Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais/II/I

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Estava-se abrindo uma vasta roça no meio de uma mata virgem na fazenda de que acabamos de falar; isto há de haver mais de quarenta anos. Era ocasião da derribada; a foice já tinha ceifado e desbastado o mato miúdo, as taquaras e cipós, que emaranhavam a floresta. Os troncos robustos e colossais da peroba, da canjerana, da paineira, do cedro e do ipê ostentavam-se nus, e campeavam desafogados aqui e aco­lá, como colunas que ficaram em pé de um templo cujos tetos e paredes desabaram. Mas era mister também deitar por terra esses gigantes de vegetação, que com suas cúpulas imen­sas ensombravam o terreno da plantação, e roubavam a seiva ao solo. Contra cada um deles investiam dois ou três vigorosos e truculentos negros brandindo pesados e possantes machados. Nus da cintura para cima luziam-lhes as espáduas musculosas banhadas em suor aos ardentes raios do sol de agosto. Os golpes do machado restrugiam compassados pela encosta ao som da cantiga monótona do africano. De tempos a tempos ouvia-se um rangido horrendo; um rápido e passageiro tufão atravessava uivando a floresta, e a terra estremecia ao me­donho estrugido de um tronco, que baqueava no meio da grita e alarido dos rudes trabalhadores.

Ao pé da encosta, onde se fazia a roçada, e à beira de um pequeno córrego havia um rancho ou coberta de capim de beira no chão, como os há em todas as roças, onde se pre­parava a comida para os escravos, e que lhes servia de guarida contra os temporais.

Enquanto no interior do rancho uma escrava preparava comida dos trabalhadores, assentada à porta se via uma alva e delicada figura, que contrastava singularmente com a bronca e selvática perspectiva de tudo que a rodeava. Era uma menina de dezesseis ou dezessete anos, alva, esbelta, e de com­pridos cabelos castanhos.

Tinha no regaço uma peneira, em que estava limpando o arroz, que tinha de servir ao jantar. Os pés encruzados pousavam sobre umas tamanquinhas de marroquim vermelho, e a saia do vestido cor de rosa meio apanhada deixava ver as extremidades das alvas e mimosas pernas. Por causa da inten­sa calma descera o corpinho do vestido, e assim sem xale e em mangas de camisa quase que se lhe viam nus os seios, que arfavam puros e castos como os de Raquel, quando ia dar de beber ao rebanho na cisterna, onde encontrou Jacó.

Seria impudicícia um tal desalinho em outro lugar, e em outra qualquer criatura; mas cobria-a o véu da inocência, e o recato da solidão. De quando em quando erguia a cabeça e sa­cudia para trás dos ombros as longas e bastas madeixas, que importunas lhe caíam pelas faces a tapar-lhe os olhos e estor­var-lhe o serviço em que se ocupava, e então deixava ver um lindíssimo oval ornado pela mais graciosa boca e os mais magníficos olhos que se podem imaginar. A todos esses encan­tos, dava esplêndido realce o vivo rubor, com que o mormaço de um sol ardente lhe afogueava as faces.

Cairia por acaso do céu naquele bronco sítio à entrada do pobre rancho essa estátua de marfim, tão alva, tão delicada, digna de pousar sobre pedestal de alabastro, e de ser emoldurada entre sanefas de ouro e brocado? Ou acaso um anjo baixara à terra como nos tempos bíblicos a conviver e abrigar-se à sombra da grosseira cabana do homem primi­tivo?

Paulina era a filha do fazendeiro. Filha única e órfã de mãe, gostava de acompanhar seu pai em todos os rudes tra­balhos da lavoura do sertão. Por isso enquanto seu pai com um comprido rebenque na mão, calçado de grossas botas de mateiro rompia espinhais e coivaras feitorizando o trabalho da derribada, ela tomava conta do rancho e ajudava a preta rancheira nos misteres da cozinha. Mimosa e delicada como era e não tendo sido criada no meio daquelas fragueiras lides, nem por isso Paulina tinha nada de melindrosa, e se entrega­va com o maior desembaraço aos mais humildes e grosseiros serviços. Além das perfeições que recebera da natureza, Pauli­na tinha tido uma educação acurada e a mais completa que naqueles tempos em nosso país se podia dar a uma menina. Ainda em tenros anos tinha sido enviada para um colégio em S. João del-rei, onde a gentil sertaneja recebeu com muito aproveitamento lições de leitura, música, dança, e aprendeu as maneiras de uma sociedade um pouco mais polida do que era a da Uberaba naqueles tempos.

