Historias de Reis e Principes/III

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III

D. Beatriz de Portugal


I

Todos nós fomos litterariamente educados com a Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro, o mavioso livro das saudades. Temos de cór, pelo menos, as primeiras palavras d'esse livro galante e cavalheiresco: «Menina e moça me leváram de casa de meu pai para longes terras...» Todos nós nos costumámos a vêr na Menina e Moça, de Bernardim, a infanta D. Beatriz de Portugal, filha do rei D. Manuel.

Diogo Barbosa Machado, na Bibliotheca Lusitana, deu curso á lenda, assignalando a fonte onde a bebêra. E digo fonte para não desaproveitar um calembour, por isso que se trata da Fuente de Aganipe, de Faria e Sousa.

Por sua parte diz Barbosa Machado:

«Arrebatado de impulsos amorosos (Bernardino ou Bernardim Ribeyro) passava muitas noites entre a espessura e solidão dos bosques, explicando junto á corrente das aguas, com suspiros e lagrimas, a vehemencia de paixão tão violenta que o obrigou a emprehender impossiveis dedicando os seus affectos á infanta D. Beatriz, filha do serenissimo rei D. Manuel, como elegantemente o contou Manuel de Faria e Sousa...»

Costa e Silva, no Ensaio Biographico-critico, reproduziu a lenda d'esses suppostos amores do poeta, desventurosos por desiguaes. Conta-nos o seu desespero quando o rei de Portugal concedeu a mão da infanta ao duque de Saboya; o seu ermar solitario pela serra de Cintra, bradando ás penhas e entalhando no tronco das arvores o nome de Beatriz; finalmente, a partida do trovador para Saboya, sob o disfarce de peregrino, e o seu furtivo encontro em Saboya com D. Beatriz:

«Chegando alli depois dos trabalhos e perigos de tão longa jornada, indagou qual era a igreja onde a duqueza costumava ouvir missa, e esperando-a na porta, lhe pediu esmola quando passou. A duqueza, que logo o conheceu, apesar da differença do traje e do transtorno que as maguas e saudades haviam feito em suas feições, parou, e, dando-lhe esmola, lhe disse baixo em portuguez:

—Já lá vai o tempo dos antigos galanteios.»

Segundo a versão de Costa e Silva, Bernardim Ribeiro, recolhendo á patria, e voltando á serra de Cintra, ahi terminou em breve os seus dias.

Era natural, como aconteceu, que esta antiga lenda tão profundamente sentimental se impozesse á imaginação dos escriptores portuguezes que floresceram ao tempo de fazer-se entre nós a evolução romantica.

De facto, Garrett, no canto nono do Camões, ensancha-a com felicidade na descripção de Cintra:

Tradição é que nomeado vate,
D'alta beldade mysterioso amante,
Entre as fragas erguêra a mansão triste,
Onde cevou de tristes pensamentos
O coração cortado de saudades.
Saudade pelas pedras entalhada
Se lia em caracteres bem distinctos;
E o nome de Beatrix, tambem gravado
Na silice do monte, lhe responde,
Como echo das endeixas namoradas
Do cantor da soidão.

Garrett não podia esquecer o poetico episodio da partida de Bernardim Ribeiro para Italia:

Subito um dia, de bordão na dextra,
Na opa de peregrino disfarçado
Desce os montes da Lua, e mais erguidas
Serras demanda; em romaria aos Alpes
Parte, a levar o coração votado
A quem talvez, na purpura, suspira
Pelos andrajos do mendigo amante.
Vel-o-ha, o objecto de suspiros tantos,

De saudade tão longa, da romage
Devota, mas só vêl-o, e adeus eterno,
E para sempre adeus!... Crueis lhe vedam
Mais que esse adeus. Voltou á patria, e morre.

Na respectiva nota da primeira edição do Camões, Garrett dá como factos assentes o isolamento de Bernardim Ribeiro na serra de Cintra e a sua ida de peregrino aos Alpes. Na segunda edição, porém, revela duvidas a respeito dos derradeiros dias do poeta, dizendo que «eram a parte menos decifrada e decifravel do enigma de sua vida» e desculpando-se com ter seguido no texto do poema a tradição mais vulgar.

No Auto de Gil Vicente, representado com grande applauso no theatro da rua dos Condes, Bernardim Ribeiro inspira uma dupla paixão a Paula Vicente, filha de Gil Vicente, e á infanta D. Beatriz. A dedicação de Paula pela infanta vai até o ponto de sacrificar o seu proprio coração á paixão que a infanta nutre pelo trovador. Todo o entrecho d'esta peça inicial do moderno theatro portuguez é fornecido por um auto de Gil Vicente, de que a seu tempo nos occuparemos. O casamento da infanta realisa-se, e ella parte para Italia a bordo do galeão «Santa Catharina». Bernardim conseguiu ir a bordo dizer o ultimo adeus á infanta; mas el-rei D. Manuel chega pouco depois para se despedir da filha. Bernardim encontra-se n'uma situação desesperada, receiando comprometter a infanta e Paula Vicente. Prefere morrer a desacredital-as: precipita-se no Tejo.

O lance é de effeito para um final d'acto, que de mais a mais é o ultimo. E a responsabilidade historica de Garrett salva-se de algum modo, porque Bernardim Ribeiro póde não ter perecido no Tejo. Isto mesmo diz Garrett em nota á segunda edição do Camões: «... Bernardim Ribeiro lança-se ao mar, no Auto de Gil Vicente, mas nenhum nuncius, nenhum koros veio fóra, como na comedia ou tragedia antiga, dizer ao publico: «Bernardim Ribeiro afogou-se com effeito; nunc plaudite

Ora em uma das annotações com que o Auto de Gil Vicente sahiu impresso, escreveu Garrett:

«Em a nota E, ao canto nono do poema Camões, no 1.º vol. d'esta collecção, pag. 275, se promette illustrar o ponto d'estes amores de Bernardim Ribeiro e da sua romanesca vida. Mas não me atrevo por ora a cumprir tal promessa. Aqui atirei com elle ao mar, porque me era preciso: e o publico disse que era bem atirado. É o que me importa. Se elle foi ou não a Saboya depois, como eu já cuidei averiguado, se andou doido pela serra de Cintra, tambem me não atrevo a certificar.—O que parece mais certo é que não morreu de paixão, porque depois foi feito commendador da ordem de Christo, e governador de S. Jorge da Mina, onde talvez morresse de alguma carneirada: materialissimo e mui prosaico fim de tão romantica, saudosa e poetica vida.

«Aprendei aqui, ó Beatrizes d'este mundo!»

No terceiro volume do Romanceiro encorporou Garrett dois romances extrahidos da Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro: A Ama, Avalor; e o soláo Cuidado e Desejo, que se encontra entre as eclogas do poeta, appensas á edição da Menina e Moça, feita em 1852 pela empreza da Bibliotheca portugueza (Lisboa).

Todas estas tres composições são precedidas de pequenos prefacios elucidativos.

Fica pois bem accentuada a grande influencia que a tradição poetica dos amores de Bernardim Ribeiro exerceu no espirito delicado e na imaginação romantica de Garrett. O caso, em verdade, não era para menos. Cintra, a formosissima Cintra, como tablado; como actores, uma princeza e um trovador. E depois ainda a corrente tradicional dos costumes trovadorescos: «não estava tão longe o tempo em que princezas e rainhas ouviam sem enfado e acceitavam sem desaire as homenagens dos trovadores.»

