História do Futuro/I/XI
Declara-se qual seja a novidade desta História, e que as cousas novas, por novas, não desmerecem o crédito de sua verdade.
Quando no princípio deste livro prometemos cousas novas aos curiosos, bem advertimos que metíamos as armas nas mãos aos críticos; mas são estas armas já tão velhas e ferrugentas, que não há muito que temer seus golpes, ainda que a novidade da nossa História fora qual se supõe, e não é, contanto que não tenha, como por graça de Deus não tem, cousa alguma que encontre a Fé ou doutrina da Igreja. 0 reparo da novidade não é crime de que ela tema ser acusada, e pelo qual, quando o seja, ponha em risco o crédito da sua verdade, se por si mesma lhe for devida.
Pensão é muito antiga das cousas boas e grandes serem acusadas de novas. A primeira instituição da vida monástica, sendo o estado mais santo da Igreja Católica, que acusações não padeceu antigamente (e padece ainda hoje) dos hereges, pela novidade do hábito e modo de vida! Digam-no as apologias de S. João Crisóstomo, S. Gregório, S. Bernardo Santo Tomás, S. Boaventura, para que não falemos nos Waldenses, nos Platins, nos Soares, nos Barónios, nos Belarminos. A mesma Lei de Cristo chamada por sua novidade evangélica, em quantos Evros e tribunais de Gentios e Judeus foi terminada pela glória deste título! Acusação foi de que a defendeu Tertuliano, Lactancio, Arnóbio, Prudêncio, e todos os outros padres que antes e depois destes escreveram contra Gentios. Mas o maior exemplo de todos neste caso é o daquela divina obra de S. Jerônimo na versão da Sagrada Bíblia, que hoje adoptamos por canónica, tão estranhada quando nova, não por Gentios ou hereges, nem só por quaisquer católicos, senão pela maior luz da Igreja, Santo Agostinho. Quero pôr aqui as palavras deste grande e santíssimo doutor, escritas não a outrem, senão ao mesmo S. Jerônimo: De vertendis autem in latinam linguam sanctis litteris laborare te nollem [ ] aut obscura sunt, aut manifesta. Si enim obscura sunt, te quoque in eis falli potuisse creditur,- si manifesta, superfuum est te voluisse explanare quod i11is latere non potuit: «!Quanto à versão das Escrituras Sagradas na língua latina, obra é — diz o santo— em que eu não quisera que vós empregásseis o vosso trabalho, porque ou elas são escuras ou manifestas. Se escuras, com razão se crê que também vos podeis enganar na sua interpretação, como os outros escritores; e se manifestas, supérflua diligência é quererdes vós explicar o que os outros não podem deixar de ter entendido».
Até aqui zelosa, elegante e engenhosamente Santo Agostinho, ao qual respondeu S. Jerônimo com igual engenho, zelo e elegância, e verdadeiramente com vitória, por estas palavras:: Porro quod dicis non debuisse me interpretari post veteres, et novo utens syllogismo [...] tuo tibi sermone respondeo: omnes veteres tractatores, qui nos in Domino praecesserunt et qui Scripturas Sanctas interpretati sunt, aut manifesta. Si obscura, quomodo tu post eos ausus es disserere, quod illi explanare non potuerunt? Si manifesta, superfluum est te voluisse disserere, quod illis latere non potuit [...] respondeat mihi prudentia tua, quare tu post tantos ac tales scriptores et interpretes in explanatione Psalmorgm diversa senseris? Si enim obscurt sunt Psalmi, te quoque in eis falli potuisse credendum est; si manifesti, illos in eis falli potuisse non creditur, ac per hoc utroque modo superflua erit interpretatio tua, et hac lege post priores nullus loqui audebit, et quodcumque alius occupaverit, alius de eo scribendi non habebit licentiam.