Por morte de sua mãe, a que sucedeu imediatamente a de um irmão único que tinha, seu pai acabrunhado por tão dolorosos golpes, e vendo-se na mais triste soledade, apressou-se em chamá-la para junto de si, pois era ela o único bem que o céu lhe tinha deixado para mitigar a dor de tão sensíveis perdas.

Ali na solidão daquela fazenda, todos os dotes que Paulina recebera da natureza e da educação, vieram a tornar-se-lhe inteiramente inúteis. As belas faculdades de que o céu a dotara, e que no colégio começavam a desabrochar com brilho, ali, sem achar expansão alguma, concentravam-se em si mesmas, e Paulina, que tinha muita sensibilidade e imaginação viva, foi-se tornando de um caráter disposto à melancolia e a essas paixões vagas, que ao despontar da puberdade costumam atormentar as organizações poéticas e delicadas. Poucas vezes deixava o retiro de sua fazenda para ir a Uberaba, que aliás naquele tem­po era ainda uma insignificante aldeia. A família de um fazen­deiro vizinho, seu parente, que morava daí a duas léguas, era a única que de quando em quando vinha interromper com suas visitas a monótona solidão do viver de Paulina. Seu pai bem a induzia a passear mais freqüentemente ao arraial, a ir passar alguns dias em companhia de suas primas. Mas ela parece que não achava muito encanto na companhia das primas nem nas festanças do arraial, e lhes preferia a solidão de sua casa e a companhia de seu velho pai, para quem era toda extremos, e poucas vezes se utilizava dessas permissões. Alguns passarinhos, o cuidado de um pequeno e lindo jardim, alguns livros e seus trabalhos de agulha, bastavam para encher-lhe agradavelmente o tempo.

Havia já alguns minutos que Paulina se achava à entrada do rancho entretida naquele serviço, quando subitamente ergueu a cabeça, sacudiu para trás os compridos cabelos, alongou o colo, e pôs-se a escutar... fazia lembrar o esbel­to e arisco colhereiro, que estando a pescar tranqüilamente à borda do lago, ao sentir qualquer rumor alça o colo rosado prestes a bater as asas.

Paulina estava escutando um toque de cães de caça, que vinham descendo pela mata, córrego abaixo, com incrível assanhamento. Os latidos dos cães e a vozeria dos caçadores, que os açulavam, se aproximavam rapidamente atroando a floresta, e era evidente que o animal, fosse qual fosse, que era acos­sado, vinha acompanhando o córrego, e tinha de saltar no roçado exatamente em frente do rancho, em que se achava Paulina. Ela, posto que algum tanto afeita a essas cenas selváticas, não deixou de amedrontar-se, e correu para dentro do rancho.

– Suzana! Suzana!... gritou ela para a negra, – não ouves?... aquele toque de cachorros?... meu Deus! não vá ser algum bicho bravo!...

– He! ha! santa virgem! murmurou a negra depois de chegar à porta do rancho e escutar um momento. – Aquele toque, sinhazinha, se ele não é de anta, quer me parecer que é de onça. Cachorro não está latindo alegre como quando toca veado, não.

– Ouça, Suzana!... ah! meu Deus! que medo! o que será de nós aqui sozinhas!...

– Não tem susto, sinhazinha; onça não vem cá, não; não está aí tanta gente pra matar ela?...

– Quem sabe, Suzana; – chama meu pai, chama depressa...

– Sossega, sinhazinha; – olha, lá vem eles todos...

De feito o fazendeiro, que ouvira também a tocada dos cães, tinha largado imediatamente o serviço e descia pela encosta acompanhado de alguns escravos armados de foices e machados, e vinham fazer frente ao animal que saltasse da mata.