Alexandre Herculano, no 3.º volume do Panorama, escreveu um artigo a respeito dos amores de Bernardim Ribeiro com a infanta D. Beatriz. Acha escuro este problema historico, mas acceita a lenda. Lamenta que Garcia de Rezende, que tão curiosas informações nos legou sobre a partida da infanta para Saboya, se abstivesse, talvez por considerações palacianas, de tocar o assumpto. Cita Damião de Goes para mostrar que o casamento fôra mal recebido dos portuguezes, que não reconheciam no duque de Saboya qualidades nem de nascimento nem de posição para tomar por mulher uma filha do rei D. Manuel. E não lhe parece que estas razões fossem as unicas que imperaram no animo dos portuguezes para desestimar o casamento. Copía, em reforço da sua opinião, um codice da primeira metade do seculo XVI, existente na bibliotheca real, da qual transcreve os seguintes periodos com relação á viagem da infanta:

«... e a um domingo, dia de S. Miguel, de setembro do anno de 521, chegaram a Villa-Franca de Niça, porto do duque de Saboya, a uma hora depois do meio-dia; e assi das náus como da villa se fez grão festa d'artilharia. E o duque mandou pedir á infante, que não dormisse na nau; e ella se escusou de sair por aquella noite; e vendo o duque sua escusa, foi lá em pessoa com alguns gentishomens, e lhe pediu que com toda maneira saisse: ella o fez por conselho do conde, contra sua vontade, e de todos, e saiu com tochas; onde achou doze facas guarnecidas, para si, e para as damas, e alguns chibaos para os fidalgos, porque d'alli a Niça, onde era a povoação, pelo rio acima, era meia legua; e ahi foram ter. E a duqueza de Nemuns (Nemours) irman do duque, e mãe d'el-rei de França, que ahi estava, saiu fóra ao terreiro das casas, onde o duque pousava, a receber; e ahi se fizeram grandes ceremonias e cortezias. E alli foi com a infante para dentro, e assi a rainha por hospeda aquella noite. Ao outro dia pela manhã foram ouvir missa a um mosteiro de S. Domingos, pegado com as casas; e um cardeal, que ahi era, disse missa, e os benzeu...

«O duque é homem pequeno de corpo, e alvo; de rosto comprido, e fêo de tudo: tem um hombro mais alto que o outro, e é um pouco azumbado, e as pernas delgadas, e muito prudente. A este casamento, eram vindos um cardeal e tres bispos, e um marquez, e tres condes, e logo se tornaram. Em Niça estiveram oito dias, nos quaes alguns justaram, e o duque deu banquete aos portuguezes: e a cabo dos oito dias partiu com a infante para Piamonte: e á partida a infante se achou só em uma faca, com dous moços d'estribeira; e como ia de cá acostumada de andar d'outra maneira, achava-se corrida, e não soube que fazer, senão tornar-se ás lagrimas, porque a mór parte dos portuguezes eram já embarcados para se tornar. E alguns outros que por a servir aqui se iam acompanhar, não o consentiram, que assi lhes era ordenado do duque: e ao passar de uma ponte, uns cem alabardeiros lhes pozeram as alabardas nos peitos, e não consentiram que passassem ávante. As damas iam em chibaos d'aluguer, com varas nas mãos, sem nenhuma companhia d'homem, caindo a cada passo por seguir a infante pranteando e chorando sua orfandade, e a pouca honra e gasalhado que dos saboianos recebiam; e dizendo d'elle muitas pragas, e a pouca virtude e honra com que os tratava.»

D'estas passagens do codice tira Alexandre Herculano as conclusões que fazem ao seu proposito.

Ainda explica a repugnancia da infanta em desembarcar por estar informada da figura despicienda do duque; mas para explicar a dureza com que Carlos de Saboya trata D. Beatriz, poucos dias depois de casada, sendo certo que empregára grandes esforços para obter a sua mão, recorre Alexandre Herculano á conjectura de que «a noticia dos amores da infanta com um cavalleiro portuguez teria chegado aos ouvidos do senhor Vallaison (Claudio) que revelaria a seu amo, depois das nupcias, o terrivel segredo que levára de Portugal, e porventura o receio de que entre os que na viagem a acompanharam existisse o seu rival, e de que alguma das damas o favorecesse.»

O quadro da desamoravel lua de mel, que a infanta D. Beatriz, segundo o author do manuscripto, tivera em Saboya, não obstante a tradicional formosura da infanta, contrastaria asperamente com as alegrias com que os esponsaes foram celebrados na côrte de Portugal, onde Gil Vicente fez representar a tragicomedia das Côrtes de Jupiter, um dos autos que, a nosso vêr, melhor caracterisam a funcção truanesca que Gil Vicente desempenhava no paço, pelas allusões pessoaes a personagens importantes que elle irrisoriamente converte em peixes,—baleia, raia do alto, çafio, etc.

Veremos porém até que ponto, graças a um auxilio poderoso, lograremos esmiuçar a verdade.


II

Em 1867 publicava Camillo Castello Branco o livro intitulado Cousas leves e pezadas, e ahi, em nota á pagina 17, escrevia o seguinte:

«O meu parecer é que Bernardim, tambem Bernaldim Ribeiro, ou Bernardim Reinardino Ribeiro, como Faria e Sousa o chama, nem foi governador de S. Jorge da Mina, nem amou a infanta D. Beatriz, nem sahiu da sua terra, para Lisboa, senão depois que ella já tinha sahido de Lisboa para Saboya. Corre-me obrigação de pôr as clausulas d'este meu juizo, tão encontrado com o de doutos investigadores. Fal-o-hei em pouco, porque não cabe n'este genero de escriptos grande cavar em terra d'onde o que sae, para o cummum dos leitores, é pedregulho.

«Em primeiro, tenho como provavel que Bernardim Ribeiro, sob o pseudonymo de Jano, falla de si na ecloga 2.ª Ahi diz elle:

Quando as fomes grandes foram,
Que Alemtejo foi perdido,
Da aldéa que chamam Torrão
Foi este pastor fugido:
Levava um pouco de gado, etc.

«E continúa:

Toda a terra foi perdida;
No campo do Tejo só
Achava o gado guarida.
Vêr Alemtejo era um dó;
E Jano para salvar
O gado que lhe ficou,
Foi esta terra buscar, etc.


«Temos, pois, o poeta allegorico do Torrão—naturalidade que todos os biographos unanimemente dão a Bernardim Ribeiro—em Lisboa no anno das grandes fomes, que foi em 1522. Ora, D. Beatriz, em 9 de agosto de 1521, tinha sahido para Saboya.

«Nenhum biographo até agora assignou o anno do nascimento ou da morte de Bernardim Ribeiro. Póde, se o meu modo de decifrar a ecloga é plausivel, marcar-se-lhe o anno do nascimento em 1500, ou 1501 mais exacto, porque o pastor, n'outro ponto da mesma ecloga 2.ª, diz:


Agora hei vinte e um annos,
E nunca inda até agora
Me acorda de sentir damnos... etc.


«Quanto ao governo de S. Jorge, capitania-mór das armadas da India e commenda de Villa Cova, é tudo isso um equivoco do auctor da Bibliotheca Lusitana, com o qual se bandeou a boa fé de escriptores de grande porte. O Bernardim Ribeiro, governador de S. Jorge da Mina, assistiu em 1526
ao cêrco de Mazagão, d'onde sahiu abrasado d'uma explosão de polvora. (Veja a Chronica de D. Sebastião, por D. Manuel de Menezes).»

Innocencio Francisco da Silva, no tomo VIII do Diccionario Bibliographico, pag. 379, não acceitára como definitivos os reparos de Camillo Castello Branco e appellára para investigações ulteriores.

No 10.º vol. das Noites de Insomnia, Camillo Castello Branco voltou ao assumpto, dizendo:

«Ulteriores investigações que fiz em cartapacios genealogicos e coevos, levaram-me da certeza á evidencia de que Bernardim Ribeiro, o poeta, não era Bernardim Ribeiro Pacheco, o commendador de Villa Cova, da ordem de Christo e capitão-mór das naus da India, casado com D. Maria de Vilhena, filha de D. Manuel de Menezes, nem ainda o outro Bernardim Ribeiro, governador de S. Jorge.»

Camillo estuda em seguida a genealogia dos tres Bernardins, que andam fundidos no auctor da Menina e Moça.

O snr. Theophilo Braga publicou em 1872 o volume dedicado, na sua Historia Litteraria de Portugal, a Bernardim Ribeiro.

Ahi, procurando reconstruir a biographia do poeta pela interpretação critica das suas obras, sustenta que Bernardim Ribeiro viera do Torrão para Lisboa em 1496, quando tinha vinte e um annos (Ecloga 2.ª), o que permitte fixar a época do seu nascimento em 1475.

