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Histórias diversas (anos 70)/5

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Lagartas e Borboletas

— Que fim levou o Visconde? — quis saber Narizinho. — Há já três dias que não o vejo.

— Com certeza anda no fundo do laboratório, às voltas com alguma nova invenção. Ele agora só cuida disso. Virou Édison.

Emília, que ia passando, confirmou:

— Está lá sim, dando os últimos retoques na máquina de ler o pensamento dos animais.

— Que história é essa?

— Como eu disse: máquina de ler o pensamento dos animais. Para mim, é a invenção mais maravilhosa mundo. "Todos os animais pensam, como nós", diz o Visconde, mas como não sabemos a língua que falam, não temos meio de conhecer o pensamento deles. Com a nova invenção tudo se torna muito simples.

— Como é a invenção?

— Um aparelho — uma caixa assim do tamanho de um tijolo, com o miolo da invenção dentro. A gente liga um fio que sai da caixa à pele do animal e cola o ouvido à tampa, e houve com a maior clareza o que o animal está pensando.

— Está aí uma dessas coisas que só vendo. Se for verdade, o Visconde inventou ventou uma verdadeira revolução. Porque se a máquina permite a leitura do pensamento dos animais, também permitirá a leitura do pensamento dos homens (que são animais e muitos até animalíssimos) — e mil novidades vão acontecer. Num crime, por exemplo: não é preciso interrogar réu nem as testemunhas, basta ligar o fio à pele do acusado e ficar ouvindo. Mas será verdade? — e Pedrinho, ainda na dúvida, foi consultar Dona Benta.

— Acha possível, vovó, descobrir-se um aparelho de ouvir o pensamento dos animais?

— Por que não, meu filho? O pensamento parece que é uma eletricidade. Nós não vemos a eletricidade comum, não sabemos o que ela é — e no entanto a utilizamos e transmitimos de um ponto para outro. Por um fio de cobre. E essa outra eletricidade misteriosa que se chama rádio, transmite-se sem fio nenhum. Ora, a eletricidade-pensamento transmite-se de um cérebro a outro.

— Verdade isso, vovó?

— Como não? Procure no dicionário a palavra telepatia.

Pedrinho abriu um dicionário que estava em cima da mesa e encontrou logo a palavra. Leu a definição: Telepatia — transmissão do pensamento dum cérebro para outro.

— Que coisa, vovó! — exclamou o menino muito admirado. — Nunca imaginei. Mas nesse caso o Visconde não está construindo nenhuma máquina boba, sem fundamento. Se existe a telepatia, e até os dicionários dão a palavra, nada mais possível do que uma máquina de captar o pensamento.

— Possível, sim, meu filho — e já realizada com a invenção do Visconde, se é certo o que a Emília diz. E poderá chamar-se psicocaptor; psico é pensamento em grego; e captor é captador.

Estava a discussão nesse ponto quando o Visconde apareceu, muito contentinho, todo a esfregar as mãos.

— Pronto! Já terminei a construção da minha máquina.

— O psicocaptor?

O Visconde fez cara de surpresa e em seguida iluminou a carinha.

— Que ótimo nome você descobriu para a minha máquina, Pedrinho! Exato. Saiu da sua cabeça?

— Não. Da de vovó confessou o menino — e o bem educado sabuguinho não disse o "Logo vi!" que Emília estava esperando.

— E agora? — perguntou esta.

— Agora vou fazer a experiência — disse o Visconde. — Preciso de um animalzinho qualquer, um besouro, uma taturana.

— Na minha pitangueira ainda está aquela taturana de ontem, a verde enfeitada de raminhos.

— Será que taturana pensa? — duvidou Pedrinho.

— E por que não? Todos os seres pensam, pois todos possuem inteligência. Só variam de grau. Newton possuía uma inteligência do tamanho do Himalaia; um peru a tem do tamanho de uma jabuticaba. Mas não há ser vivo que não possua inteligência.

— Pois vamos ver se realmente as taturanas pensam — concluiu Pedrinho.

Minutos depois estavam todos no pomar, debaixo da pitangueira da Emília. Até tia Nastácia veio, ainda com a colher de pau na mão e a dizer: "Credo! O Visconde ainda acaba virando pai-de-santo".

O aparelho foi colocado em cima dum caixão de querosene que Emília conservava lá com uma porção de guardadinhos dentro. O grande inventor tirou a taturana da pitangueira com um pauzinho e colocou-a sobre o caixão, perto da máquina; em seguida ligou o fio à pele da taturana, e colou o ouvido à tampa do aparelho. Todos o observavam com a maior atenção. Segundos depois o Visconde começou a sorrir, num verdadeiro enlevo d'alma. Era o sorriso de todos os grandes inventores — o de Édison, quando viu acender-se a sua primeira lâmpada — o de Alexandre Bell, quando ouviu a primeira palavra ao telefone...

— Está ótima a minha máquina! — disse ele. — Ouço perfeitamente os pensamentos desta taturana. Ouço é modo de dizer, porque não há som. Percebo os pensamentos dela.

— Capta! — ajudou Pedrinho.

— Sim. Estou captando tudo o que ela pensa neste momento.

— E que é? — quis saber Emília.

— Ela está, como se diz, "filosofando" — respondeu o Visconde e tão interessante me parece a sua filosofia que era bom que Pedrinho tomasse nota num papel do que eu for dizendo. Veja papel, Pedrinho, e lápis.

Pedrinho foi correndo buscar papel e lápis e de volta já não encontrou o Visconde no aparelho, e sim Emília, que o alijara dali à força. Quis encrencar, mas Narizinho fez "Psiu! Escreva". E ele vendo a atenção de todos, escreveu o que Emília falou.