«Quanto ao que me dizeis—diz S. Jerônimo a S. Agostinho — que eu me não devia cansar em interpretar as Escrituras depois dos antigos intérpretes delas, e para isso usais daquele novo silogismo, respondo com as mesmas vossas palavras: Todos os expositores dos Livros Sagrados, que nos precederam no Senhor, ou interpretaram o que era escuro, ou o que era manifesto. Se o que era escuro, como vos atreveis também a declarar o que eles não puderam? Se o que era manifesto, supérfluo trabalho é cansar-vos em querer fazer entender o que eles não podiam deixar de ter entendido. Responda-me logo vossa prudência: com razão, depois de tantos e tais intérpretes, vos atrevestes na exposição dos Salmos a sentir diversamente do que eles sentiam? Porque, se os Salmos são escuros, também se deve entender que vós vos podeis enganar na sua inteligência; e se são claros e manifestos, supérflua é e não necessária a vossa interpretação E segundo esta lei, ninguém poderá falar depois dos primeiros, e tanto que um se adiantar à exposição de algum Livro Sagrado, logo nenhum outro terá licença para escrever sobre ele.»
Isto dizia Santo Agostinho a S. Jerônimo sobre a novidade de sua versão, a qual hoje é de fé; e isto S. Jerônimo a S. Agostinho sobre a novidade da sua exposição dos Salmos, que hoje . é antiqüíssima e mui venerada, e depois dela se escreveram infinitas outras mais novas, e ainda os Salmos não estão bastantemente interpretados. Assim que os reparos da novidade são pensão (como dizia) das cousas boas e grandes, e não só entre os inimigos e impugnadores da verdade, senão entre os maiores zeladores e defensores dela.
Mas destes mesmos exemplos se convence claramente quão frívolas são e pouco eficazes as acusações do que se estranha por novo. Não é o tempo, senão a razão, a que dá o crédito e autoridade aos escritores; nem se deve perguntar o quando, senão o como se escreveram. A antigüidade das obras é um acidente extrínseco que nem tira nem acrescenta validade, e só porque põe os autores delas mais longe dos olhos da inveja, lhes granjeia a triste fortuna de serem mais venerados ou melhor conhecidos depois da morte, que vivos. As trevas foram mais antigas que o Sol e os animais que o homem. O Testamento Velho não é mais perfeito que o Novo, por ser mais antigo, nem o Novo perde a perfeição e excelência que tem sobre o Velho, por ser mais novo. Que cousa há hoje tão antiga, que não fosse nova em algum tempo? Diz Salomão que não há cousa nova debaixo do Sol; e ainda é mais universalmente certo, que não há cousa debaixo do Sol que não fosse nova. A mais nova entre todas as do Mundo foi o mesmo Mundo. Se a nossa religião é nova, argumentava Arnóbio contra os Gentios, tempo virá em que seja velha; e se a vossa superstição é velha, tempo houve em que também foi nova. Dizeis que a religião cristã é nova, porque ainda não tem quatrocentos anos, e há menos de dois mil que os deuses que vós adoráveis ainda não tinham cento. Com a mesma energia disse o imperador Cláudio ao senado: Omnia, Patres conscripti, quae nunc vetustissima creduntur, nova fuere: plebei magistratus post patricios, latini post plebeios, coeterarum Italiae gentium post latinos; inveterescet hoc quoque, et quod hodie exemplis tuemur inter exempla erit. E verdadeiramente é assim: quantas cousas são hoje exemplos que começaram sem exemplo? Todas as opiniões ou verdades que se escreveram, tiveram princípio, e aquele que as começou sem autor, foi o primeiro que lhes deu a autoridade.