Parece ao snr. Theophilo Braga que já o poeta teria tido em 1496 o primeiro amor, inspirado por D. Maria Gonçalves Coresma, que casára com um viuvo do Alemtejo, chamado Alvaro Mendes Casco.

Suppõe que D. Maria Coresma seja a Cruelsia da Menina e Moça, abandonada pelo poeta, a quem Aonia enfeitiçára com a sua belleza.

E explica por esta situação moral, em que Bernardim Ribeiro se encontrava, o vilancete que Boutlerweck publicou na sua Historia da Litteratura Portugueza e que vem reproduzido na edição das obras do poeta, feita em 1852 pela Bibliotheca portugueza:

Não sou casado, senhora
Pois inda que dei a mão
Não casei o coração.

Antes que vos conhecesse
Sem errar contra vós nada,
Uma só mão fiz casada,
Sem que mais n'isso mettesse.
Dou-lhe que ella se perdesse,
Solteiros os versos são,
Os olhos, e o coração.

Dizem que o bom casamento
Se ha de fazer por vontade,
Eu a vós a liberdade
Vos dei, e o pensamento.

N'isto não me achei contento
Que se a outra dei a mão,
Dei a vós o coração.

Como, senhora, vos vi,
Sem palavras de presente
Na alma vos recebi,
Onde estareis para sempre.
Não, dei palavra sómente,
Não fiz mais que dar a mão,
Guardai vós o coração.

Casei-me com meu cuidado
E com vosso desejar,
Senhora, não sou casado,
Não m'o queiraes acuitar.
Que servir-vos, e amar
Me nasceu do coração
Que tendes em vossa mão.

O casar não faz mudança
Em meu antigo cuidado,
Nem me negou esperança
Do galardão esperado:
Não ma engeiteis por casado,
Que se a outra dei a mão,
Dei a vós o coração.

Francamente, a interpretação que o illustre escriptor snr. Theophilo Braga deu a este vilancete, parece-nos forçada.

A affirmação do poeta, na hypothese de que o vilancete seja realmente seu, é tão categorica:

Não me engeiteis por casado,
Que se a outra dei a mão,
Dei a vós o coração

que não se acceita sem certa repugnancia a explicação de que elle se referia apenas ao galanteio que tivera com D. Maria Coresma, solteira ou casada, mas a quem, em todo caso, não havia dado a mão de esposo.

Este ponto julgamol-o ainda escurentado de grandes duvidas.

Mas, como quer que seja, o snr. Theophilo Braga, occupando-se dos segundos amores do poeta com a Aonia da Menina e Moça, suppõe que Aonia é o anagramma de Joanna, e que esta dama é D. Joanna de Vilhena, prima d'el-rei D. Manuel, e filha de D. Alvaro de Portugal, a qual viera para a côrte no tempo do casamento da princeza D. Izabel (Beliza) com o principe D. Affonso em 1491.

D. Joanna de Vilhena casou em 2 de fevereiro de 1516 com D. Francisco de Portugal, primeiro conde de Vimioso, um dos poetas do Cancioneiro de Garcia de Rezende.

Este casamento é a catastrophe que ensombra a vida do poeta. Na Menina e Moça, Bimnarder, anagramma de Bernardim, sabendo do casamento de Aonia «se foi, e não no viram mais.»

Francisco Antonio Varnhagem, que morreu visconde de Porto Seguro, publicou um livro, que precedeu o do snr. Theophilo Braga, pois que este escriptor a elle se refere desfavoravelmente (pag. 107), e que se intitula Da Litteratura dos Livros de Cavallaria (Vienna, 1872).

Varnhagem, que se dedicou muito ao estudo da nossa historia litteraria, interpretou do seguinte modo os anagrammas da Menina e Moça:

Aonia por Joanna.
Arima por Maria.
Avalor por Alvaro.
Beliza por Izabel.
Boslia por Lisboa.
Cruelsia por Lucrecia.
Donanfer por Fernando.
Enis por Ines.
Fartesia por Tiséfara (?)
Godivo por Dioguo.
Jenao por Joane.
Lamberteu por Bartelmeu.
Loribaina por Briolanja.
Narbindel por Bernaldin.
Olania por Anjola (?)
Bomabisa por Ambrosia.
Tasbião por Bastião.
Zicelia por Cezilia.
Lamentor, modificação de Lamendor, por Manuel.

O snr. Theophilo Braga interpreta Bimnarder como outro anagramma de Bernardim, e Olania por Oriana. Eis os pontos de divergencia entre as duas interpretações.

Varnhagem commenta:

«Seja como fôr: o certo é que, decifrados os anagrammas, apparece Bimnarder apaixonado de certa Joanna, irmã de Izabel, mulher de Lamentor. Ora, se admittirmos que este fosse el-rei D. Manuel, resultariam os amores de Bernardim, não com a filha d'este rei, mas sim com sua cunhada D. Joanna, a mãi de Carlos V, mulher de Filippe o Bello, e filha (como a rainha D. Izabel sua irmã) dos reis catholicos Izabel e Fernando. Em tal caso o mesmo Filippe corresponderia ao Fileno e Orphileno (marido da Aonia da novella), etc.»

Não acha natural Varnhagem que Bernardim Ribeiro se apaixonasse por D. Beatriz, que nascêra em 1504 e a cantasse, quando ella era menina de menos de doze annos, no Cancioneiro de Rezende, que sahiu impresso em 1516.

Mas a verdade é que na Menina e Moça se diz: que «a senhora Aonia ainda então era donzella d'antre treze ou quatorze annos» e que menina e moça a levaram de casa de seu pai para longes terras.

Entende tambem o snr. Theophilo Braga que os dizeres com que abre a Menina e Moça não se podem referir á infanta D. Beatriz, que contava dezesete annos, quando foi levada para Saboya.

Como se vê, a opinião dominante nos ultimos quinze annos é contraria á lenda dos amores de Bernardim Ribeiro com a infanta D. Beatriz.

O snr. Theophilo Braga explica a formação da lenda pelo supposto facto de ter o poeta amado uma dama altamente collocada na côrte, parenta de el-rei D. Manuel, D. Joanna de Vilhena; pela prohibição, no Index de 1581, da novella Menina e Moça, o que lançou suspeitas sobre o conteúdo da novella; e pela coincidencia de Bernardim Ribeiro ter sahido de Portugal quando a infanta, em 1521, partiu para Saboya.

A lenda, recolhida no seculo XVI por Faria e Sousa, resuscitára com o romantismo pela reviviscencia das lendas nacionaes.

Acha o snr. Theophilo Braga que a idade do poeta e da infanta, em 1521, eram incompativeis entre si e a tresloucada paixão que a lenda attribuia a um homem de quarenta e seis annos por uma donzellinha de dezesete. Acha outrosim que a ingenita altivez do caracter de D. Beatriz não lhe permittiria descer até acceitar o galanteio de um trovador, de mais a mais amadurecido em annos.

No amor não ha incompatibilidades possiveis. Na historia de Portugal abundam estes desacertos de idade e de condição em assumptos amorosos.

A nós não nos repugna o facto de Bernardim Ribeiro, um poeta, se ter apaixonado por uma dama da côrte, que todavia, como diremos, não suppomos fosse a infanta, não obstante a desproporção das idades.

Mas, se D. Beatriz foi a inspiradora da paixão do poeta, o que podêmos provar com documentos historicos é que ella o esqueceu em Saboya, se algum dia o amou ou se soube que foi amada por elle.

Não é natural que D. Beatriz, tão magoada como o codice publicado por Herculano nol-a pinta, se absorvesse tão profundamente, e tão estranha ao seu proprio passado, nos deveres de esposa e princeza, como realmente acontecêra em Saboya, e como vamos mostrar.

É verdade que a lenda romantica conta que a duqueza de Saboya, reconhecendo o poeta no disfarce de mendigo á porta de um templo, lhe disséra, dando-lhe esmola:—«Já lá vai o tempo dos antigos galanteios.»

Mas tão empenhada a vamos encontrar nos negocios politicos e domesticos da côrte de Saboya, tão despreoccupada de recordações amorosas, tão adaptada moralmente ao meio em que se encontrava, que estamos convencido de que, se Bernardim Ribeiro a amou, não foi correspondido ou só ephemeramente o foi, o que não seria natural n'uma princeza educada nos serões galantes do Paço da Ribeira, sabendo-se amada por um poeta, e vivendo sacrificada na companhia de um marido, que não era poeta, e cujo desgracioso feitio as chronicas memoram.

