Hamlet: drama em cinco actos/Acto terceiro/Cena IV
Senhor, Hamlet entrou agora para o quarto de sua mãe; occultar-me-hei cuidadosamente para ouvir a sua conversa. Asseguro a vossa magestade que a rainha o vae reprehender severamente. É conveniente, como el-rei muito bem disse, que outros ouvidos que não sejam os de mãe, naturalmente propensos á indulgencia, ouçam o que se disserem mutuamente. Adeus, meu senhor; virei aos seus quartos antes que vossa magestade se recolha, e o rei será sabedor de tudo quanto se passou.
Obrigado, Polonio. (Polonio sáe.)
O meu crime já não tem perdão no céu, está marcado pelo estigma da maldição divina, como o foi o primeiro fratricida. Apesar de todos os meus desejos, não posso orar; pareço um homem que duas occupações reclamam, e que, não sabendo por qual optar, não escolhe nenhuma. Poisque, quando sobre esta mão maldita se formasse uma crosta de sangue mais espessa que a propria mão, não teria o céu bastante misericordia para que a onda da sua graça a purificasse e a tornasse branca como a neve? Para que serve a bondade divina, senão para remir as nossas culpas? De que vale a oração, se não tem a dupla virtude de prevenir a nossa quéda, ou obter o perdão depois d'ella? Dirijâmos as nossas supplicas ao céu, já que não podemos evitar o crime consummado. Mas, infeliz, como hei de orar? Perdoae-me, Senhor, o meu crime nefando. Não posso, poisque possuo os objectos que me induziram ao assassinio, corôa, throno e consorte. Poder-se-ha obter o perdão, quando se conservam os fructos do crime? N'este mundo corrompido, a iniquidade póde a preço de oiro desviar o curso da justiça, e com o producto do crime comprar a impunidade; mas o céu é justo, todo o subterfugio é inutil; ali os nossos actos são justamente avaliados e os nossos crimes conhecidos. Que devo fazer? Nada me resta. Tentemos o arrependimento. Grande é a sua efficacia; mas que póde n'aquelle a quem mesmo o arrepender-se é vedado? Oh! deploravel condição, oh! consciencia negra como a morte, oh! minha alma, não tens perdão, e quanto mais te esforçares por obtel-o, mais aggravas a tua situação. Anjos do céu, vinde em meu auxilio, tentae um esforço supremo. Dobrae-vos, joelhos rebeldes. E tu, meu coração, que as tuas fibras de aço voltem ao estado primitivo das do recem-nascido. Ainda me resta esta ultima esperança. (Retira-se a um lado da scena, ajoelha e ora.)
A occasião é propicia, está orando. Coragem, Hamlet. Sim, mas salvar-se-ía a sua alma, e não é essa a minha vingança desejada. Reflictâmos; um scelerado assassina meu pae, e eu, seu filho unico, abro as portas do céu a esse infame! Seria uma recompensa e não um castigo. Assassinou meu pae, entregue ás preoccupações da carne, quando seus peccados mais vivazes estavam, como as flores na primavera; e quem sabe, a não ser o céu, que contas daria ao Creador? as penas eternas, de certo, não o pouparam. Seria uma vingança immolar este scelerado, quando a sua alma deve estar pura, quando está preparado para a sua ultima viagem? Não! Entra na tua bainha, minha espada, e espera para ferir, golpe mais terrivel e justo. Quando estiver ebrio ou adormecido, ou encolerisado, ou immerso nos prazeres de um leito incestuoso, ou absorvido pelo jogo, ou blasphemando, ou praticando algum acto contrario á salvação da sua alma, então fere, que as penas do inferno serão poucas para um tal crime. (Olhando para o rei.) Prolonga ainda os teus dias enfermos: adiar não é desistir. (Sáe.)
Sobem as minhas palavras, o pensamento não, e as palavras sem o pensamento não chegam ao céu. (Sáe.)
O sr. Hamlet não tarda. Reprehenda-o asperamente; diga-lhe que os seus atrevimentos excedem os limites da paciencia, e que vossa magestade já teve que se interpor entre elle e a colera do rei. Nada mais digo, senhora, peço só que falle com firmeza.
Fallar-lhe-hei com firmeza, esteja descansado. Afaste-se, ouço os seus passos. (Polonio esconde-se.)
Que me quer, minha mãe?
Hamlet, offendeste gravemente teu pae.
Minha mãe offendeu gravemente meu pae!
Como insensato fallas.
A rainha falla como culpada!
Que queres tu dizer, Hamlet?
O que é, senhora?
Esqueces quem eu sou?
Pela cruz do Redemptor, que não. Rainha é, foi esposa do irmão de seu marido, e prouvera a Deus que não o fosse, mas é minha mãe!
Mandar-te-hei alguem que melhor do que eu te saiba fallar.
Que pretendes de mim? queres tu porventura assassinar-me? Acudam á rainha, acudam!
O que é! olá, soccorro!
Que é isso? Um rato? (Dando-lhe uma estocada.) Aposto um ducado em como o matei!
Mataram-me, eu morro. (Cáe para fóra do reposteiro e morre.)
Que fizeste, infeliz?