Um momento depois um enorme animal amarelo malhado de preto surgiu da mata e, rápido como um corisco, saltando pelas coivaras se encaminhava para o lado do rancho, onde nesse mesmo instante chegavam dois possantes e reso­lutos negros, que o velho mandara a toda a pressa para fica­rem junto de Paulina. Os negros, que avistaram a onça, romperam numa horrível gritaria:

– É onça! é onça! acode gente!... mata! mata!– Espavorida com aqueles berros a onça estacou um momento.

Ela estava apenas como a uns duzentos passos do rancho; perto se achava um tronco de peroba meio tombado, que ao cair ficara engastalhado na galhada de uma árvore vizinha. A onça pulou nele, e correu a empoleirar-se no ponto mais alto, a que pôde galgar. Os cães, que a perseguiam, desembocavam da mata e se reuniam embaixo do tronco, escalavrando-o com unhas e dentes, e dando saltos e ganidos furiosos. Assalto inútil! a onça passeava mui ancha e sobranceira ao longo do pau, e ora subia até a mais alta grimpa, ora descia até quase ao alcance deles, arreganhando-lhes os dentes como num sorriso feroz a mofar de seus vãos esforços, e apoiando a cabeça enorme sobre as patas dianteiras os contemplava bem de pertinho, e como que os contava um a um em ar de desdém.

Entretanto o fazendeiro acompanhado de seus escravos vinha atropeladamente rompendo através das coivaras, e se aproximava da fera.

Paulina que transida de pavor mal ousava deitar a cabeça fora da portinhola do rancho, em vão bradava com quantas forças tinha: Meu pai! meu pai! por quem é? não vá lá!

O velho avizinhou-se intrépido do terrível animal, apontou-lhe direito ao sangrador a espingarda de fiança, que sempre trazia consigo, mas decerto a mão vacilou-lhe, porque tiro apenas pegou de leve na costela da onça. O animal irritado deu um urro medonho, desceu até ao meio do tronco curvou o dorso como cobra que quer dar o bote, pulou por cima de toda a alcatéia de cães, que esganiçando se apinhavam embaixo do pau, correu como uma seta para o lado do rancho, e embarafustou por ele adentro.

Os negros soltaram a um tempo um grito de pavor, e o velho fazendeiro sentiu gelar-se-lhe o coração de susto, as pernas bambearam-lhe, e quase que foi ao chão. Mas o amor paternal sobrepujou o terror, e o pobre velho tropeçando, abalroando e caindo pelos tocos e coivaras correu com a maior celeridade que pôde para o lado do rancho; o mesmo fizeram os escravos, que o acompanhavam. A onça, quando entrara no rancho atropelada e acossada de perto pelos cães, nem de leve tocou, e talvez nem viu as duas criaturas, que lá se achavam; cuidando que ali seria uma toca, onde acharia guarida segura, só tratava de defender-se contra os que a perseguiam.

O rancho tinha somente aquela estreita entrada, onde há pouco Paulina se achava sentada. As duas míseras mulheres não tinham nem para onde correr, pois a onça apoderando-se dessa entrada voltara a frente para fora mostrando a seus perseguidores as alvas e enormes presas, e as formidáveis pa­tas capazes de estrangular um boi. Paulina para logo caiu desfalecida; a negra mais morta que viva recolheu-se toda ao ângulo, que a coberta formava com o chão, como querendo entranhar-se pela terra adentro, tiritando de medo e encomen­dando a alma a Deus.

Assim pois naquele mesmo lugar em que ainda há pouco se sentava a criatura mais primorosa da terra, um transunto dos anjos do céu, respirando inocência, paz e ventura, ala­pardava-se agora o mais feroz e hediondo dos seres da criação, com os olhos chamejantes de furor, e as goelas abrasadas em sede de sangue.

Enquanto o fazendeiro com mão trêmula carregava a espingarda, os negros, que não tinham por armas senão foices e machados, hesitavam na maior perplexidade sobre o que deveriam fazer. Atacar a fera sem ter certeza alguma de ma­tá-la de um só golpe, era perigosíssimo; ela podia num momento estraçalhar mais de um, ou o que ainda seria pior, recuando para o interior do rancho voltar sua sanha contra as duas infelizes, que lá se achavam na mais crítica e assustadora situação.