Se, como quer o snr. Theophilo Braga, a Aonia da Menina e Moça é D. Joanna de Vilhena, primeira condessa de Vimioso, a Condessa Santa, completo foi o seu esquecimento do amor que inspirára ao poeta.

«Emquanto viveu o conde, escreve o padre Francisco da Fonseca na Evora Gloriosa, o imitou, e acompanhou em todas as obras virtuosas, attendendo cuidadosamente á educação de seus filhos, e ao prudente governo da sua familia, e casa, que debaixo da sua direcção era convento com apparencias de palacio. Era inimicissima do ocio, e por isso assim ella, como todas as suas criadas, se occupavam continuamente nos exercicios proprios do seu estado, umas cosiam, outras fiavam, outras faziam rendas ou fios para curar os necessitados. O mesmo usava com as senhoras, que a vinham visitar, dando a cada uma d'ellas algum trabalhinho, com que se entreter; e entretanto, ou lhe lia algum capitulo dos documentos, que o conde tinha composto, e lhe contava algum exemplo, ou historia santa, com que adoçar o trabalho; o que fazia com tanta graça, que assim sua irmã D. Brites, duqueza de Coimbra e Aveiro, com todas as mais senhoras continuavam e frequentavam com gosto a escóla de D. Joanna. Morto o conde, se deu totalmente a Deus, e, abraçando a terceira ordem de Santo Agostinho, fez uma vida verdadeiramente de santa. Remendava por suas proprias mãos os habitos dos frades, e lhes fazia o comer, quando estavam enfermos, amando-os e consolando-os a todos, como se fossem seus filhos: o mesmo praticava com as religiosas de Santa Catharina, e porque viu as lagrimas e suspiros da pobreza eborense por causa da falta que lhe fazia a morte de seu querido esposo, tomou muito a sua conta enxugar-lhe as lagrimas com opportuno remedio: escolheu para capellães e esmoleres a dous sacerdotes exemplares, em cuja companhia ia todos os dias visitar os enfermos da sua parochia: seguiam-n'a dous escravos, carregados de tudo aquillo de que podiam necessitar os enfermos, e ella por si mesma lhe repartia todos os mimos e os regalos: com estas, e outras muitas santas obras, continuou a nossa condessa a sua exemplarissima vida até os 24 de julho de 1559 em que Deus a chamou para a gloria.»

A dama que inspirára a paixão de Bernardim Ribeiro tinha os olhos verdes.

No capitulo XXI da Menina e Moça encontra-se o romance

Pensando-vos estou filha

que Garrett reproduziu no terceiro volume do Romanceiro com o titulo de A Ama.

N'esse cantar, á maneira de solau, como o classifica Garrett, encontra-se a seguinte allusão:

Mas não póde ser, senhora,
Para mal nenhum nascerdes,
Com esse riso gracioso
Que tendes sob olhos verdes.

Entre as eclogas de Bernardim Ribeiro encontra-se outro romance, que Almeida Garrett tambem reproduziu com o titulo de Cuidado e desejo, e ahi depara-se-nos uma outra referencia á côr dos olhos da sua dama:

Seus olhos verdes rasgados
De lagrimas carregados, etc.

Conhecemos dois retratos da infanta D. Beatriz de Portugal, duqueza de Saboya.

Um foi publicado no periodico litterario Universo Pittoresco. O artigo que o acompanha tem a assignatura do fallecido escriptor S. J. Ribeiro de Sá.

O artigo nada adianta, mas o retrato é copia do que se encontra em Turim na galeria dos retratos dos duques e duquezas de Saboya. Enviou-o para Portugal o snr. Miguel Martins Dantas, hoje ministro de Portugal em Londres, e então addido á legação de Sua Magestade Fidelissima em Turim.

O snr. Dantas fez acompanhar a copia d'esse retrato, que deve considerar-se authentico, das seguintes indicações:

«Rosto claro, olhos castanhos escuros, cabellos castanhos claro, bonet de velludo preto adornado de pedraria, e uma pluma branca; no pescoço um adresse de pedras roxas engastadas em oiro, acabando com uma perola. Uma especie de lenço, ao que parece de cambraia, com muito feitio occupa o espaço do decote—em roda uma bordadura de ouro. O vestido é de fazenda (não velludo) côr de castanha, atirando para roxo, com tufos brancos nas mangas, rematados com pedras roxas tambem engastadas em ouro, punhos brancos de renda, collar de perolas acabando com tres pedras iguaes ás outras: desde a cintura até ao chão ha um cordão formado de pedras azuladas engastadas em ouro.»

Pela descripção d'este retrato, existente na galeria de Turim, e que para todos os effeitos, repetimos, se deve considerar authentico, sabemos que os olhos da infanta D. Beatriz não eram verdes, como os que descreve Bernardim Ribeiro, mas castanhos escuros.

D'aqui, pois, se póde tirar um novo argumento para reforçar a opinião, aliás hoje dominante, de que não foi a infanta D. Beatriz a mulher amada pelo poeta das saudades.

Do outro retrato só ha pouco tempo tivemos conhecimento.

No leilão da livraria do fallecido visconde de Juromenha compramos, unicamente attrahidos pela indicação do respectivo catalogo, um livro intitulado—Notizie storiche intorno alla vita ed ai tempi di Beatrice di Portogallo duchessa di Savoia, con documenti per il barone Gaudenzio Claretta, membro della R. Deputazione sovra gli studi di storia patria—Torino, 1863, tipografia Eredi Botta, Palazzo Carignano.

Não tinhamos a menor noticia d'este livro, que versava um dos mais interessantes assumptos da historia de Portugal, não obstante haver sido publicado em 1863.

E como temos por indispensavel estudar a historia portugueza, para apural-a com segurança, pelo confronto do que escreveram os nossos historiadores com os dos paizes que comnosco tiveram relações politicas em determinadas épocas, fossem essas relações devidas a um casamento, a um tratado, a uma guerra ou a qualquer outra causa—systema este em que principalmente baseamos o nosso estudo historico ácerca da Excellente Senhora, Rainha sem reino,—procuramos a todo o custo obter esse livro, para nós desconhecido, cujo titulo nos aguçára a curiosidade e o interesse de possuil-o.

Mal diriamos n'essa occasião que, tambem pela venda de um espolio, adquiririamos pouco depois outro livro do mesmo author ácerca de uma época não menos notavel da historia portugueza.

O barão Gaudenzio Claretta dá n'aquelle seu livro noticia de duas medalhas que o duque de Saboya Carlos III mandára cunhar para perpetuar a memoria de sua esposa.

Uma d'ellas tem de um lado a effigie de D. Beatriz com a legenda: Beatrix dux Sabavdie e do outro os escudos de Saboya e Portugal com esta inscripção; Lvsitaniæ regis filia an svæ æt. 36.

A segunda medalha, que se encontra reproduzida no ante-rosto do livro, representa a duqueza de Saboya, ricamente vestida, com a legenda: Beatrix decvs Portvgallie ducissa Sabavdie.

Um argumento salta desde já aos bicos da penna.

Se Carlos III tivesse menospresado sua mulher pela revelação do segredo dos seus amores com um cavalleiro portuguez, como Herculano deprehende do codice por elle publicado no Panorama, não haveria decerto manifestado pela morte da duqueza um tão profundo sentimento como aquelle que se traduz pelo facto de haver mandado cunhar não apenas uma só medalha commemorativa—mas duas.

A effigie de D. Beatriz, gravada na segunda medalha, é claro que nada póde aproveitar para tirarmos a limpo a côr dos seus olhos. Mas a este respeito basta o testemunho fidedigno, a que já nos referimos, do snr. Miguel Martins Dantas. Em todo caso, a medalha é muito interessante, pois que reproduz, e devemos suppôr que com fidelidade official, as feições da infanta portugueza e a sua toilette.