Acudia S. Jerônimo à queixa da sua nova versão, e diz assim contra Rufino: Periculosum opus certe, et obtrectarorum meorum latratibus patens, qui me asserunt in septuaginta interpretum sugillatione, nova pro veteribus cudere; ita ingenium quasi vinum probantes. Discretamente; porque antepor o velho ao novo só pelos anos, escolha parece mais de cela vinária, que do trono ou cadeira de Salomão. E notem os leitores que são estas palavras de uma das apologias que S. Jerônimo escreveu em defesa daquela nova versão da Sagrada Escritura, que hoje se chama Vulgata, e é de fé católica; para que se veja quais são os juízos dos homens e quão impugnadas que costumam ser as obras de que Deus se quer servir.
Não tinha esta de S. Jerônimo outro reparo mais que a glória de ser sua e nova; mas sobre esta lhe argüía Rufino e outros homens doutos tais calúnias, que a queriam fazer não menos que herética, como se só os antigos fossem católicos e a verdade sem cãs não fosse verdade. Uns o faziam por zelo, outros por inveja, muitos por malícia, todos por ignorância.
E verdadeiramente que, se bem apontamos os fundamentos destes impugnadores d a novidade e as razões daquela dura lei com que forçosamente querem que sigamos em tudo os antigos e adoremos as suas pisadas, ou é porque têm para si que já se não podem dizer cousas novas, ou que não há capacidade nos modernos para as poderem descobrir e dizer. Se o primeiro, grande injúria fazem à verdade e às ciências; se o segundo, grande afronta aos homens e à nossa idade. Mas não me ouçam a mim, ouçam aos mesmos antigos. E começando pelos Gentios, alumiados só pelo lume da razão, Séneca, na epist. LXIV, escreve ou ensina a Lucilo desta maneira: Multum adhuc restat operis, multumque restabit; nec ulli nato, post mille secula, praecludetur occasio aliqua adhuc adjiciendi. [...] Multum egerunt, qui ante nos fuerunt, sed non peregerunt. E na epístola LXXIX:: Et qui praeesserant, non praeripuisse mihi videntur quae dici poterant, sed aperuisse; sed multum interest, utrum ad consumptam materiam, an ad subactam accedas: crescit in dies, et inventum inventa non obstant. E Marco Túlio, formando um perfeito orador no livro Orator: Nec vero Aristotelem in philosophia deterruit a scribendo amplitudo Platonis, nec ipse Aristoteles admirabili quadam scientia et copia caeterorum studia restrinxit
Até aqui estes dois gentios, em que era ainda maior a soberba e presunção que a ciência. E se estes, sendo ambos eminentíssimos nas suas artes não duvidaram confessar que havia ainda muito mais que andar, que inventar, que descobrir e saber nelas, porque havemos nós de esperar e afrontar tanto a nossa idade e os homens dela, que cuidemos que já não podem adiantar as ciências nem dizer e acrescentar sobre elas cousa de novo?
Sêneca floresceu nos tempos de Nero, que vem a ser, por boas contas, dezesseis séculos antes deste nosso; e se ele conheceu que os que nascessem de ali a mil séculos, ainda teriam muito que dizer na mesma filosofia moral em que ele tanto e tão sutilmente disse, que muito é que se atreva a dizer alguma cousa nova a nossa idade, se ainda lhe restam por sua confissão novecentos e oitenta e quatro séculos (se tantos durar o Mundo) para dizer e inventar muito de novo sobre o mesmo Sêneca? Se depois do divino Platão (como pondera Túlio) não acovardaram os seus escritos a Aristóteles para que não escrevesse, nem a admirável sabedoria e cópia do mesmo Aristóteles pôde apagar os fogosos espíritos de tantos filósofos que depois dele e sobre ele escreveram, sendo por comum aprovação do Mundo um dos maiores engenhos que produziu a Grécia e a mesma natureza, porque havemos de querer abreviar as mãos do Autor dela e cuidarmos que já não podem falar de novo os homens presentes, e só lhes damos licença para decorarem e repetirem o que disseram os passados? Se assim fora, debalde nos deu Deus o entendimento, pois nos bastava a memória. Porque, como bem disse o mesmo Sêneca, saber só o que os Antigos souberam, não é. saber, é lembrar-se: Aliud est meminisse, aliud scire. Meminisse est rem commissam memoriae custodire; at contra scire, est et sua facere quemque, nec ab exemplari pendere, et toties ad magistratum respicere.
