História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil/Dedicatória
CONDE
DO BRASIL HOLANDÊS, ETC.
AQUÍ vos ofereço, ilustríssimo Conde,
o Brasil engrandecido pela vossa
autoridade e pelas vossas armas. Se
êle pudesse falar e firmar convosco
um tratado, por si mesmo se entregaria
a vós, que, com insigne galhardia, defendestes
e exaltastes a Holanda e enchestes a Espanha
com a fama e o temor da guerra por vós dirigida.
Vingando uma, fostes o terror da outra e o assombro
de ambas.
O que nem esta nem aquela podem fazer, fà-lo-ei por uma e outra, escrevendo uma história na qual nem serão esquecidos os feitos praticados, nem omitido o autor deles. Os escritores antigos que transmitiram à posteridade fatos dignos de atravessar os séculos não transpuseram os términos do velho mundo. Nós, audazes, buscamos convosco um mundo que, apartado de nossas plagas por um oceano inteiro, parece ter a Natureza guardado e escondido para honra vossa e glória da casa de Nassau. Atenas, Lacedemônia, Cartago, Roma, o Lácio, as Gálias e a Germânia constituem o assunto dos escritores gregos e romanos. Olinda, Pernambuco, Mauriciópole, Itamaracá, Paraíba, Loanda, S. Jorge da Mina, o Maranhão, nomes desconhecidos dos antigos, serão o nosso tema. Os beligerantes de então eram os assírios, os persas, os gregos, os macedônios, os italianos, os cartagineses, os gauleses, os queruscos. Os de agora são os tapuias, os mariquitos, os potigares, os caribas, os chilenos, os peruanos. No Brasil não se combate apenas entre gentes diversas, mas também entre dois continentes. Outrora o Reno, o Istro, o Ródano, o Indo, o Ganges foram testemunhas de grandes acontecimentos. Agora são os rios Maranhão, da Prata, de Janeiro, dos Afogados, de Pôrto Calvo, Capibaribe, Beberibe. Não conheceu Políbio mulatos, nem Lívio patagões, nem Tácito angolenses, nem Floro mamalucos, nem Suetônio ou Justino negros. Estes nomes, porém, aparecem na nossa história. Os soldados descritos por ésses historiadores iam para a guerra vestidos ou coiraçados; os guerreiros de que trato vão combater até mesmo nus. Aqueles causavam terror com os seus dardos, broquéis, sarissas, bipenes e carros falcatos; os meus são temíveis pelo arco e pela clava. Aqueles mostravam o seu esforço com os assédios e com as máquinas de ataque e de defesa; éstes, pelejando só com as mãos, carecem de tais cousas. Outrora os romanos venceram os lusitanos junto ao Tejo; hoje éstes são no ultramar os irmãos e os aliados dos romanos. É novo quanto se me oferece à pena: o céu, o solo, os povos, os seus costumes, a sua alimentação, as suas armas.
Afiam os bárbaros a espada contra uma raça capaz de disciplina e de costumes puros. Ela resiste a ésses homens ferozes, que não somente renunciaram a humanidade, mas também intentam destruir o homem habitador dos palmares e com ele os próprios sentimentos de humanidade.
Indo para tão longe da morada da virtude, engrandecestes a vossa virtude, sendo brando entre cruéis, civil entre agrestes, manso entre sanguinários, piedoso entre ignorantes da verdadeira piedade. Fizestes fora da Pátria o que antes nela praticastes: tomastes armas em favor da Religião, da Pátria e da Igreja, da salvação dos homens e dos interêsses do comércio, assim procedendo, numa e noutra parte, para a glória das Províncias Unidas. Mostrastes-vos soldado contra os mais valorosos dos espanhóis: Bagnuolo, Conde da Tôrre, Barbalho, Meneses, astros que surgiram no Ocidente. Não desligastes os vossos exércitos da lei, da disciplina e da ordem, mas, a exemplo dos Vossos maiores, os mantivestes zelosamente nos limites do direito.
Éreis luz no reino das trevas, compatriota entre estrangeiros, guia entre transviados, e, no meio meio de povos tão diversos, fostes para todos o mesmo senhor.