Ignoro-o; seria o rei? (Levanta o reposteiro e puxa pelo cadaver de Polonio.)
Que acto de crueldade e de sangue!
De sangue; quasi tão reprehensivel, minha mãe, como assassinar um rei e desposar o irmão!
Assassinar um rei?
Sim, um rei, foi o que eu disse. (A Polonio.) Quanto a ti, pobre diabo, louco, temerario e indiscreto, as nossas contas estão ajustadas, aprendeste á tua custa o perigo que corre quem se intromette nos negocios dos outros. (Á rainha.) Cesse de estorcer-se. Silencio, sente-se, quero torturar o seu coração, e fal-o-hei, se ainda possue alguma sensibilidade, e o habito do crime não a bronzeou a ponto de ser insensivel a toda a especie de emoção.
Uma acção que mancha o rubor e a graça do pudor; que transforma a virtude em hypocrisia; que arranca á fronte innocente do amor a sua corôa de rosas, e a substitue por uma chaga asquerosa; que torna os juramentos do hymeneu tão falsos como os do jogador! Oh! uma acção que rouba ao corpo dos contratos a santidade, que é a sua alma, e faz da religião uma rapsodia de palavras. Indigna-se o céu, contrista-se o globo solido e compacto, lê-se-lhe nas faces a consternação como se fosse o ultimo dia do mundo.
Qual é pois a acção que denunciam este ameaçador preludio e esta expressão fulminante?
Veja bem esses dois retratos, são as imagens de dois irmãos. Veja que graça impressa n'estas feições: o cabello annellado de Apollo; a fronte do proprio Jupiter; o olhar de Marte, onde se lê a commando e a ameaça; o porte de Mercurio, o mensageiro celeste, quando apenas pousa o alado pé sobre o cimo das nuvens; uma tão feliz reunião das fórmas perfeitas, que cada um dos deuses parecia ter contribuido com o seu quinhão, como se quizessem mostrar ao mundo o modelo do verdadeiro homem! Esse era o seu primeiro esposo. Volva agora os olhares para este lado. Eis o que é o seu segundo esposo! que, similhante á espiga mangrada, pelo seu contacto causa a morte a sua irmã a espiga sã. E saberá ver? Como pôde então abandonar as ferteis e salubres collinas, para se immergir n'este immundo paul!! Se ainda tem olhos, senhora, não póde imputar ao amor o seu comportamento; na sua idade já se acalmou a effervescencia do sangue, e a paixão obedece á rasão. E qual seria a creatura racional, que ousasse trocar o seu primeiro marido por este segundo? É sem duvida dotada de sensibilidade, aliás não seria um ser animado; mas na senhora estão paralysados todos os sentimentos, porque não ha demencia que não deixe ao que verga sob o seu peso uma porção bastante de discernimento, para saber escolher entre objectos tão dissimilhantes. Que demonio a perturbou a ponto de lhe vendar os olhos? A vista sem o tacto, o tacto sem o auxilio da vista, o ouvido sem o uso das mãos e dos olhos, o olfato só por si, uma porção mesmo alterada de um verdadeiro sentido, não podiam ter-se enganado tão estultamente. Oh! vergonha! onde está o teu rubor? Inferno rebelde, que assim pódes atear a revolta nos sentidos de uma mulher, ha muito esposa e mãe. Que admira que, para a ardente juventude, a virtude seja como a cera, que se derrete á chamma que alimenta; que não seja vergonha ceder quando nos arrasta a paixão, poisque o proprio crystal se funde e a rasão prostitue aos desejos os seus vergonhosos serviços.
Oh! Hamlet, cessa por piedade, obrigas o meu olhar a volver-se todo para a minha alma, e n'ella descubro máculas tão negras e tão profundamente impressas, que nada já as póde lavar.
Viver no suor impuro de um leito infecto, sobre o esterco da corrupção, revolver-se no lodaçal de um asqueroso amor.
Cala-te, Hamlet, as tuas palavras são outras tantas punhaladas. Piedade! querido filho!
Um assassino, um scelerado, um miseravel, que não vale a centesima parte do seu primeiro marido, um rei de comedia, um ladrão, que empalmou o poder, e que achando a corôa debaixo de mão, a roubou e a metteu no bolso!
Hamlet!
Um palhaço!
Protegei-me e abrigae-me sob vossas azas, anjos do céu. (Á sombra) Que pretendes de mim, sombra querida?
Vens tu reprehender a tibieza de teu filho, que, deixando passar o tempo, arrefecer a sua indignação, não se apressou em cumprir os teus terriveis preceitos? Falla!
Recorda-te que o unico fim d'esta minha apparição é atear em ti o fogo da resolução. Mas vê, tua mãe está succumbida, interpõe-te entre ella e os seus remorsos; é nas mais debeis organisações que mais estragos causa a imaginação. Falla-lhe tu, Hamlet.
Como se sente, minha mãe?