A medalha representa-a com um toucado de pedras preciosas, que lhe circumdam os cabellos apartados ao meio e cahidos em madeixas sobre os hombros. Vestido de decote escanteado. Um pequeno cabeção de recortes com tres voltas de pedraria. Collar pendente. A meio do peito uma cruz suspensa da orla do decote.

As feições do retrato enviado pelo snr. Dantas ajustam-se inteiramente ás da effigie que a medalha representa: Nariz comprido, bocca pequena e grossa, testa alta, sobrancelhas pouco espessas e arqueadas, pescoço alto e bem lançado, estatura erecta, porte gentil.

III

Vamos porém á historia do casamento da infanta D. Beatriz de Portugal com Carlos III, duque de Saboya.

São conhecidos os pormenores da viagem da infanta pelo opusculo de Garcia de Rezende, que anda nas suas obras, intitulado Hida da infante D. Beatriz pera Saboya; e pelo capitulo LXX, quarta parte, da Chronica de D. Manuel, por Damião de Goes.

Já tivemos tambem occasião de referir-nos ao auto de Gil Vicente que tem por assumpto a viagem de D. Beatriz.

No tomo II das Provas da Historia Genealogica encontra-se a pag. 439 o Contrato do casamento, e a pag. 445 a longa enumeração dos objectos que constituiam o opulento enxoval da infanta.

Até aqui o que conhecemos dos livros portuguezes.

Agora passemos a soccorrer-nos da Memoria do barão Gaudenzio Claretta, a fim de a divulgarmos em Portugal, por ser realmente muito pouco conhecida entre nós.

O casamento realisou-se no 1.º de outubro de 1521, na igreja dos dominicanos de Niza, lançando a benção nupcial o bispo de Vercelli, Bonifacio Ferrero, que mais tarde se tornou conhecido pelo nome de cardeal de Ivrea.

Realisaram-se pomposos festejos publicos, primando entre elles, pelo seu luzimento, o torneio celebrado junto á porta Marina, no qual cavalleiros hespanhoes, portuguezes e italianos quebraram lanças em honra dos augustos esposos.

O codice citado por Herculano conta que a infanta, tendo chegado a Villa Franca pela uma hora da tarde do dia de S. Miguel (29 de setembro), não queria sahir da nau, o que fizera a instancias do duque de Saboya.

D'ahi inferiu Herculano que a a «má vontade com que ella desembarcou mostra que este casamento não lhe era demasiadamente grato.»

Vejamos porém o que diz o texto da Memoria de Claretta:

«Seguendo ora il racconto del Revelli, narra questo storico che il giorno 29 verso le tre ore di notte sbarcó la principessa a Villafranca, dove di comandamento del Duca eransi portati per riceverla e complimentarla Lodovico dei Malingri, Gioanni d'Orliè, il vescovo Geronimo d'Arsagis, Onorato Cays ed i consoli seguiti dai primi gentiluomini del paese. L'ora era già avanzata, ma pur volle l'infante Beatrice la sera medesima recarsi a Nizza traversando il colle di Montalban al chiaror di molte faci, ed assisa su di una sedia soppannata di velluto e d'armellino, sostenuta da quattro gentiluomini portoghesi. Giunta la comitiva ai molini di Riquieri le acclamazioni più vive degli astanti annunziarono l'incontro del Duca, il quale era giunto quella sera all'abbazia di San Ponzio e non aveva voluto far l'ingresso nella città prima che fosse arrivata la sposa.»

Vão grifadas as expressões que contrariam a versão do codice publicado por Herculano.

Como vimos, Claretta apoia-se na narração de Revelli, e não podêmos suppôr que Claretta occultasse a verdade, por isso que elle a patenteia com inteira franqueza em varios lances da sua Memoria, especialmente, como veremos, quando se refere á decadencia da côrte de Carlos III.

O condado de Niza offereceu á duqueza, como brinde de casamento, a somma de cinco mil florins.

Pier Leone di Cavaglià, conego de Santa Maria della Scala de Milão, recitou uma oração e um epithalamio, de que existe um exemplar na bibliotheca real, sendo o opusculo que contém as duas peças litterarias muito raro na Italia. Oggidi assai raro, diz em parenthesis Claretta.

A oração é em latim. Claretta dá alguns extractos, e commenta-os. Por exemplo:

«... habes uxorem pulcherimam (ei gli dice) venustissimamque ut cernere est virtutis lacte et cura ut scimus nutritam (e questo era vero) fæcundam ut optamus.»

Claretta publíca na integra o epithalamio, tambem latino, que foi recitado pela menina Veronica Leone, de quatro annos de idade apenas—giovinetta di quattro anni.

N'esse epithalamio são grandemente exaltadas a belleza e castidade da infanta D. Beatriz.

Claretta ainda cita outras congratulações poeticas que por essa occasião foram publicadas.

A tres de outubro fizeram os duques de Saboya a sua entrada solemne na cidade de Niza pela porta Pairoliera.

Segundo Revelli, cerca de tres mil portuguezes, ricamente vestidos, tomaram parte no cortejo. Mas outros muitos, não menos ricamente vestidos, assistiram como espectadores ao desfilar do prestito.

Agora vem algumas linhas de Claretta, que reproduzimos no texto para que n'ellas sobresaia a impressão profunda, conservada pela tradição, que causára em Niza o apparato que os portuguezes exhibiram n'esse acto:

«Soggiunge il citato storico (Revelli) che i Portoghesi sommarono a ben cinque mila, e che fu cosa ammirabile il vedere tanti ornamenti d'oro, gemme, selle de cavalli com briglie, staffe, speroni e cose simili tutte formate di lame e piastre di puro oro, uccelli ed animali peregrini, quantità incredibile de aromi di specie diversa, in una parola, tutto che di prezioso dall' Africa e dalle Indie, con l'occasione dell' navigazioni alle più remote parti, era stato apportato al re di Portogallo.»

Ahi fica mais essa recordação do nosso passado, esplendor n'um tempo em que a riqueza dos cavalleiros igualava a dos arreios dos cavallos, tudo constellado do ouro e pedrarias, que o descobrimento da India nos permittia exhibir por entre nuvens de exquisitos perfumes orientaes.

Segundo Claretta, foi no dia 8 de outubro que os noivos partiram de Niza para o Piemonte.

Esta indicação confere com a do codice publicado no Panorama.

É porém durante a jornada que o author do codice se refere a violencias praticadas contra os portuguezes que acompanharam a infanta.

Claretta cita os nomes dos personagens italianos que fizeram séquito aos noivos até Vigone, um dos quaes personagens era o governador de Niza, com o seu logar-tenente. Parece natural que aquelle funccionario e alguns mais retrocedessem depois de haverem acompanhado os duques por algum tempo. Accrescenta Claretta que em Vigone se despediu o cortejo, ficando ahi os noivos, podendo suppôr-se que no gôso da sua lua de mel, livres finalmente das impertinencias officiaes, que durante oito dias os tinham rodeado.

A 10 de fevereiro de 1522 expedia Carlos III patente de assentamento, a favor de D. Beatriz, da quantia de nove mil e setecentos florins, com hypotheca sobre diversos rendimentos publicos, e a 22 de abril passava quitação ao rei de Portugal da somma de cento e cincoenta mil ducados, com que a infanta fôra dotada por seu pai.

Os duques demoraram-se em Vigone até ao mez de março, recebendo ahi D. Beatriz, por parte do estado do Piemonte, um donativo de cincoenta mil florins, e o duque outro de duzentos mil.

Claretta diz que a entrada dos noivos em Turim fôra saudada pela população, mas que as festas publicas bem depressa tiveram de ser ensombradas pela noticia da morte do rei de Portugal, occorrida no mez de dezembro, e pela peste que os portuguezes haviam deixado em Niza, cujos habitantes flagellára por longo tempo.

A scena da ponte, descripta no codice do Panorama, quando uns cem alabardeiros pozeram as alabardas aos peitos dos portuguezes, que queriam acompanhar a infanta, teria uma explicação inverosimil pela versão de Herculano, visto como o duque não havia ainda regulado a situação financeira de um casamento que tanto lhe convinha e por que tanto instára.

