricho dos sentidos, uma violeta da primavera, precoce mas passageira, suave mas fenecendo ao desabrochar, e cujo perfume dura um minuto apenas.
Só um minuto?
Só, acredita-me, porque o teu desenvolvimento não é só nos musculos e no corpo; á medida que o templo toma proporções mais vastas, tambem se expande o espirito e a alma. É possivel que te ame agora, que nenhuma macula, nenhuma deslealdade offusque a pureza dos seus sentimentos; mas acautela-te, porque na posição que occupa é-lhe vedada a propria vontade, é escravo do seu nascimento. Não póde, como os outros homens, escolher só por affeição, porque á sua escolha estão ligados o bem-estar e a salvação do estado; por isso deve subordinal-a ao voto e á approvação da nação de que é chefe. Se, pois, te fallar de amor, assisadamente usarás, não acreditando senão o que a sua posição lhe permitte offerecer, vistoque a sua vontade deve ser a vontade da nação. Pensa bem, que mancha para a tua reputação, se prestasses ouvidos por demais credulos, ao encanto das suas fallas, se envenenasses tua alma, se abrisses o cofre da castidade ás suas audaciosas instancias. Acautela-te, Ophelia, acautela-te, querida irmã, luta com a tua affeição para vencer as settas e os perigos dos desejos. A virgem prudente já é assás prodiga se patenteia a sua belleza aos raios lunares; a propria virtude não escapa aos golpes da calumnia; o verme roe as filhas predilectas da primavera, antes das flores desabrocharem; e é na aurora da vida, regada pelo puro e limpido orvalho, que ha mais perigo para a flor da castidade. Sê, pois, circumspecta, a melhor protecção é o receio do perigo; a juventude é para si mesma um perigo, se não trava luta com outros maiores.
Em meu coração encerrarei, como um preservativo, a tua salutar lição. Mas, querido irmão, não sejas tu, como certos pastores sem virtude, que indicam ás suas ovelhas o caminho escarpado e espinhoso que conduz ao céu, emquanto elles, libertinos, fogosos e sem pudor, trilham o caminho das flores, da licença, e são a antithese das suas palavras.
De mim não te arreceies: já devia ter partido; eis meu pae.
Uma dupla benção é um beneficio duplo; abençôo a occasião de me despedir segunda vez de ti.
Ainda aqui, Laerte? para bordo, para bordo. Não te envergonhas? Teu navio só te espera para velejar. Recebe a minha benção, e grava na tua memoria os seguintes preceitos. Guarda para ti o pensamento, e não dês execução apressadamente aos teus projectos; medita-os maduramente. Sê lhano sem te esqueceres de quem és. Quando tomares um amigo cuja affeição tenhas experimentado, liga-o a ti por vinculos de aço; mas não dês confiança irreflectidamente. Faze por evitar questões; mas se o não podéres conseguir, conduze-te de maneira que fiques sempre superior ao teu adversario. Ouve a todos, mas sê avaro de palavras; escuta o conselho que te derem, forma depois o teu juizo. No teu trajar sê tão sumptuoso, quanto t'o permittam os teus meios, mas nunca affectado; rico, mas não offuscante; o porte dá a conhecer o homem, e n'esse ponto, as pessoas de qualidade em França revelam um gosto primoroso, e o mais fino tacto. Não emprestes, nem peças emprestado: quem empresta perde o dinheiro e o amigo, e o pedir emprestado é o primeiro passo para a ruina. Mas sobre tudo sê verdadeiro para a tua consciencia, e assim como a noite se segue ao dia, seguir-se-ha tambem, que o teu coração jamais abrigará falsidade. Adeus, que a minha benção selle em teu coração os meus conselhos.
Despedindo-me, humildemente vos beijo a mão, meu pae.
Não tens tempo que perder, teus creados esperam-te.
Adeus, Ophelia, recorda-te das minhas palavras.
Fechei-as no meu coração; dou-te a chave, guarda-a.
Adeus. (Sáe.)
Que te disse elle, Ophelia?
Com licença de meu pae, fallou-me a respeito de Hamlet.
Folgo que o fizesse. Disseram-me que ultimamente Hamlet tem tido comtigo frequentes entrevistas, e que tu não te esquivas ás suas frequentes visitas. Se assim é, e creio na informação que me deram, devo dizer-te que não encaras a tua posição com a lucidez que convem a minha filha, e que a tua honra exige. Dize-me a verdade, o que ha?
Protestos de amor.
Nem sei, senhor, o que devo pensar.
Pois bem, eu t'o digo. É necessario que sejas bem creança para crer uma realidade os seus protestos, de cuja sinceridade devéras duvido. Não te deprecies assim; seria uma loucura.
O seu respeito foi inseparavel das suas phrases de amor.
E tu acreditas, pobre louca.
Firmou as suas palavras com os juramentos mais sagrados.
Assim arma o caçador os laços á avesinha innocente e incauta. Sei que, quando o sangue ferve, a nossa bôca nunca se nega a protestos e juramentos. Minha filha, estes lampejos que dão mais luz que calor, e cujo brilho é ephemero, nunca os tomes por verdadeira chamma de amor. A datar de hoje, não malbarates tanto a tua presença virginal; difficulta mais as entrevistas, que não baste pedir para as obter. Quanto ao sr. Hamlet e á confiança que n'elle podes ter, considera que é joven, e que póde tomar liberdades de que depois tenhas que te arrepender. N'uma palavra, Ophelia, descrê dos seus juramentos, porque não são verdadeiros; interpretes de desejos profanos, revestem-se da linguagem da mais santa sinceridade. Uma vez por todas, e franqueza, filha, prohibo-te toda e qualquer conversa com o sr. Hamlet. Pensa bem. Ordeno-t'o.
Obedecerei, meu pae. (Sáem.)