Estes tais haviam de ter a testa virada para as costas, como dizem os Italianos dos Alemães, que todos se ocupam na erudição do passado, sem descobrir nem inventar cousa nova. Muito alcançaram os Antigos, e se lhes deve o primeiro louvor; mas ainda nos deixam seus grandes talentos em que exercitar os nossos.
E se isto é assim nas ciências humanas, que será naquele pego imenso e profundíssimo das divinas) Mas ouçamos também aos antigos delas.
David que veio ao mundo 3000 anos depois de sua criação, dizia confiadamente, que soubera e entendera mais que todos os velhos: Super senes intelexi; e estes velhos eram aqueles varões veneráveis da primeira antigüidade — Seth, Enoch, Mathusalem, Noe, Abraão, Isaac Jacob, José, Moisés Josué, Melquisedech, Samuel e tantos outros de igual sabedoria e nome. Desde a criação do Mundo até a reparação dele, em que se contaram quatro mil anos, sempre os homens se foram excedendo na sabedoria divina, ainda que fossem diminuindo na idade. Não é consideração minha, senão doutrina de S. Gregório, Papa: Per incrementa temporum crevit scientia spiritualium Patrum; plus namque Moyses quam Abraham, plus Prophetae, quam Moyses, plus A postoli, quam Prophetae in Omnipotentis Dei scientia eruditi sunt: «Ao passo que iam procedendo os tempos —diz S. Gregório— ia juntamente crescendo a sabedoria dos antigos Padres, conhecendo sempre mais de Deus os segundos que os primeiros. Moyses soube mais das cousas divinas que Abraão; os Profetas mais que Moysés; os Apóstolos mais que os profetas». E o mesmo que tinha sucedido naquela primeira e antiga igreja, se experimenta depois na segunda, nova e mais perfeita em que hoje estamos, de que ela tinha sido figura, porque, passados os tempos de Cristo e de sua vida, em que a sabedoria eterna viveu humanada no Mundo entre os homens (que foi um parêntesis excessivo e infinito de luz, com o qual nenhum outro estado da Igreja se pode comparar), nos séculos que depois foram sucedendo, dos Padres e Doutores sagrados, sempre foram também crescendo, com novos e maiores resplendores, as ciências divinas, acrescentando, ilustrando e escrevendo muitas cousas de novo os que vinham depois, sobre o que tinham sabido e ensinado os mais antigos.
Lactancio Firmiano, Padre dos primeiros séculos da Igreja, a quem tinham precedido os Dionisios Areopagitas, os Hieroteus, os Inácios, os Policarpos, os Ireneus, os Justinos, os Orígenes, os Tertulianos, os Clementes Alexandrinos, no Liv. II: Divinarum Institutionum, diz assim: Nec qui nos illis temporibus antecessunt;quae si hominibus aequaliter datur, occupari ab antecedentibus non potest. S. Jerônimo, que floresceu muito depois do mesmo Lactancio e a quem prece deram os Hipólitos, os Ciprianos, os Taumaturgos, os Arnóbios, os Atanásios, os Basílios, os Teófilos, os Cirilos, os Epifânios, aumentou e adiantou tanto o estudo das divinas letras, que mereceu na eminência delas, por consenso e pregão universal da igreja, o renome de doutor Máximo, na Apologia acima citada , contra Rufino, escreve o santo Doutor com a modéstia com que costumam falar os homens maiores, estas palavras: Quid igitur? Damnamus veteres? Minime; sed post priorum studia in domo Domini, quod possumus, laboramus. E convertendo-se no fim contra os vituperadores dos inventos novos, estranha muito que, sendo o apetite ou gula humana tão ambiciosa de novos e esquisitos sabores, só nas ciências, que são o sabor dos entendimentos se contentam os homens com a vulgaridade ou velhice dos manjares usados: Nam cum nova semper expectant voluntates, et gulae earum vicina maria non sufficiant, cur in solo studio scripturarum veteri sapore contentis sunt ?