Enquanto os pretos vacilavam, e o amo escorvava espingarda, um cavaleiro a todo o galope rompe da mata, e investe para o rancho, a cuja porta a onça dava combate sanguinolenta aos cães, que ousavam aproximar-se-lhe. Já esta­va na distância de um tiro de espingarda, quando seu cavalo embaraça-se nas coivaras, e cai. Mas lesto e pronto o cava­leiro salta fora dos arreios, e com uma pistola em cada mão avança resoluto para a onça e desfecha-lhe à queima-roupa um tiro na cabeça. Em dois arrancos o feroz animal arroja-se sobre ele, lança-o por terra, e cai também para um lado estrebuchando e morre.

Nesse momento chegavam já, porém tarde, os outros caçadores, que vieram achar três corpos exânimes, a onça, que expirara, o cavaleiro malferido e banhado em sangue, e Paulina desmaiada. Uma das enormes patas da onça tinha apanhado em cheio o peito do infeliz caçador, e lacerando-lhe cruelmente as carnes o havia derribado no chão sem sentidos.

Uma cuia de água fria lançada na cabeça de Paulina restituiu-lhe prontamente os sentidos, e o consternado pai levantou aos céus as mãos agradecidas chorando de alegria ao ver que felizmente sua filha estava ilesa. Mas o denodado caçador, o intrépido salvador de sua filha, esvaía-se em san­gue que jorrava de três largos e fundos lanhos, que as gar­ras do animal lhe haviam aberto no peito, e o velho e todos os mais estavam na mais cruel aflição e desassossego por se acharem naquele ermo tão longe de qualquer recurso. Lava­tórios de água fria, fios e ataduras, que eram os meios de que ali se podia lançar mão, nada conseguia estancar o san­gue, que corria copioso das feridas. A própria Paulina, a quem o pai em rápidas e animadas palavras contara o ocorrido, já esquecida do seu susto, pálida e consternada se debruçava sobre o corpo exânime do ferido, e rasgando o lenço e a saia do seu vestido fazia atilhos e chumaços, que com suas próprias mãos ia aplicando sobre as feridas.

Felizmente, mais sabido do que todos eles em matéria de curar feridas, um preto velho tinha corrido ao mato, e voltava com um punhado de folhas na mão. Apenas chegou, todos se arredaram para lhe dar lugar. O preto ajoelhou-se perto do ferido, tirou todos os fios e ataduras, e fazendo pantomimas e murmurando palavras cabalísticas, mascou três ou quatro bocados das folhas que trazia, e foi deitando-as sobre as feridas. Em poucos instantes o sangue estava estancado, e o caçador conduzido para o interior do rancho e cuidado­samente deposto sobre uma esteira, em menos de uma hora recobrou os sentidos. Dali forçoso era levá-lo para casa do fazendeiro para ser convenientemente tratado, pois havia perdido muito sangue e seu estado era melindroso.

A onça marrada a um pau pelas quatro patas e carre­gada aos ombros de dois possantes negros, que gemiam debai­xo do peso do truculento animal, e aos lados e atrás dela a cáfila dos cães arquejando de cansaço com as línguas depen­duradas, ganindo e uivando com um choro fúnebre; em se­guida o caçador cuidadosamente acomodado em um cobertor, de que armaram uma rede, conduzida por outros dois pretos; atrás dele imediatamente o velho fazendeiro e sua filha pálida e desgrenhada; depois o cavalo do caçador, que um escravo levava pela rédea, e logo em seguida os companheiros de caça do ferido conduzindo igualmente pela rédea suas ca­valgaduras, e por fim os escravos do fazendeiro com seus machados ao ombro, rematando como uma guarda de honra toda aquela comitiva, tal era o singular e curioso préstito, que por uma formosa tarde de agosto desembocando de escura e espessa mata desfilava pelo lançante de um risonho espigão ao longo de um buritizal, dirigindo-se à casa do ca­pitão Joaquim Ribeiro, que ficava como a meia légua do lugar do sinistro.