História do Futuro/I/III
O que encerra a terceira parte do título desta História só se pode declarar inteiramente com o discurso de toda ela, porque toda se emprega em provar a esperança dum novo império, ao qual, pelas razões que se verão a seu tempo, chamamos quinto. Entretanto, para que a matéria de uma vez se compreenda e saiba o leitor em suma o que lhe prometemos, porei brevemente aqui sua divisão.
Divide-se a História do Futuro em sete partes ou livros: no primeiro se mostra que há-de haver no Mundo um novo império; no segundo, que império há-de ser; no terceiro, suas grandezas e felicidades; no quarto, os meios por que se há-de introduzir; no quinto, em que terra; no sexto, em que tempo; no sétimo, em que pesca. Estas sete cousas são as que há-de examinar, resolver e provar a nova História que escrevemos do Quinto Império do Mundo.
Mas porque esta palavra Mundo, nos ambiciosos títulos dos impérios e imperadores, costuma ter maior estrondo na voz que verdade na significação, será bem que digamos neste lugar o que o título da nossa História entende por Mundo.
Os Faraós do Egito, e também os Ptolemeus que lhes sucederam, de tal maneira mediam a estreiteza de suas terras pela arrogância e inchação de seus vastos pensamentos, que, dominando somente aquela parte não grande da extrema África, que jaz entre os desertos de Numídia e os do Mar Vermelho, não duvidavam intitular-se Josés do Mundo. Essa foi a desigualdade do nome que puseram os Egípcios ao seu restaurador José: Vocavit eum lingua aegyptiaca Salvatorem Mundi. Não lhe chamaram Salvador do Egito, senão do Mundo, como se não houvera mais mundo que o Egito. Imitavam a soberba de seu soberbo Nilo, que, quando sai ao mar, se espraia em sete bocas, como se foram sete rios, sendo um só rio; assim era aquele império, e os demais chamados do Mundo, maiores sempre nas vozes que no corpo e grandeza.
Do império dos Assírios temos nas divinas letras uma provisão lançada no III capítulo do Profeta Daniel e mandada expedir pelo grande Nabucodonosor, cujo exórdio é este: Nabuchodonosor, rex omnibus populis, gentibus et linguis, qui habitant in universa terra: «Nabucodonosor, rei. a todos os povos, gentes e línguas, que habitam em todo o Mundo. E o mesmo Daniel (que é mais) falando a este rei e acomodando-se aos estilos da sua corte e aos títulos magníficos de sua grandeza, lhe diz assim no mesmo capítulo: Tu es rex qui magnificatus es et invaluisti, et magnitudo tua [...] pervenit usque ad Coelum, et potestas tua usque ad terminos universae terrae. Contudo, se lançarmos os compassos às terras que obedeciam a Nabucodonosor, acharemos que da Ásia então conhecida tinha uma boa parte, da África pouco, da Europa menos e do resto do Mundo nada. Mas bastavam estes três retalhos da terra para a soberba de Nabucodonosor revestir os títulos de seu império com o nome estrondoso de todo o Mundo. Tão grande era a significação dos nomes, e tanto menos 0 que significavam!
Do império de Assuero (que era o dos Persas) diz o Texto Sagrado no primeiro capítulo da história de Ester, que se estendia da Índia até a Etiópia, obedecendo àquela coroa 127 províncias. Esta era a demarcação das terras e estes os limites do império, mas os títulos não tinham limite. Assim nos consta por um decreto de Dario, que se refere no VI capítulo de Daniel, por estas pomposas palavras, semelhantes em tudo às de Nabuco: Tunc Darius rex scripsit omnibus populis et gentibus et linguis, qui habitant in universa terra: Pax vobis multiplicetur.
E o mesmo Assuero por outro decreto, no cap. XIII de Ester, não duvidou firmar por sua própria mão, que tinha sujeito ao seu domínio o orbe universo: Cum universum orbem meae ditioni subjugassem. De maneira que os reis persas, por serem senhores de 127 províncias, passaram provisões e decretos a todo o Mundo; mas quem desenrolasse o mapa do Mundo e pusesse sobre ele os pergaminhos destas provisões, veria facilmente que o Mundo, sem demasiado encarecimento, é cento e vinte e sete vezes maior que o império persiano: tão pouco se proporcionava a geografia dos títulos com a medida dos impérios!
Que direi do império dos Romanos? Os termos que lhe sinalam seus escritores são as raias do Mundo:
Orbem jam totum victor Romanus habebat
Qua mare, qua terra, qua sidus currit utrumque
disse Petrônio; e Cícero, que professava mais verdade que os poetas: Nulla gens est. quae aut ita subacta sit ut vi non extet, aut ita domita ut quiescat, aut ita pacata ut victoria nostra imperioque laetetur. Tal era a opinião que Roma tinha de sua grandeza e tal o estilo que guardava em seus editos: ...exiit edictum à Caesare Augusto ut describeretur universus orbis.