São Gregório Magno, que veio ao Mundo para lhe dar melhor cabeça do que seu juízo e errados juízos merecem, depois dos outros dois Gregórios, Nazianzeno e Niceno, e do mesmo Jerônimo- depois dos Clímacos, dos Procópios, dos Boécios, dos Cassianos, dos Teodoretos; depois dos Euquérios, dos Pascásios, dos Máximos, dos Paulinos, dos Cassiodoros; depois dos Hesíquios, dos Crisólogos, dos Leões, dos Atanásios, dos Fulgêncios, e, o que é mais que tudo, depois de um Crisóstomo, de um Ambrósio e de um Agostinho, penetrou tão alta mente o espírito interior da Teologia Mística e Ascética, que por aplauso comum do Concílio oitavo toletano foi preferido a todos os Doutores na doutrina ética e moral, com aquele famoso elogio: In ethicis assertionibus praecunctis merito praeferendus.
Mas nem por isso depois de tantos e tão esclarecidos lumes da Igreja deixaram de espalhar nela, em todos os séculos seguintes, novos raios de novas luzes os três ilustríssimos espanhóis — Isidoro, Eugenio e Ildefonso; os Sofrónios, os Elísios, os Bedas, os Damascenos, os Anselmos, os Teofilatos, os Eutímios, os Rupertos, um Bernardo, nome singular, e muitos outros; entre os quais Ricardo Vitorino, defendendo modestamente alguma novidade que se acharia em seus livros, diz assim no prólogo de um deles: Non est magnum, vel mirum, si in uno aliquo, aliquid addere possumus [...] haec propter illos dicta sunt, qui nihil acceptant, nisi quod ab antiquissimis patribus acceperunt; sed sicut Deus produxit novos fructus ad recreationem hominis exterioris, non credunt scientias impertiri ad innovandos sensus hominis interioris: «Não se tenha por cousa grande — diz Ricardo — nem merecedora de admiração, que em alguma matéria das que escrevemos, possamos acrescentar alguma cousa de novo; e digo isto por aqueles que nada admitem nem lhes é aceito, senão o que primeiro foi recebido pelos antiquíssimos Padres. Mas se Deus para sustento e gosto dos corpos, produz inacessivelmente todos os anos tantos frutos novos, porque não cuidarão que também as ciências podem produzir cousas novas para alimento e recreação das almas?»
Não se podia explicar com mais clara comparação nem provar-se com mais eficaz argumento, e desde aquele tempo, que foi pelos anos de mil e trezentos a esta parte, se tem confirmado pela grandeza e liberalidade de Deus em todos os séculos, com mais repetidos exemplos que nos passados, porque não só alumiou a Divina Providência pouco depois o Mundo todo com aquelas duas tochas claríssimas e santíssimas de teologia — Santo Tomás e São Boaventura — mas antes e depois deles, para aumento ou competência de suas mesmas luzes, as cercou de tão luminosas e resplandecentes estrelas, que em outra idade podiam ter nome de primeiros planetas, como foram um Alberto Magno, um Alexandre de Ales e o famosíssimo e subtilíssimo Scoto, não só luz, senão fonte de luzes; as quais depois deste doutíssimo século se multiplicaram em tanto número, que se pode com razão dizer do Mundo o que Deus disse a Abraão do firmamento: Numera stellas, si potes.