Eu é que te devia fazer essa pergunta! Por que está teu olhar fito no espaço? por que conversas com seres immateriaes? Teu olhar indefinido revela a lucta da tua alma; como um soldado acordado em sobresalto; teus cabellos, como se a vida os animasse, levantam-se e ouriçam-se sobre a tua fronte. Oh! meu querido filho, apaga a chamma da tua colera, com as tranquillas e limpidas aguas da paciencia! Mas para onde olhas tu?
É elle! Elle! Como está pallido! O seu aspecto, e o motivo que aqui o traz, commoveriam as proprias pedras. (Á sombra) Descrava de mim os teus olhos, receio que me feneça a resolução, vendo teu triste e commovente olhar; que se transforme o caracter dos meus actos talvez em lagrimas em vez de sangue.
Mas, filho, a quem fallas assim?
Não vê nada, minha mãe?
Nada, senão tudo quanto existe n'esta camara.
Cousa alguma, a não ser as tuas palavras.
Mas olhe, minha mãe, não vê como elle se afasta, triste e pensativo? É meu pae, vestido como trajava em sua vida. Eil-o, transpõe agora mesmo a porta. Saíu. (A sombra sáe.)
É á exaltação da tua imaginação e ao delirio que de ti se apoderou, que são devidas estas creações phantasticas.
O delirio! Senhora, apalpe o meu pulso, e conhecerá que não está menos tranquillo que o seu. Não fallei influenciado pelo delirio. Interrogue-me; em vez de divagar, repetir-lhe-hei textualmente as minhas palavras; não estou louco; engana-se, minha mãe. Por Deus, não se embale, no pensamento falso, que é o meu delirio e não a sua culpa que me faz fallar! Seria cicatrizar exteriormente a chaga, que a consciencia nunca deixaria de augmentar interiormente. Confesse-se ao céu, arrependa-se do passado, premuna-se para o futuro, e não dê pasto ao verme do remorso, que acabará por totalmente corroer o seu coração e obliterar a sua consciencia. Perdoe á minha virtude, porque n'este mundo sordido e venal a virtude deve implorar o perdão do vicio e pedir o favor de poder fazer o bem.
Oh! Hamlet! Dilaceras-me o coração.
Expulse a parte corrompida, e com a outra metade viva tranquilla e pura. Boa noite; evite meu tio, e se não podér ser virtuosa, ao menos pareça-o. O habito, esse monstro, que destroe e neutralisa em nós toda a sensibilidade, esse demonio do habito, é anjo n'isto, porque consente á virtude e ás boas acções as suas vestes proprias. Não veja hoje o seu esposo, tornar-lhe-ha mais facil a abstenção futura; o habito tudo póde, muda a natureza individual, doma o demonio, e expulsa-o com o seu maravilhoso poder. Boas noites mais uma vez! e quando sentir a necessidade da benção divina, então pedir-lhe-hei a sua. (Mostrando Polonio.) Quanto a este homem, arrependo-me do que fiz; mas obedeci ao céu; assim o quiz tornando-me instrumento das suas vinganças, punindo-o por mim, a mim por elle. Sepultem-no, eu responderei pela morte que lhe dei! Adeus, pois. Cumpre-me ser cruel por humanidade; o primeiro mal está feito, o maior ainda ha de vir. Uma palavra ainda.
Que devo fazer?
Nada do que eu lhe disse! Receba as caricias do avinhado monarcha, preste as suas faces aos seus osculos, ouça-lhes as palavras de amor; então n'um diluvio de ardentes osculos, entre as mais lubricas caricias, confesse-lhe, revele-lhe tudo, diga-lhe que nunca estive louco, que o fingi, faça-lhe essa confidencia. Qual seria a rainha, bella, sensata e honesta, que hesitasse em confiar áquelle animal immundo e repellente, asqueroso reptil, tão importantes segredos? Quem guardaria silencio? Ninguem. Depois, olvidando o bom senso e a discrição, abra a gaiola e deixe voar as avesinhas, e seguindo o exemplo do bugio da legenda, por simples experiencia, introduza-se na gaiola e rompa o pescoço caíndo!
Acredita, Hamlet, que se as palavras se compozessem de fôlgo e o fôlgo de vida, eu não teria vida para articular as que tu me disseste.
Devo partir para Inglaterra; sabe-o sem duvida, minha mãe?
Infeliz! Tinha-me esquecido; pois isso está definitivamente determinado?
Ha cartas selladas, e os meus dois companheiros de estudos, nos quaes me fio tanto como na innocencia dos envenenados dardos das viboras, são os portadores da ordem! São elles que me hão de aplanar o caminho, e se encarregarão de me conduzir ao laço armado pela mais negra traição. Deixemos caminhar os acontecimentos. Causa devéras prazer ver rebentar nas mãos do proprio artifice a bomba que para outrem preparava. Nada ha, senhora, que nos dê mais gosto do que combater a traição, contraminando-a pela sagacidade. A morte de Polonio apressará a minha partida. Levemos o seu cadaver para a camara vizinha. Boas noites, minha mãe. Este conselheiro está agora verdadeiramente a sangue frio, discreto e grave; em vida era dotado de estupida garrulice. Agora basta, acabemos por uma vez. Boas noites. Adeus, minha mãe. (A rainha sáe por um lado, Hamlet pelo outro, arrastando o cadaver de Polonio.)