Mandou Augusto César matricular e: alistar seu império, e dizia o edito: Aliste-se o Mundo. Mas se examinarmos este mundo romano até onde se estendia, acharemos que pelo oriente se fechava com o rio Tigres, pelo ocidente com o mar de Cádis, pelo meio-dia com o Nilo e pelo setentrião com o Danúbio e Reno. Estes limites lhe prescreveu Claudiano, ainda que lhe deu por margens os Orientes:
Subdit Oceanum sceptris, et margine coeli
Clausit opes; quantum distant a Tigride Gades,
Inter se Tanais quantum Nilusque relinquunt.
Deixo o Mogor, o China, o Tártaro e outros domínios bárbaros do nosso tempo, que com a mesma majestade de títulos se chamam imperadores do Mundo, seguindo a antiquíssima arrogância da Ásia, em que o Mundo andou sempre atado aos títulos da monarquia.
O Mundo do nosso prometido império não é Mundo neste sentido: não prometo mundos, nem impérios titulares, nomes tão alheios da modéstia como da verdade. Bem sei que o império de Alemanha (envelhecidas relíquias, e quase acabadas, do Romano) em muitos textos de um e outro direito se chama império do Mundo; mas também se sabe que os textos podem dar títulos, mas não impérios. No livro sétimo examinaremos os fundamentos deste direito; entretanto, ainda que liberalmente lho concedamos, é certo que os impérios e os reinos não os dá nem os defende a espada da justiça, senão a justiça da espada.
A Abraão prometeu Deus as terras da Palestina mas conquistou-as a espada de Josué e defendeu-as a de seus sucessores. Estes são os instrumentos humanos de que se serve (ainda quando obra divinamente) a providencia daquele supremo Senhor que o é do Mundo e dos exércitos. Os que querem o ruído e encher de algum modo o vazio destes grandes títulos, dizem que se entende por hipérbole ou exageração, e por aquela figura que os retóricos chamam sinédoque, em que se toma a parte pelo todo. O título desta História não fala por hipérboles nem sinédoques, não chama a um pigmeu gigante nem a um braço homem. O Mundo de que falo é o Mundo, aquele Mundo, e naquele sentido em que disse S. João: ...Mundus per ipsum factus est, et Mundus eum non cognovit. O Mundo que Deus criou, o Mundo que o não conheceu, e o Mundo que o há-de conhecer. Quando o não conheceu, negou-lhe o domínio; quando o conhecer, dar-lhe-á a posse . universum terraram orbem — diz Ortélio — veteres [...] in tres partes divisere: Africam, scilicet, Europam et Asiam, sed in inventa America, eam pro quarta parte nostra aetas adjecit; quintamque expectat sub meridionali cardine jacentem: O Mundo que conheceram os Antigos se dividiu em três partes: África, Europa, Ásia; depois que se descobriu a América, acrescentou-lhe a nossa idade esta quarta parte; espera-se agora a quinta, que é aquela terra incógnita, mas já reconhecida, que chamamos Austral.»
Este foi o Mundo passado, e este é o Mundo presente, e este será o Mundo futuro; e destes três mundos unidos se formará (que assim o formou Deus) um Mundo inteiro. Este é o sujeito da nossa História, e este o império que prometemos do Mundo. Tudo o que abraça o mar, tudo o que alumia o Sol, tudo o que cobre e rodeia o Sol, será sujeito a este Quinto Império; não por nome ou título fantástico, como todos os que até agora se chamaram impérios do Mundo, senão por domínio e sujeição verdadeira. Todos os reinos se unirão em um centro, todas as cabeças obedecerão a uma suprema cabeça, todas as coroas se rematarão em uma só diadema, e esta será a peanha da cruz de Cristo.
Resolveu Augusto com o senado pôr limites à grandeza do Império Romano. Duvida Tácito se foi filha esta resolução do receio ou da inveja: Incertum metu, an per invidiam. Temeu César (se foi receio) que um corpo tão enormemente grande não se pudesse animar com um só espírito, não se pudesse governar com uma só cabeça, não se pudesse defender com um só braço; ou não quis (se foi inveja) que viesse depois outro imperador mais venturoso, que trespassasse as balizas do que ele até então conquistara e fosse ou se chamasse maior que Augusto. Tal foi, dizem, o pensamento de Alexandre, o qual, vizinho à morte, repartiu em diferentes sucessores o seu império, para que nenhum lhe pudesse herdar o nome de Magno. Não é nem poderá ser assim no império do Mundo que prometemos; a paz lhe tirará o receio, a união lhe desfará a inveja, e Deus (que é fortuna sem inconstância) lhe conservará a grandeza.
Aqui acaba o título desta História, e mais claramente do que o dissemos agora o provaremos depois. Entretanto, se aos doutos ocorrem instancias e aos escrupulosos dúvidas, damos por solução de todas a mão onipotente: Ut videant, sciant et recogitent, et intelligant pariter quia manus Domini fecit hoc...