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Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais/II/XIV

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– Ah! senhor Ribeiro, – disse o padre com tom severo, apenas se acharam fora do aposento de Paulina, – foi uma grave imprudência a entrada daquele rapaz com as cartas no quarto da menina!... queira Deus daí não venha algum mau resultado.

– Tem razão, senhor padre; eu também logo vi o incon­veniente... mas que havia eu de fazer?... o maldito mole­que, e quem aqui o introduziu sem licença minha, tem a culpa de tudo. Mas como ela não soube da notícia senão na parte que tem de boa...

– Muito embora, senhor Ribeiro; toda e qualquer emo­ção violenta, ainda mesmo de alegria, no estado em que ela está lhe pode ser fatal.

– Tudo pode ser, senhor padre; mas eu nunca ouvi dizer que ninguém morresse de alegria.

– Como não, meu amigo?... em estado de plena saúde, ainda bem; mas no estado melindroso e crítico, em que se acha sua filha, qualquer impressão forte seja de dor ou de prazer, pode determinar uma crise, e nessa crise ela sucumbir.

A vida dela está presa por um fio tão delicado, que o abalo o mais insignificante pode quebrá-lo.

– Deus tal não permita, – disse o velho consternado; – e Deus queira que a presença desse moço também não lhe faça mal... seria bom fazê-lo sair...

– Para quê?... já agora o choque está recebido, e se tiver de produzir algum mau resultado, quer ele esteja, quer não, ele sempre há de aparecer.

Ribeiro e o padre continuaram conversando sem se afas­tarem muito do quarto de Paulina para poderem acudir prontamente no caso de algum acidente.

– Paulina!... minha Paulina! exclamou o mancebo, logo que se acharam a sós, sentando-se à beira da cama, e tomando entre as suas as mãos da moça. – Graças ao céu hoje posso chamar-te minha!... Deus teve compaixão de nós... somos felizes, Paulina.

– É verdade, Eduardo!... somos felizes; muito felizes... eu bem estava sonhando esta noite que uns anjos do céu estavam voando em roda de mim, cantando e dizendo que eu era a mais feliz de todas as mulheres. Eu estava muito contente; mas o que me causou mágoa... foi ver lá somente o meu primo, que estava a um canto sombrio e pe­saroso, e não te ver em parte alguma...

– Mas estás vendo-me agora, minha querida, feliz e contente junto a ti, e isto agora não é um sonho.

– Não é... mas parece... custa-me a crer em tamanha felicidade... que eu nunca esperei. Eu ia morrer de má­goa e pesar... mas agora creio que morro de felicidade... Eduardo!...

Paulina arquejava; suas faces começavam a enrubescer, e seus olhos enchiam-se daquele reflexo brilhante e vago, que costumava acompanhar o delírio.

– Ah! meu Deus! meu Deus! – murmurou consigo Eduardo aterrado e com o coração transido de angústia;– é a febre!... é o delírio que volta!...

– D. Paulina, – disse em voz alta, – deixemos esta conversa para logo... temos tempo de sobejo para isso... temos uma vida inteira de amor e felicidade... por enquanto a senhora precisa de descanso; deite-se e sossegue.. . adeus!... eu vou mandar vir-lhe um cordial, e volto breve.

– Não, não! – disse a moça cada vez com mais exal­tação. Não consinto; fica aí, Eduardo. Não quero perder um momento... de tua companhia neste dia tão feliz... o me­lhor cordial é o nosso amor, não é assim, Eduardo?...

– É, d. Paulina, mas a sua saúde...

– Não me fales em saúde... eu não sofro nada... sou tão feliz.. Olha, Eduardo, olha esta face... este beijo fu­nesto... está me ardendo ainda... apaga-o, Eduardo, apaga esse beijo com tua boca...

Falando assim Paulina estendia a cabeça, e apresentava a face a Eduardo de um modo tão meigo e suplicante, que ele quase contaminado do mesmo delírio chegou-lhe os lábios e beijou-a com ardor.