E porque é matéria impossível e número sem conto, fiquem em silêncio (por mais que tão grande brado deram nas escolas) os Vasques, os Soares, os Molinas, os Valenças, os Belarminos, os Canísios, os Toledos, os Lugos, os Caetanos, os Soutos, os Medinas, os Vitórias, em cujos felicíssimos e imensos escritos se vêem tão adiantadas as letras divinas, que mais parecem novas que renovadas.
Digam agora os reprovadores das que eles chamam novidades, se se pode ainda sobre os Antigos dizer alguma cousa de novo.
É porventura o saber e dizer patrimônio só da Antigüidade e morgado como o de Isaac que, dada a bênção a Jacob, não fica outra para Esau? São os antigos como os cântaros da Sareftana (comparação de que usa Ruperto) que, depois de cheios eles, parou a fonte milagrosa, e não correu mais o óleo? Houve neste grande oceano de ciências alguma nau Vitória que desse volta a todo o mar? ou algum Gama que, passado o cabo de Boa Esperança, a tirasse a todos os outros de novos descobrimentos? E se depois deste famoso círculo do Universo, ainda ficaram mares e terras incógnitas que prometem novas empresas e novos argonautas, que será na esfera da sabedoria e da verdade, cuja imensa e infinita circunferência só a pode abraçar 0 que é imenso e compreender O que é infinito? Se depois dos antiquíssimos tiveram que descobrir os menos antigos, e depois dos que já não eram os primeiros, tiveram que inventar mais que os segundos, porque não quererão os adoradores ou aduladores da Antigüidade que, ainda depois de tanto dito, haja mais que dizer, e depois de tanto escrito, mais que escrever, e depois de tanto estudado e sabido, mais que estudar e saber?
Como temo que os que condenam as cousas novas, são aqueles que não podem dizer senão as muito velhas, e pode ser que muito remendadas! O avarento chama pródigo ao liberal. O covarde temerário ao valente. O distraído hipócrita ao modesto; e cada um condena o que não tem, por não confessar o que lhe falta. O grande P.e Soares, que tanto tinha em si do que os Antigos souberam, dizia que daria de alvíssaras o que sabia, se lhe dessem o que ignorava, isto é, o que ficou aos vindouros para poderem saber e dizer de novo; mas querer precisamente que nos atemos em tudo aos passados, é querer atar os vivos aos mortos, crueldade que só se lê de Mezêncio.
Fechemos este discurso, ou adocemos a dureza deste rigor com o melífluo Bernardo, o qual, como sempre falou pela boca da Escritura, assegura firmemente aos vindouros que poderão ter maiores notícias das cousas, do que tiveram e alcançaram os Antigos, e o prova e refere em dois textos ou dois exemplos: um de David, que afirmou que soubera mais que os passados; outro de Daniel, que prometeu saberiam mais os futuros: David quoque super doctores suos et seniores donum sibi intelligentiae audacter praesumit, dicens: Super omnes docentes me intellexi. Sed et propheta Daniel: pertransibunt, ait plurimi et multiplex erit scientia, ampliorem scilicet rerum notitiam promittens et ipse posteris.
Até aqui São Bernardo, escrevendo a Hugo de São Vítor, que também lhe tinha escrito lastimado da mesma chaga. Todos os grandes engenhos tiveram sempre esta queixa, e todos se armaram destas apologias, porque todos disseram cousas novas; e nenhum careceu de quem lhas impugnasse. Não ha cousa boa sem contradição, nem grande sem inveja:
...Che come crebber l'arti,
Crebbe l'invidia; e col sapere insieme
Ne' cuori enflati i suoi veneni sparti.
Mas antes de Petrarca o tinha dito em Roma o nosso discreto espanhol:
Esse quid hoc dicam, vivis quod fama negatur,
Et sua quod rarus tempora lector amat?
Hi sunt invidiae nimirum, Regule, mores,
Praeferat antiquos semper ut illa novis.
Si veterem ingrati Pompeii quaerimus umbram
Et laudant Catulli vilia templa senes
Ennius et lectus salvo tibi, Roma, Marone
Et sua riserunt saecula Maeonidem.