Sendo tamanha, como refere Claretta, a multidão de portuguezes que assistiram á recepção da infanta D. Beatriz, explica-se facilmente o acto de violencia praticado pelos alabardeiros como medida prophylatica adoptada pelo duque contra a invasão de uma epidemia que desde longos annos não tinha deixado de fazer grande numero de victimas em Portugal. Póde mesmo ter acontecido que um ou outro caso de peste se houvesse manifestado entre os cinco mil portuguezes que por occasião das festas do casamento se encontravam em Niza, incluindo os marinheiros dos dezoito navios que constituiam a frota portugueza. É porém natural que os portuguezes se offendessem com essa precaução, e desfigurassem as intenções de Carlos III tomando-as á conta de descortezes para com a infanta, e de hostis para com elles.

As condições hygienicas de Portugal eram realmente deploraveis então. A peste tinha devastado o reino annos antes, e, referindo-se á morte de D. Manuel, diz Garcia de Rezende na Miscellania:

N'este anno se finou
o gran rei D. Manoel,
quantos comsigo levou
a morte triste, cruel?
que rei, que gente matou?
duzentos homens honrados,
em que iam muitos d'estados,
vivos que então se finaram
de modorra, e escaparam
muitos já quasi enterrados.


IV

É certo que em torno da infanta D. Beatriz se levantaram desde o principio algumas recriminações. Mas não partiam do duque de Saboya nem procediam de ciumes. Partiam do povo.

D. Beatriz tinha sido educada na opulencia e, como era natural, não perdêra facilmente esse habito. Os saboyanos achavam-na altiva, orgulhosa, e criticavam n'ella os costumes de Portugal.

O duque, bem ao contrario dos sentimentos que lhe attribue o codice citado por Herculano, transigia com a esposa.

Elle proprio, quando a côrte se dirigiu a Genova, seguia o coche rico que conduzia a duqueza, montando uma mula, acompanhado pelo abbade de Beaumont.

Os genovezes, segundo o testemunho de Spon, censuravam que Carlos III dispendesse em pompas, para honrar sua esposa, o dinheiro que melhor seria empregado em fortificar a cidade.

Não obstante estas censuras, as festas continuaram.

Por sua parte, a duqueza devia sentir-se contrariada porque, tendo sido educada no esplendor dos Paços da Ribeira, via-se agora condemnada a viver n'uma côrte pobre e endividada, não sem que o povo murmurasse á menor despeza que ella fazia.

Mas, é Claretta quem o confessa: a experiencia não devia tardar em corrigil-a. D. Beatriz inteirou-se das circumstancias, como mostra a sua correspondencia, que Claretta examinou com cuidado, e que elle proprio divide em politica e particular.

Desprendida de todos os defeitos de educação, mostrando um espirito desassombrado, como o de quem não está impressionado por a saudade de um amor infeliz, como teria sido o de Bernardim Ribeiro, Beatriz de Portugal principia a cuidar seriamente dos negocios internos do paiz.

Logo em 1524 escrevia ao marquez de Pescara para que fizesse cessar as violencias que os soldados do imperador Carlos V, depois da victoria de Pavia, commettiam no ducado de Saboya com grande vexame para os habitantes. Carlos III implorava tambem no mesmo sentido.

A 13 d'agosto d'esse mesmo anno, D. Beatriz instava de novo, dirigindo-se ao capitão imperial Fernando d'Alençon para que deixasse de opprimir os povos do Piemonte, em particular os de Borge e Bognolo in maniera che li nostri subdicti li quali gia tanto hano patito non seano in tutto ruynati.

O imperador, cada vez mais solicitamente instado pelos duques de Saboya, respondia com boas palavras apenas: em carta, datada de Toledo a 7 de fevereiro de 1526, diz a Carlos III que tem por elle e por a duqueza sua cunhada a maior consideração; que os vexames commettidos no Piemonte o contrariam tambem; mas que espera pôr-lhes termo logo que vá a Italia.

A 12 d'esse mesmo mez de fevereiro, a duqueza de Saboya, D. Beatriz, escrevendo ao commendador de Murel, dizia-lhe: Vous n'aues pas a ignorer les insultes et peilleages que alcuns souldars estantz dans Carmagnole auecques leurs complices ont fait sur le pays de Monseigneur de maniere que tous les chemins sont rompuz qui est grant scandalle por tout le pays ce qui ne voulons plus en durer.

Mas os vexames, as humilhações continuavam.

A 22 de fevereiro, a duqueza energicamente recommendava á communa d'Ivrea que lhe enviasse duzentos homens, dos melhores, a fim de policiarem os logares vexados pelos soldados do imperador.

Em abril, como continuassem as coisas no mesmo pé, D. Beatriz escrevia ao marquez del Guasto, pedindo-lhe que fizesse retirar as tropas que devastavam Racconigi.

Sempre valeram as supplicas repetidas e instantes de D. Beatriz junto de Carlos V.

O imperador calmára um pouco a sua vingança, pois que tivera contas a ajustar com Carlos III, ao qual em 1521 havia escripto, tratando-o não por principe italiano, mas por seu visinho d'Italia, pedindo-lhe que obstasse á passagem do exercito de Francisco I: no que fareis o vosso dever, e a mim me dareis singular prazer, que não será esquecido.

O duque de Saboya não só não obstou á passagem do exercito francez, senão tambem o forneceu de viveres e munições.

D. Beatriz, logo que pôde inteirar-se dos negocios politicos do paiz, e intervir n'elles, procurou corrigir o desacerto do marido. Como vimos, dirigia-se supplicante ao imperador ou aos seus capitães, e tanto captivára Carlos V, que elle, comquanto sempre dissimulado, acabou por attender-lhe as supplicas.

Em 1524 D. Beatriz dera á luz um filho.

Os seus deveres de mãi não a inhibiam comtudo de interferir solicitamente nos negocios politicos do ducado,—com tal zelo, com tal dedicação, que não deixa no nosso espirito sombra de suspeita de que ella, no caso de ter sido amada por Bernardim Ribeiro , podesse lembrar-se ainda do infeliz trovador portuguez.

O duque de Saboya tinha fixado a sua residencia em Chambery, cujo clima molestava D. Beatriz, nascida e educada nas regiões temperadas do occidente. Além do que, conservando-se no Piemonte, podia Carlos III observar de mais perto os acontecimentos da Italia.

Esta ausencia obrigada contrariava muito D. Beatriz, como se vê de uma carta sua escripta ao duque a 21 de fevereiro de 1526: ... votre retour qui mest si long que plus ne pourroit. Já não podia supportar a ausencia do marido. Como estaria esquecido Bernardim Ribeiro, se alguma vez tivesse sido lembrado! No fim da carta falla-lhe do filho. Du surplus votre filz se porte tres bien, etc. Deixou para o fim, como as mulheres sempre fazem, o pensamento que mais podia attrahir o marido.

Carlos III, reconhecido á intervenção de sua mulher junto do imperador, escreveu-lhe de Chambery para Turim, em 19 de junho, uma carta que completamente esmaga a suspeita de qualquer resentimento amoroso.

Diz a carta:

«Ma femme. J'ay receu toutes vos lettres par Chasteaufort et par luy entendu de vos nouuelles que me sont a tel aise et plaisir que plus me porrient mesmes vous voyant en bonne santé et les afferez reduitz a souhet dons auons a louer notre seigneur et de tant plus quaues heu si bon heurt que de faire vne si belle oeuure au bien et soulagement des subgectz et a votre gros honneur et reputation. Que vous sera succes et accroissement de vertu. Jay ausplus veu vos aduys et vous asseure que estre ces gens entierement vuydes ie ne tarderay a vous aller veoir et cependant ie men vey des demain Annessy car a... se fait le baptesme qui na este retarde que pour attendre les ambassadeurs des ligues et ne fault au demorant quaye nul soucy de ma personne car aidan Dieu elle vos sera conseruee et de notre fils. Je vous asseure quil fait graces a Dieu auquel ie prie qui vous donne ma femme le bien que ie vous desire De Cambery le XVIIII jour de juins—Votre bon mary, Charles

A situação era realmente difficil para Carlos III. Precisava um Cyrineu dedicado, e encontrou-o em sua mulher, D. Beatriz de Portugal.

