Helena/V
Por esse tempo resolveu Estácio dar um passo decisivo. Ligado por amor à filha de Camargo, desde antes da morte do conselheiro, hesitara sempre em pedi-la ao pai, diferindo a resolução para quando fosse propício o ensejo. A condição não era fácil, porque o sentimento que ele nutria em relação a Eugênia tinha alternativas de tibieza e fervor. A causa disso pode crer-se estava também em seu coração; mas principalmente residia nela. Num dos primeiros dias de agosto, assentara Estácio de ir solicitar de Eugênia autorização para fazer oficialmente o pedido. Assim disposto, dirigiu-se à casa de Camargo.
Mal o avistou de longe, desceu Eugênia à porta do jardim. O chapelinho de palha, de abas largas, que lhe protegia o rosto dos raios do sol, — eram três horas da tarde, — tornava mais bela a figura da moça. Eugênia era uma das mais brilhantes estrelas entre as menores do céu fluminense. Agora mesmo, se o leitor lhe descobrir o perfil em camarote de teatro, ou se a vir entrar em alguma sala de baile, compreenderá, — através de um quarto de século, — que os contemporâneos de sua mocidade lhe tivessem louvado, sem contraste, as graças que então alvoreciam com o frescor e a pureza das primeiras horas.
Era de pequena estatura; tinha os cabelos de um castanho escuro, e os olhos grandes e azuis, dois pedacinhos do céu, abertos em rosto alvo e corado; o corpo, levemente refeito, era naturalmente elegante; mas se a dona sabia vestir-se com luxo, e até com arte, não possuía o dom de alcançar os máximos efeitos com os meios mais simples.
Estácio contemplou-a namorado sem ousar dizer palavra; a primeira que lhe ia sair dos lábios, era justamente o pedido que o levava ali. Mas Eugênia deteve-lha, mostrando o anel que a madrinha, fazendeira de Cantagalo, lhe mandara na véspera. Era uma opala magnífica, a tal ponto que Eugênia dividia os olhos entre o namorado e ela. Esta simultaneidade esfriou o mancebo. Entraram ambos em casa, onde D. Tomásia os esperava. A mãe de Eugênia sabia combinar o decoro com os desejos de seu coração; não seria obstáculo aos dois namorados; infelizmente, a presença de duas visitas veio destruir o cálculo dos três. Estácio espreitava uma ocasião de pedir a Eugênia a autorização que desejava; até ao jantar não se lhe deparou nenhuma.
Desceram todos ao jardim. D. Tomásia entreteve uma das visitas; Camargo foi mostrar à outra a sua coleção de flores. Estácio e Eugênia afastaram-se cautelosamente dos dois grupos, a pretexto de não sei que flor aberta na manhã daquele dia. A flor existia; Eugênia colheu-a e deu a Estácio.
— Não vá perdê-la; há de entregá-la a Helena da minha parte. Diga-lhe que estou com muitas saudades.
Estácio colocou a flor na botoeira.
— Vai cair! disse Eugênia. Quer que pregue um alfinete?
Estácio não teve tempo de responder, porque a filha de Camargo, tirando um alfinete do cinto, prendeu o pé da flor, gastando muito mais tempo do que o exigia a operação. A moça não era míope; todavia aproximou de tal modo a cabeça ao peito do mancebo, que este teve ímpetos de lhe beijar os cabelos, e seria a primeira vez que seus lábios lhe tocassem.
— Pronto! disse ela. Diga a Helena que é a flor mais bonita do nosso jardim. Sabe que eu gosto muito de sua irmã?
— Acredito.
— Suponho que é minha amiga; há de sê-lo com certeza. Oh! eu preciso muito de uma amiga verdadeira!
— Sim?
— Muito! Tenho tantas que não prestam para nada, e só me dão desgostos, como Cecília... Se soubesse o que ela me fez!
— Que foi?
Eugênia desfiou uma historiazinha de toucador, que omito em suas particularidades por não interessar ao nosso caso, bastando saber que a razão capital da divergência entre as duas amigas fora uma opinião de Cecília acerca da escolha de um chapéu.
Estácio não escutou a história com a atenção que a moça desejara; limitou-se a ouvir a voz de Eugênia, que era na verdade angélica. Alguma coisa porém lhe ficou; e quando ela pôs termo às suas queixas:
— O que me parece, observou o sobrinho de D. Úrsula, é que não valia a pena brigar por tão pouca coisa...
— Pouca coisa! exclamou Eugênia. Parece-lhe pouco chamar-me caprichosa e de mau gosto?
— Fez mal, se o disse, em todo o caso...
Estácio fez uma pausa e continuou a andar. Eugênia esperou que ele continuasse o que ia dizer; mas o silêncio prolongou-se mais do que era natural.
— Em todo o caso? repetiu a moça erguendo para ele os olhos límpidos e curiosos.
— Eugênia, disse Estácio, quer saber a verdadeira razão do mau sucesso de suas afeições? É deixar-se levar mais pelas aparências que pela realidade; é porque dá menos apreço às qualidades sólidas do coração do que às frívolas exterioridades da vida. Suas amizades são das que duram a roda de uma valsa, ou, quando muito, a moda de um chapéu; podem satisfazer o capricho de um dia, mas são estéreis para as necessidades do coração.