Os que mais queriam louvar a Cristo, diziam que era um dos Profetas antigos, sendo ele a luz de todos os Profetas, e Herodes se persuadia que não podia ser senão o Baptista ressuscitado, sendo aquele a quem o Baptista não era digno de desatar a correia do sapato. Todas as cousas novas que se disserem nesta História, são aquelas que Deus tem prometido que há-de fazer, quando disse: Ecce nova facio omnia. Se acaso houver quem as impugne e contradiga, porque nem Deus pode fazer cousa de novo, sem contradição dos mesmos para quem as faz. A cousa mais nova que Deus fez no Mundo, foi aquela de que disse o Profeta: Creavit Dominus novum super terram: faemina circumdabit virum. E esta novidade foi o alvo das maiores contradições, como também predisse outro profeta: ...signum cui contradicetur.
Mas para que não pareça que defendo as cousas novas, por não ser necessário este escudo à minha História respondendo à objeção da novidade dela, digo que em toda essa novidade, com ser tão grande, nenhuma cousa direi de novo. Propriedade é dos futuros serem sempre novos todos, por isso os últimos e mais distantes se chamam novíssimos; mas ainda que esta História seja toda de cousas tão novas, nem por isso ela será nova. :Ê uma História nova sem nenhuma novidade, e uma perpétua novidade sem nenhuma cousa de novo; como isto possa ser. explicarei por alguns exemplos.
Quando os Romanos a primeira vez bateram os muros de Cartago com o aríete ou carneiro militar, ficaram os Cartagineses assombrados com a novidade daquela máquina, e não era novidade, senão esquecimento; porque os primeiros inventores daquele bravo instrumento tinham sido os mesmos Cartagineses; mas como havia muitos anos que gozavam da altíssima paz, esquecia-se Cartago do que inventara Cartago, e sendo cousa antiga e sua, a tinha por novidade.
Quero dizê-lo com palavras do grande Tertuliano, cuja foi esta advertência: ...arietem [...] nemini umquam adhuc libratum, illa dicitur Carthago studiis asperrima belli, prima omnium armasse in oscillum penduli impetus [...] cum autem ultimarent tempora patriae, et aries jam romanus in muros quondam suos auderet stupuere illico Carthaginienses, ut novam extraneum ingenium. Tantum aevi longinqua valet mutare vetustas. De maneira que o aríete, de que Cartago tinha sido a primeira inventora, parecia instrumento novo aos mesmos Cartagineses, não por novo, senão por esquecido; não por novo, senão por muito antigo.
Muitas novidades se verão nesta nossa História não novas por novas, senão novas por antiquíssimas. As pirâmides e obeliscos que assombraram com tão nova e desusada grandeza o foro romano (com boa vénia dos Padres Conscritos), depois de serem velhice no Egito, foram novidade em Roma. Serão novas neste nosso livro cousas que foram primeiro que as que hoje se têm por antigas. A nova opinião dos céus fluidos, também recebida em nossos dias, primeiro foi que a antiga de Aristóteles, que com tão continuado aplauso do Mundo os fez sólidos e incorruptíveis.
Nas ciências nascem poucas verdades; as mais delas ressuscitam. Se no Mundo, como pouco há dizia Salomão, não há cousa nova, como se vêem cada dia tantas novidades no Mundo? São novidades de cousas não novas, e tais serão as desta História.
Quando Adão saiu flamante das mãos de Deus, abriu os olhos, e viu tanta cousa nova, e todas eram mais antigas que ele. Nem eram elas as novas; ele era o novo. A novidade da nossa História há-de ser mais dos leitores que dela. Para aquele cego de seu nascimento, a quem Cristo abriu os olhos, ainda que não eram novas as quantidades, porque as apalpava, foram novas as cores, porque as não via; já havia cores e luz, mas não havia olhos. Ao terceiro dia da criação produziu a terra todas as árvores carregadas dos seus frutos. Se não fora assim, não tivera ocasião o preceito, nem tentação o pecado. Todos os frutos nasceram igualmente naquele dia. as pêras, os figos, as uvas e também as frotas novas; mas estas tiveram este nome, porque chegaram mais tarde à nossa terra.