— Parece que lhe aconteceu qualquer coisa — disse Emília, porque esta taturana está triste e volta e meia dá um suspirinho. Vou repetir com a maior exatidão o que ela está pensando. Escreva, Pedrinho — e ditou os pensamentos da taturana.

— "Ah, bem triste a minha vida! Num mundo de coisas tão lindas, eu sou feia e inspiro repugnância. Num mundo tão cheio de asas, eu ando me arrastando pelo chão e pelas cascas das árvores. Quem me dera ser como as borboletas que vivem pairando no ar!"

Emília interrompeu o ditado para dizer:

— Como é burrinha! Não sabe que as borboletas saem das lagartas, de modo que uma lagarta é uma futura borboleta, como uma borboleta é uma passada lagarta.

— Nada mais verdade — disse Dona Benta — mas como é que ela há de saber? As taturanas ou lagartas conservam-se assim até o dia em que viram casulo. Em estado de casulo ficam uma porção de dias, até que aquele mingau amarelo que há dentro dos casulos endureça e vire borboleta; e então a casca do casulo racha e a borboleta sai, toda mole ainda, úmida, sem forças, com as asas amarrotadas. Mas rapidamente secam, esticam as asas, ficam fortinhas e saem voando, voando lindo como as "sertanejas" azuis que moram dentro das matas virgens.

— É verdade, vovó — exclamou Narizinho. — Só agora estou vendo que as lagartas não podem saber que vão virar borboletas, nem as borboletas podem saber que já foram lagartas!...

Dona Benta pensou lá consigo: "Tal qual nós, humanos, aqui na terra. Não sabemos de onde viemos nem para onde vamos." Mas nada disse, porque seus netos eram ainda muito crianças para ruminarem idéias assim.

Emília não queria largar do aparelho. Teve de ser arrancada dali à força, e todos se revezaram na maravilha, ouvindo por mais de uma hora todos os pensamentos que passavam pela cabeça da taturana. Depois fizeram experiência num caramujo grande, dos cor-de-rosa — e apanharam perfeitamente os seus pensamentos caramujais. E depois experimentaram um besourão. E uma mamangava. E uma vespa. E quanto inseto havia por ali.

Narizinho declarou que era tamanha aquela invenção que ela não queria saber de mais nada no mundo, senão ouvir pensamentos. "Que valem todos os cinemas e todas as diversões humanas diante da maravilha do Psicocaptor Sabugosa?"

E a invenção ainda cresceu de vulto quando Emília teve a grande idéia de verificar se as árvores também pensavam. A primeira experiência foi feita com a sua pitangueira, por meio da ligação do fio com uma folha — e que lindos pensamentos têm as pitangueiras! Também experimentaram as laranjeiras, as mangueiras, as jabuticabeiras e as goiabeiras, verificando que as árvores de frutas gostosas pensam com muita clareza e elevação de idéias. Já os pensamentos dos pés de limão mostraram-se azedos, e os dos pés de pimenta singularmente ardidos.

— E a jaqueira? — lembrou Emília. — Que será que pensa uma jaqueira enorme como a nossa? — e levou para debaixo da jaqueira o psicocaptor, com todo o bando atrás.

A jaqueira do Picapau Amarelo sempre teve fama de ser a mais velha e maior árvore da zona. Tinha uma copa de trinta metros de diâmetro, e um tronco, na altura dum peito de homem, de três metros. Produzia jacas enormes, algumas até de duas arrobas, que quando bem maduras caíam por si mesmas e esborrachavam-se no chão, espirrando favos. E como a estação fosse própria, lá estava a velha jaqueira com mais de vinte enormes jacas maduras, prestes a caírem.

Emília colocou o aparelho no chão e ligou o fio á casca da árvore, porque as folhas ficavam muito alto. E colou o ouvido para "psicaptar". O que, porém, aconteceu, absolutamente não estava no programa — ou foi vingança da lampreia?

— Que foi que aconteceu?

— Nada menos que isto: assim que ela colou o ouvido no aparelho e começou a ouvir, uma jaca madura desprendeu-se lá de cima e plaf!... caiu bem em cima dela e do aparelho, cobrindo-os quase totalmente! B

— Acudam! — berrou Narizinho.

Emília estava soterrada! Dela só se viam os dois cambitos em movimentos no ar... Era uma jaca das maiores, de modo que para salvá-la Pedrinho teve de ir buscar um enxadão. Depois que "removeu os escombros", a figurinha da Emília apareceu — mas em que estado!...

— Veja, vovó, como ficou esta coitada! — exclamou a menina erguendo-a e tentando pô-la de pé.

Pobre Emília! Impossível imaginar-se coisa mais deplorável. Empapada de caldo de jaca, com pedaços de favos agarrados ao corpo, com a cara, o cabelo e as mãos cobertos de visgo, daquele terrível visgo que os moleques usam para pegar passarinhos, ela não podia falar e quase não podia respirar. E como a única coisa que dissolve visgo de jaca é azeite ou gordura, tia Nastácia correu à cozinha e voltou com uma frigideira de torresmos. E esfregou aqueles torresmos na cara da ex-boneca, dizendo: "E tenho que andar depressa, Sinhá, senão a coitadinha morre 'asfixada'. Já está ficando roxa de tanta falta de ar..."

Emília escapou da morte graças aos torresmos de tia Nastácia, mas ficou em tal estado que teve de ir para a cama, toda engordurada e dolorida, com um gosto de jaca podre que a penetrava até ao fundo da alma...

Esse "soterramento" pela jaca foi o único desastre sério que Emília sofreu em toda a sua vida...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.