A face de Paulina estava fria. Eduardo aterrado desviou o rosto, e encarou-a com atenção. Os olhos baços mal refletiam uma luz frouxa como de quem vai adormecer; o car­mim das faces tomava um tom lívido, as pálpebras tremiam-lhe; mas um fraco sorriso estava sempre fixo em seus lábios, e pairava-lhe sobre a fronte angélica serenidade.

Paulina enlaçou-se ao pescoço de Eduardo, e deitou a cabeça sobre o ombro dele como criança, que quer adormecer. – Eduardo! – murmurou com voz sumida, exalou um fraco soluço, e ficou imóvel.

– Paulina! Paulina! – exclamou o moço assustado, agitando a brandamente. – Estava de feito adormecida.

Eduardo pousou-a de mansinho sobre o travesseiro; examinou a com mais atenção. Estava morta !

Tão tênue era o fio, que prendia à vida aquela débil e mimosa criatura, que não pôde resistir àquela última emoção.

Morreu nos braços da felicidade, com o sorriso nos lábios e o prazer no coração.

Dir-se-ia, que não foi a morte com o seu sopro sinistro que extinguiu aquela existência; mas que um anjo de Deus, baixando sobre o frágil e formoso corpo de Paulina, veio sorrindo cerrar-lhe as pálpebras, e sorvendo-lhe a alma num beijo, a conduziu para o céu.

Algumas horas depois dois pretos conduzindo um cadáver ensangüentado em uma rede chegavam à casa de Joaquim Ribeiro.

Era o cadáver do infeliz Roberto, que levavam a sepultar no cemitério de Uberaba.

O padre, porém, não consentiu que dessem aquela caminhada inútil, fazendo-lhes ver que o pároco da Uberaba por modo nenhum podia consentir, que se enterrase em lugar sagrado o cadáver do suicida.

Foi sepultado a meia légua de distância da fazenda, junto a um capão à beira da estrada.

O padre não quis benzer o lugar da cova, nem rezar sobre o cadáver as orações dos finados.

Mas o povo, que compreende melhor a infinita miseri­córdia divina, e tem mais fé nelas do que os próprios minis­tros da religião, cravou sobre a sepultura uma cruz de pau toscamente lavrada; – à sombra desse símbolo santo toda a terra é sagrada.

Joaquim Ribeiro também não consentiu que a filha fosse enterrada no cemitério comum; não queria afastar-se, nem mesmo na morte, daquela que tanto idolatrara na vida. Não podendo guardar aqueles restos queridos em um magní­fico túmulo de mármore, porque naqueles sertões faltava-lhe tudo – o artífice e a matéria – mandou benzer e cercar um pequeno terreno no alto de uma risonha colina que ficava à vista da casa, não muito além do sítio em que dormia o eterno sono o desafortunado Roberto, e ali guardou no seio da terra aquele depósito sagrado. Mandou depois erigir ali uma capelinha singela, mas alva e asseada, que se divisava a grandes distâncias servindo de farol ao viandante por aquelas vastas e descampadas solidões.

Ali o velho e infeliz pai ia rezar todos os dias, até que pouco tempo depois ali foi também repousar ao lado de sua filha.

Contava o povo, que um triste noitibó, que todas as noi­tes fazia seu pouso nos braços da cruz da sepultura de Ro­berto, saía de lá alta noite soltando guinchos lamentosos, e vinha pousar nos muros do cemitério; e que uma pomba alva como neve saía batendo as asas da sepultura de Paulina, e desaparecia nos ares.

Era, dizia o povo supersticioso, a alma de Roberto, que andava penando em busca de Paulina, que fugindo sempre dele ia se esconder no céu.

Assim o sempre infeliz Roberto, bem como durante a vida, viera também depois de morto repousar e suspirar ainda junto daquela, por quem seu coração havia suspirado em vão durante a vida inteira.

Eduardo desapareceu, e ninguém sabe ao certo o que fora feito desse mal-aventurado moço.

Correu fama de que se retirara para a Bahia e que aí tomando o burel de frade morrera pouco tempo depois em um convento.