Com Marte que ia domar a terra levastes Cristo para domar as almas, e entre tantas vitórias que meditáveis incluíu-se a que dos erros alcançastes. Demonstrastes com brilho a vossa heroicidade e a vossa perícia militar: de tantos Nassaus que na Pátria provaram sua valentia contra o inimigo, de tantos parentes conspicuos nas campanhas européias, fostes vós o primeiro que se animou a levar a guerra para além dos mares e a investir o inimigo no seu próprio território. Certo aprendestes dos antigos estes planos estratégicos. Dêles usaram os romanos contra os macedônios, Aníbal e Antíoco contra os romanos. Todos estes julgavam nada fariam de memorável, se não transportassem para outro lugar a violência da guerra. Os grandes capitães, encerrados nos estreitos confins da pátria, buscam de ordinário espaço mais amplo fora dela para ostentarem a sua bravura e mérito. Seguindo-lhes o exemplo, fostes no Novo Mundo qual Metelo nas Gálias, Mário na África, na Germânia Druso e na Panônia Trajano. Assim como éstes inscreveram em suas colunas os triunfos contra os estrangeiros, assim também vós havíeis de gravá-los nos ânimos e nos fastos da Holanda. Há muito já conhecem os americanos os nomes e os títulos da vossa família, mas não tinham ainda recebido a nenhum dos Nassaus, e assim devia ser para que, no Brasil, vos tornásseis conhecido, não pelas narrações dos outros, mas pessoalmente e por vossas ações belicosas. Onde vós mesmo construistes fortalezas e cidades, onde vencestes os inimigos, aí deixastes impresso o nome de Maurício, merecendo sózinho, entre tantos heróis da vossa casa, o cognome de Americano. No correr das lutas, quando chegava a poderosíssima armada espanhola, edificastes, mostrando que não vos retiráveis inconsideradamente por temor do adversário e que não desesperáveis de salvar a república. Destarte, reconheceriam os antropófagos, vendo Friburgo e Boa Vista, o fausto de Nassau e a residência de tão ilustre personagem. De vossa indústria falarão as maravilhosas pontes lançadas por sobre os rios para a utilidade e segurança públicas. Pôrto Calvo, Ceará, as costas de Itamaracá, da Paraíba, do Rio Grande, Loanda, Guiné, Maranhão, todas estas regiões, sabedoras das batalhas navais e terrestres travadas sob vós, proclamarão o vosso valor militar.
Por outro lado, serão testemunhas da vossa piedosa e prudente moderação povos discordes na religião e na polícia. Os governadores das cidades e províncias vizinhas louvarão a vossa equidade no território inimigo, e os estrangeiros exaltarão a vossa clemência e humanidade.
Quando, após alguns séculos, os indígenas, o português e o bárbaro virem, por todas as províncias, os brasões que lhes destes; quando virem os domínios holandeses por vós dilatados e engrandecidos, hão de memorar o poder, a prudência e a felicidade do General. Quando, nos desertos de Copaoba, divisar o caminheiro as insígnias da Companhia suspensas em cipós e lápides, há de admirar a indefessa atividade do Administrador estrangeiro e os cometimentos de um povo que penetrou em paragens ínvias, levado pela avidez do ganho. Quando os silvícolas, pejando-se de se ver nus entre os nossos, se vestirem, agradecerão ao recato dos vossos europeus os véus com que se resguardava o primitivo pudor.
A própria Olinda, cidade outrora linda no nome e no aspecto e ora afeada com o entulho de suas ruínas, achou, na sua grande calamidade, motivo de gratular-se consigo mesma: não podendo manter-se erecta e incólume, por terem-na arruinado as vitórias alheias, foi brandamente tratada pela vossa comiseração. Vendo-lhe, de continuo, o lamentável infortúnio, condoestes-vos da sorte de tão ínclita cidade. Confronte-se o aspecto de Olinda caindo e de Mauriciópole surgindo em vossa honra: não se hesitará em decidir qual dos dois espetáculos é mais deleitável. Se é de lamentar o tomarem-se armas contra os sagrados penates, de certo será grato e louvável o haverdes construído templos para Deus e casas para os cidadãos, primeiro, para o vosso amor refletir-se no próprio Criador; segundo para alcançar ele também os homens, imagem do mesmo Deus.
Assim, com umas virtudes intimidastes os vossos inimigos e com outras ganhastes os vossos concidadãos, granjeando daqueles uma glória imensa e dêstes um afeto e bem-querença geral. Encontrastes o meio têrmo entre os inimigos e os nossos, entre os ferozes e os brandos para honrardes com a doçura batávica aqueles que vencestes com o denôdo batávico.
Direi em resumo: chegando ao Brasil, reerguestes o que estava derruído, corrigistes o que estava viciado, reavivastes o que estava morto. Tornando para a Pátria clama-o a realidade parece, a um só tempo, ter o Conselho perdido o seu defensor, o povo um pai, a república a ordem, as leis um guarda, a piedade um exemplo, o holandês o respeito, o português a lealdade.
Oferecendo estas páginas aos vossos olhos, faço reviver os serviços por vós prestados gloriosamente à República e à Companhia das Indias Ocidentais; sujeitando-as ao julgamento dos holandeses, impetro da estima que vos consagram um prêmio para o vosso esforço; entregando-as ao juízo dos estrangeiros, convencerei da fortuna e dos prospérrimos sucessos da guerra os que não forem de todo injustos; submetendo-as à Companhia e aos seus prudentes Diretores, mostro-lhes as causas que lhes alcançaram, no aparato de tantos cometimentos, bastante glória marcial e menor soma de proveitos.
Acolhei sob o vosso patrocínio o escritor, apesar de ter ele escrito com tão remisso espírito o que praticastes com tão vigoroso ânimo. Concedei à verdade, concedei a esta história serenidade, pois tôda ela trata de vós, tôda é dedicada ao vosso preclaro nome. Recebei-a. Ela se funda mais no testemunho e na fé alheia do que na minha: vacilará, quando a inveja, a perversidade, a credulidade argüirem de mentira as bôcas e os olhos daqueles que governastes, daqueles pelos quais lutastes e até mesmo dos inimigos que vencestes.
Amsterdam, 20 de abril de 1647.
DE VOSSA EXCELÊNCIA
ILUSTRISSIMA
venerador humílimo
Gaspar Barléu