Porventura aquela metade do Mundo a que chamavam quarta parte, não foi criada juntamente com Ásia, com África e com Europa? E contudo, porque a América esteve tanto tempo oculta, é chamada Mundo Novo; novo para nós, que somos os sábios; mas para aqueles bárbaros, velho e muito antigo. Assim que, recolhendo todos estes exemplos, umas cousas faz novas o esquecimento, porque se não lembram. outras a escuridade, porque se não vêem; outras a ignorância, porque se não sabem; outras a distancia, porque se não alcançam. outras a negligência, porque se não buscam; e de todas estas novidades sem novidade, haverá muito nesta nossa História. Lembraremos nela muitas cousas esquecidas, alumiaremos muitas escuras, descobriremos muitas ocultas, poremos à vista muitas distantes e procuraremos saber muitas ignoradas.
E por não deixarmos sem juízo a controvérsia disputada entre as cousas novas e as velhas, certamente entre umas e outras não se pode dar regra certa. O tempo umas cousas melhora e outras corrompe: ouro velho, vinho velho, amigo velho; casa nova, navio novo, vestido novo. A velhice no ouro é preço, no vinho madureza, no amigo constância, no vestido pobreza, no navio e na casa perigo; absolutamente nas cousas que se consomem com o tempo, melhores são as novas.
Mais defendida está Roma com os muros de Urbano, que com os de Beluário; uns se conservam pelo que foram, outros pelo que são; em uns se admira a antigüidade, em outros se logra a fortaleza. A verdade e as ciências, em que não tem jurisdição o tempo, impropriamente se chamam novas ou velhas, porque sempre são, sempre foram e sempre hão-de ser as mesmas, posto que nem sempre se conhecem igualmente. De Deus, que por essência é sabedoria e verdade, disse Tertuliano judiciosamente que nem é velho nem novo, mas verdadeiro: ...germana divinitas nec de novitate nec de vetustate, sed de sua veritate censetur. E como a verdade da nossa História toda (como vimos) tenha o seu princípio em Deus, pedimos aos que a lerem que, assim no certo como no provável, nem se atenda se é velho, nem se repare se é novo, mas só se considere se é ou pode ser verdade: Nec de novitate nec de vetustate, sed de sua veritate censeatur. E quanto ao louvor que renunciamos facilmente, ainda que o merecêramos, digo com indiferença o que ensinou Cristo: ...scriba doctus [...] profert de thesauro suo nova et vetera: «Os doutos quando escrevem, tiram do seu tesouro as cousas novas e mais as velhas. Saber as velhas e inventar as novas, isto parece que é ser douto. Mas notou Santo Agostinho que não disse Cristo as velhas e as novas, senão as novas e as velhas, dando o primeiro lugar às novas, porque as avaliou a suma justiça pelo merecimento e não pelo tempo: Non dixit vetera et nova, quod utique dixisset, nisi maluisset meritorum ordinem servare, quam temporum. As cousas velhas são do tempo, as novas do merecimento; porque as velhas são alheias, as novas nossas.
Todos dizem que os Antigos merecem maior louvor, e é assim; mas este louvor, se bem se considera, não é elogio da antigüidade, senão da novidade. Merecem maior louvor os Antigos, porque foram os primeiros inventores das cousas; logo da novidade é o louvor, pois o mereceram, quando as descobriram de novo. Se fora outro o autor desta História, folgara eu que se pudera dizer dele com Vincêncio Lirinense: Per te posteritas gratulatur intellectum, quad ante vetustas non intellectum venerabutur.