A duqueza acompanhava, de Turim, todos os acontecimentos importantes, e aconselhava resolutamente o marido.

Citaremos um trecho de uma carta sua, varonilmente energica, escripta ao duque:

«Quant a la ligue de sept cantons suisses quoy que le pape saiche dire ie vous conforte si vous la pouvez conclure a la fere car la nature du marchant n'est que de voir a grandir vos voisins et sa mayson pour ruiner s'il pouvait la votre ou votre etat et tous les aultres quelque dissimulation quil face au contraire.»

Como se sabe, depois do tratado de Madrid, tão vexatorio para a França, recomeçára a lucta entre Francisco I e Carlos V.

Foi pela Italia que as hostilidades principiaram, sangrentamente. Toda a gente conhece as crueldades commettidas pelo exercito de lutheranos, que o duque de Bourbon commandava. E toda a gente sabe que pelo desastre de Landriano foram os francezes expulsos da peninsula italica.

Carlos V, victorioso, entrou na Italia, realisou a sua annunciada visita, que tinha por fim fazer com que os senhores dos pequenos estados italianos reconhecessem a sua suzerania e com que o papa Clemente VII o coroasse rei de Italia e imperador.

Então, a França teve de assignar um novo tratado pouco menos vexatorio que o de Madrid: o de Cambrai.

Todavia, a situação do Piemonte não melhorára. As devastações continuavam. Carlos III lembrou-se de recorrer á intercessão de D. João III de Portugal. Para isso solicitou uma carta de sua mulher, para o irmão, carta de que foi portador um cavalleiro saboyano, de nome Honorato Cays,

O resultado d'esta missão diplomatica, em que D. Beatriz interveio, não o conheceu Claretta.

Mas era esse o momento em que Carlos V devia realisar a definitiva submissão da Italia.

Todos os principes d'aquella peninsula rodeiaram o imperador suzerano: Carlos III, teve, junto de Carlos V, um logar de honra. D. Beatriz offereceu ao imperador uma coberta de leito, do valor de dez mil escudos, e Carlos V presenteou-a, em troca, com quatro vestidos de igual valor.

Terminada a ceremonia da coroação, D. Beatriz regressava a Turim, sempre intendendo all'amministrazione e buon governo dello statto, diz Claretta.

Mas D. Beatriz não havia perdido politicamente o tempo que estivera em Borgonha. Induzira o imperador a ceder-lhe, e aos seus descendentes, o condado de Asti e o senhorio de Chevasco e Ceva, que, pelo tratado de Cambrai, a França havia cedido a Carlos V.

A carta de doação, escripta em latim, e assignada pelo imperador, tem a data de 3 de abril de 1531. Carlos V encarregou o gentilhomem D. Gutierres Lopes de Padilla de legalisar a investidura, que foi celebrada solemnemente.

Os habitantes do condado de Asti festejaram este acontecimento com demonstrações de grande jubilo, e resolveram fazer á duqueza D. Beatriz uma doação de dez mil escudos de ouro.

Em verdade, bem precisada estava de auxilios pecuniarios D. Beatriz.

N'uma carta ao duque dizia ella:

«Touchant ma despense Monseigneur j ay prins le premier payement de ceulx de Cargnan pour contenter partie de ce quest deheu tant seullement du vin et vous plaira nen estre marry vous asseheurant que la crierie et lextremité y estoit plus grosse que je ne vous ay jamais escript...»

Parece mais uma carta de uma boa mãi de familia burgueza, informando seu marido, com uma grande dedicação conjugal, do mau estado das finanças domesticas, do que a carta d'uma princeza, bella e joven, dirigida a um marido pobre e um pouco azumbado, como lhe chama o author do codice citado por Herculano.

A figura lacrimavel do desditoso trovador Bernardim Ribeiro apaga-se lentamente, até diluir-se no esquecimento, se procuramos enxergal-a através da dedicação politica e domestica com que D. Beatriz de Portugal encarou os seus deveres de esposa de Carlos III de Saboya.

Ahi tem o leitor a plena confirmação de quanto lhe haviamos annunciado.

N'essa mesma carta refere-se D. Beatriz aos disturbios que occorriam entre os habitantes de Fossan, sendo que os banidos da povoação tinham derrubado uma grossa muralha. E accrescentava:

«Mais la difficulté y est quil ny a moyen d'auoir argent por leuer gens pour y enuoyer et sans y fere quelque bonne entreprinse et demonstration de iustice la chose ne peult tomber que a pis.»

As circumstancias pecuniarias da côrte de Saboya tornaram-se cada vez mais apertadas, a ponto de não haver dinheiro para pagar aos fornecedores.

D. Beatriz, filha do opulento rei D. Manuel, não tinha uma palavra de queixume ácerca da má situação financeira da sua casa, como seria natural que tivesse, especialmente n'essa conjunctura, se, contrariando uma paixão mallograda, houvesse sido compellida a um casamento que lhe repugnasse.

Oiçamol-a:

«Au regard du duc d'Albanie sil treuue peu pour bien trecter et par faulte d'argent et mon poullalier ne voult plus fournir a cause qui lui est deheu pres de mil florins et a mon bouchier environ quatre ou cinq cens escuz auquel j ay rebattu sa part de la composition du Carignan tousiours en deduction de ce quen luy doibt et por non auoir argent soue constrainte dacheter sur la place de ceste ville a mespris.»

Devendo ao fornecedor de aves e até ao talho—oh prosa vil das realidades do mundo!—a bella princeza de Portugal via-se obrigada a mandar comprar á praça, como toda a gente!

Tendo de receber como hospedes alguns capitães do imperador, que a encontraram em Rivoli e a acompanharam por distincção palaciana até Turim, dizia D. Beatriz ao marido:

«Reste Monseigneur que ie suis assez mal en ordre de caddretz dune naugiere potz flascons platz chandelliers et aultre veisselle dargent. Et ne scay si le duc de Millan viene comme le pourray recepuoir a votre honneur et myen. Semblablement nya icy aulcune tappisserie ny donzelletz de soy combien que iay fait accoustrer le chasteau au myeulx que ma este possible.»

Nem baixella, nem tapeçaria, nada! A isto estava reduzida uma filha de D. Manuel de Portugal, forçada aliás, pela sua alta posição social, a receber como hospedes os generaes de Carlos V.

Mas não era só a falta de dinheiro a unica difficuldade que tinha a vencer.

No dia 15 de agosto de 1532, foi D. Beatriz, com seu filho, á igreja de S. João. Ahi travou-se uma grave rixa entre os senhores de Racconigi, de Masino, o governador de Asti e o conde de Tenda. Houve quem dissesse á duqueza que essa rixa seria um pretexto para ferir o principe, seu filho, que tinha comsigo. D. Beatriz, mostrando uma intrepidez admiravel, mandou suspender a missa, e retirou-se para o côro com o filho, com o prior de Lombardia, com o abbade Capris, e alguns mais personagens. Acudindo alguns cidadãos armados, que guardaram as pessoas da duqueza e do principe, D. Beatriz ordenou que o templo fosse evacuado e, com a intervenção do bispo de Niza, fez reconciliar os contendores.

Ella propria deu noticia d'este acontecimento a seu marido dizendo-lhe:

«...et le commancement du debat a tyrer les epes ont este les vallets de sorte quy sont venus aus meytres tant quy ly auet byen synt sans espes desgenes dedans le glisse et de sorte quy la faglu layser de dyre ma messe pour me retirer et jey heu peur pour ce que tous me disoynt que je retyrasse mon fys cuydant quy fut este fet tout espres totefoys ce na este synon chosse quy tochet a tus memes...»

Quando a gente deletrea á luz d'esta realidade cruel a biographia de D. Beatriz de Portugal, como que sente em torno de si um esvoaçar de aves que fogem amedrontadas, para não mais voltar.

Sao as ficções da sua lenda poetica—a lenda com que a nossa infancia foi embalada—que debandam, espavoridas e batidas, para o paiz azul d'onde vieram...

Emquanto Carlos III, que continuava no Piemonte, via escapar-se-lhe das mãos a alliança dos genovezes, a duqueza de Saboya, esposa dedicada, estremecia de cuidados pela saude do duque: «... quil vous plaise ne trauailler tant votre personne que tomberiez en aulcune malladie car le plus gros malheur qui sceust venu et a vos enfants seroit qui fussiez mal desposé.»