— Jesus! exclamou Eugênia, estacando o passo; um sermão por tão pouca coisa! Se tivesse algum pedaço de latim, era o mesmo que estar ouvindo o padre Melchior.
Estácio não respondeu; contentou-se com erguer os ombros, e os dois continuaram a andar silenciosamente, acanhados e descontentes um do outro. A diferença é que o enfado de Eugênia se manifestava por um movimento nervoso de impaciência e despeito.
— Se o ofendi, perdoe-me, disse ela, com um leve tom de ironia.
— Oh! exclamou ele apertando-lhe a mão, como quem só esperava um pretexto para reatar a conversa interrompida.
— Talvez ofendesse, continuou a moça; eu sei dizer as coisas como elas me vêm à boca, e parece que não são as mais acertadas...
— Não digo que o sejam sempre, replicou Estácio sorrindo. Agora, pelo menos, foi um pouco precipitada em zombar do que eu lhe dizia, que era justo e de boa intenção. Francamente, é para lastimar uma amizade, ganha entre duas quadrilhas e perdida por causa de um chapéu? Não vale a pena esperdiçar afetos, Eugênia; sentirá mais tarde que essa moeda do coração não se deve nunca reduzir a trocos miúdos nem despender em quinquilharias.
Eugênia ouviu calada as palavras do moço; não as entendeu muito. Sabia-lhes a significação; não lhes viu porém nexo nem sentido; sobretudo, não lhes sentiu a aplicação. O que a irritou mais foi o tom pedagogo de Estácio; estouvada e voluntariosa, não admitia que ninguém lhe falasse sem submissão ou a repreendesse por atos seus, que ela julgava legítimos e naturais. A insistência do moço foi o ponto de partida a um desses arrufos, não raros entre amantes, e comuns entre aqueles dois. Os de Eugênia não eram simples silêncios; seu espírito rebelde e livre não adormecia nesses momentos de enfado; pelo contrário, irritava-se e traduzia a irritação por meio de pirraças e acessos de mau humor. Estácio viu murmurar, crescer e desabar a tempestade. A moça articulava algumas frases soltas, batia no chão com o pezinho mimoso, que por acaso esmagou uma pobre erva, alheia às divergências morais daquelas duas criaturas. Ora parava e desandava o caminho; mas logo se dirigia para o moço, com as pálpebras trêmulas de cólera e um remoque nos lábios; comprazia-se em torcer a ponta da manga ou morder a ponta do dedo. Estácio, afeito a essas explosões, não lhes sabia remédio próprio: tanto o silêncio como a réplica eram ali matérias inflamáveis. Contudo, o silêncio era o menor dos dois perigos. Estácio limitava-se a ouvir calado, olhando à sorrelfa para a filha de Camargo, cujo rosto parecia mais belo quando a raiva o coloria. Uma terceira pessoa era a única esperança de pacificação; Estácio alongou o olhar pelo jardim em busca desse deus ex-machina. Apareceu ele enfim sob a forma de um Carlos Barreto, — estudante de medicina, que cultivava simultaneamente a patologia e a comédia, mas prometia ser melhor Esculápio que Aristófanes. Mal os viu de longe, apertou o passo para o grupo.
— Vem gente, Eugênia, disse Estácio; não demos espetáculos e...perdoe-me.
Eugênia ergueu os ombros, procurou com os olhos o intruso que daí a pouco lhes estendia a mão.
O céu não ficou logo claro; mas o vento amainou, e era de esperar que o sol se desfizesse enfim do seu capote de nuvens. Carlos Barreto deu a Eugênia a agradável notícia de que trouxera a seu pai um convite para o baile que daria no sábado próximo uma de suas parentas. A perspectiva do baile foi uma brisa salutar que dispersou o resto das nuvens; Eugênia sorriu. J’ai ri; me voilà désarmée, como na comédia de Piron. Vinte minutos depois, não havia em Eugênia vestígio da cena do jardim. Mas a idéia do casamento estava adiada.
O efeito foi agro e doce para Estácio. Estimando ver dissipada a cólera, doía-lhe que a causa fosse, não a própria virtude do amor, mas um motivo comparativamente fútil. A resolução de a consultar sobre o pedido de casamento esvaiu-se-lhe como de outras vezes. Saiu dali à noite, antes do chá, aborrecido e azedo. Esse estado não durou muito; dez minutos depois de deixar a casa de Camargo, sentiu alguma coisa semelhante à dentada de um remorso. O amor de Estácio tinha a particularidade de crescer e afirmar-se na ausência e diminuir logo que estava ao pé da moça. De longe, via-a através da névoa luminosa da imaginação; ao pé era difícil que Eugênia conservasse os dotes que ele lhe emprestava. Daí, um dissentimento provável e um remorso certo. Agora que a deixava, ia ele irritado contra si mesmo; achava-se ridículo e cruel; chegava a adorar toda a graciosa futilidade de Eugênia; concedia alguma coisa à idade, à educação, aos costumes, à ignorância da vida.
Nesse estado de espírito entrou em casa, onde o esperava um incidente novo.