N'uma outra carta da duqueza ha ainda um trecho mais expressivo do seu carinho conjugal: «... si devan lundy ie nen ay nouuelles je deslivre me mectre en chemin que ne sera encoures bien au long iusquez ie soie aupres de vous quest la chose que plus ie desire en ce monde

Se não recebesse noticias, que a tranquillisassem, a respeito da saude do duque, D. Beatriz dar-se-ia pressa em partir para reunir-se ao marido, pois que era essa a felicidade que mais desejava n'este mundo.

No coração da infanta portugueza não podiam existir, em face d'estes documentos authenticos, vestigios de qualquer paixão, absorvente e mallograda, sobredourada pelo encanto com que a saudade costuma revestir a imagem dos ausentes queridos. Não se vê, através d'estas cartas, a amante lendaria de Bernardim Ribeiro; o que se vê é a esposa carinhosa do duque de Saboya.

Sempre envolvido nas agitações politicas da Italia, Carlos III viu-se a braços com uma nova controversia. Disputava agora com o duque de Mantua a successão do Monferrato pela extincção da linha masculina dos Paleologos. A solução foi favoravel ao duque de Mantua, e os partidarios de Carlos III aconselhavam-no a empregar a força das armas, a recorrer á violencia.

D. Beatriz de Portugal, que, de longe, acompanhava todas as questões politicas em que o marido se via lançado, revelava o heroismo do seu animo apoiando o conselho com resoluta firmeza: «le vrai expedient et moyen de vostre affere et ni ayez respect ni regard a personne ni a chose du monde.»

Uma dama de tão rija tempera, como D. Beatriz se mostrou em Saboya, não só nos negocios politicos , mas tambem nos domesticos, não menos apertados e difficeis, se se houvesse apaixonado por Bernardim Ribeiro, se tivesse acceitado os galanteios do famoso trovador portuguez, haveria tido a coragem de resistir a todas as vicissitudes que combatessem os designios do coração amoroso.

Ao contrario de sua mulher, Carlos III, sempre vacillante, continuava hesitando entre a França e a Hespanha, entre Francisco I e Carlos V.

D. Beatriz tinha, a este respeito, opiniões definidas, e expunha-as com clareza ao marido. Ella era pela Hespanha. E n'este sentido aconselhava ao duque: «... mais que si vous aviez deliberé vous entretenir envers France comme aviez faict jusqu'ici que ce vous serait chose bien difficile pour vivre avec tous deux neanmoins j espere selon votre accoutumée prudence vous y scaurez bien conduire.»

Todavia as circumstancias eram de geito para entibiar qualquer animo menos forte que o de D. Beatriz de Portugal.

Longe do marido, soffrendo pela saude e pela situação politica d'elle continuados sobresaltos; luctando com a falta de recursos pecuniarios cada vez mais aggravada; tendo perdido seu filho Luiz, que expirára em Hespanha, na companhia de Carlos V, em dezembro de 1536; compromettida, no anno seguinte, a sua delicada saude pelo extremo estado de gravidez em que se encontrava; D. Beatriz de Portugal luctára, emquanto pudera, com animo varonil e esforçado, mas, presentindo a morte, que se avisinhava, preparou-se serenamente para a viagem eterna, ditando as suas disposições testamentarias.

Era, nas circumstancias em que se encontrava, uma princeza pobre.

Mas, pela leitura do testamento, reconhece-se toda a humildade dos seus sentimentos religiosos, na recommendação que faz ácerca da modestia dos funeraes, e nos pequenos legados, nas ultimas recordações com que testemunha o seu affecto pelas pessoas que a rodeavam, as suas criadas particulares, taes como a ama do fallecido principe Luiz e a mulher do barbeiro do duque.

Herdeiro universal o marido. Aos filhos legava a terça. E recommendava que se do proximo parto nascesse uma filha, não a casassem sem consentimento de Carlos V; e sempre com um principe igualmente illustre em nascimento. De contrario, preferiria que fosse freira.

Legitimo orgulho de uma princeza portugueza que, alongando os olhos para além do tumulo, procurava evitar que uma filha sua desposasse um d'esses pequenos principes que enxameavam na Italia. Mãi dedicada, queria que a sua prole estremecida tivesse um destino mais tranquillo do que ella tivera.

O testamenteiro nomeado por D. Beatriz foi Francisco de Carvalho, embaixador portuguez junto á côrte de Saboya.

A duqueza déra á luz uma creança do sexo masculino, que recebeu o nome de João Maria. Mas a saude de D. Beatriz estava de tal modo damnificada, a sua fraqueza era tamanha, que rendeu a alma ao Creador no dia 8 de Janeiro de 1538.

O duque não assistiu ao passamento de D. Beatriz; o duque, a quem ella sempre cosi teneramente aveva amato, diz Claretta. Sendo informado do perigo que corria a vida da duqueza, Carlos III dera-se pressa em partir para Niza, mas foi no caminho, em Genova, que recebêra a fatal noticia.

O duque ficou fulminado. Dicesi che il dolore da cui il buon Carlo III era oppresso fosse talmente profondo che dava non poco a dubitare della sua esistenza. É o testemunho de Claretta.

Comquanto fossem precarias as circumstancias da côrte de Saboya, Carlos III ordenou pomposos funeraes. Mas, aggravadas com esta despeza as finanças do duque, não foi possivel dar inteiro cumprimento á ultima vontade de D. Beatriz, quanto aos legados que ordenára em testamento.

Para memoria eterna de saudade conjugal, Carlos III mandou gravar em honra de D. Beatriz, como já dissemos, duas medalhas.

Do casamento de Carlos III com a infanta de Portugal nasceram nove filhos: seis do sexo masculino, sendo um d'elles o celebre Manuel Felisberto, o vencedor de S. Quintino, e tres do sexo feminino.

Aqui fica pois reconstruida, graças á monographia de Claretta, a vida da infanta D. Beatriz depois que sahiu de Portugal.

É o proprio Claretta quem confessa que a duqueza de Saboya tem sido apreciada por modos diversos; mas a sua opinião exalça-lhe a memoria. Notando que Brantome faz referencia á altivez de D. Beatriz, diz que, tendo a duqueza seguido a causa de Hespanha, este facto explica o resentimento de Brantome. Dueros, na sua Histoire d'Emmanuel Philibert, explica essa altivez pela firmeza de caracter, que contrastava com a indecisão do marido, e entende que D. Beatriz deve ser collocada a par das mulheres fortes que a historia celebra.

Hoje, conhecidos os importantes documentos que Claretta deu á estampa, a lenda d'essa paixão contrariada, em que D. Beatriz e Bernardim Ribeiro durante tantos annos figuraram como victimas, recebeu por certo mais um golpe.

Se o trovador tivesse sido amado pela infanta, se, como suspeitava Alexandre Herculano, houvesse chegado até Saboya o segredo d'esses amores infelizes, de que Carlos III quereria tirar represalias, o caracter de D. Beatriz, em vez de se dobrar em carinhosas demonstrações de affecto para com o marido, haveria reagido pelo desdem, e até pelo desprezo.

Mas não é isso o que vemos das proprias cartas da infanta.

E, se por hypothese, D. Beatriz se soube algum dia amada de Bernardim Ribeiro, a noção do dever apagou completamente no seu coração a recordação d'esse amor infeliz. Seria, n'esse caso, um idyllio que tivera a duração de um meteoro, e cujas proporções a historia, rigorosamente descarnada, não póde avultar.

A nossa convicção, pelos factos que longamente indicamos, é que a tradição dos amores de Bernardim Ribeiro e D. Beatriz pertence aos dominios da lenda; que se alguma paixão vehemente infernou a existencia do poeta da Menina e Moça, não foi D. Beatriz que a inspirou; mas não achamos sufficientes os elementos até agora apurados para nos determinarmos pela opinião de Varnhagem ou pela opinião do snr. Theophilo Braga, quanto ao nome da dama que deve occupar o lugar em que a lenda collocou, no coração do poeta, a infanta D. Beatriz.