Historias de Reis e Principes/XII

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XII

Idyllio de amor


Um rei dos paizes do norte, o soberano da peninsula scandinava, veio a Lisboa em maio de 1888, hospedando-se no Paço da Ajuda, que domina, do seu largo ponto de vista, a corrente do Tejo, o bello rio do sul...

Viagem poetica, cheia de encantadoras antitheses por certo, emprehendida por um rei poeta, em cuja familia ainda ha poucos dias fallou com insistencia a Europa inteira a proposito do casamento romantico do duque de Gothland, segundo filho do rei Oscar.

Na familia real da Suecia os principes conservam não só os ideaes cavalheirescos da Idade-média, mas até as alcunhas graciosas dos livros de cavallaria. Assim, o principe Carlos, terceiro filho do rei Oscar, é conhecido pela designação de principe azul, por usar sempre um uniforme d'essa côr; e o principe Eugenio, o mais novo dos irmãos, é denominado o principe vermelho, em razão dos seus avançados principios liberaes.

Comprehende-se que, dada a influencia do meio geographico, a situação deliciosa da Suecia haja actuado no espirito do principe Oscar para contrahir um casamento que não teve como mobil senão o amor.

Paiz de montanhas e de lagos, de cascatas e de rios, de golfos e de florestas, como que está pondo diante dos nossos olhos a photographia do amor n'aquellas regiões, amor inabalavel como a dureza dos Alpes scandinavos, umas vezes sereno como um lago, outras vezes torrentuoso como uma cascata, resistente como as florestas de pinheiros aos vendavaes gelados, ousado como a onda dos golfos que rasgam, no seu labutar constante, os contornos da peninsula...

Paiz das auroras boreaes, comprehende-se que o coração dos seus habitantes seja de algum modo o espelho onde se reflecte o fogo do ceu.

Stockolmo, a capital que a familia real habita, é, para que assim o digamos, a synthese de toda a bella natureza scandinava. Disposta sobre o lago Mœlar, occupa algumas das mil duzentas e sessenta ilhas que mosqueam toda a feérica superficie do lago. É a Veneza do Norte.

Madame Leonie d'Aunet, a intrepida viajante do Spitzberg, sentiu-se vivamente impressionada pelo aspecto do palacio dos reis da Suecia, uma residencia encantadora onde se comprehende que todos os sonhos da imaginação exaltada possam atear-se.

«O palacio dos reis da Suecia, como a cidade, tira da posição em que se acha situado, entre o mar e o lago, a sua principal belleza. Quadrado, uma das fachadas do palacio domina uma soberba ponte de pedra lançada sobre o Mœlar. Esta ponte, cujo arco central repousa sobre uma pequena ilha transformada em delicioso jardim, é de um aspecto encantador. A architectura do palacio recorda a do Louvre, modificada pelo gosto pesado, sobrio e frio do seculo XVIII; apenas as proporções do conjunto podem ser gabadas sem reserva; a fachada que olha para o mar, precedida de um jardim, ornada de um largo balcão de pedra, é de um bello effeito, sobretudo vista de longe.»

Ahi, d'esse largo balcão de pedra que olha para o mar, diante de um vasto horisonte sem limites, comprehende-se que os principes romanticos da casa real da Suecia enviem o seu pensamento alado a emprehender as viagens mais ousadas e mais audaciosas do amor.

Foi ahi certamente, n'esse largo balcão de pedra que olha para o mar sem limites, que o principe Oscar, duque de Gothland, pensou uma e muitas vezes na enorme difficuldade da empreza que o seu coração namorado tentára.

Mademoiselle de Munck, filha de um antigo official do exercito sueco, era a sua bem amada, e o principe pensava exclusivamente no modo de poder desposal-a, ainda que para isso fosse preciso arremessar ao mar, do alto do largo balcão de pedra, a sua corôa de principe, o seu titulo de duque.

Mas o mar ensinava-o a ser forte, embora, para vencer, tivesse de parecer sereno.

Descendo do seu largo balcão de pedra, o principe Oscar passearia decerto na collina de Mosebakkan, d'onde toda a cidade de Stockolmo se avista a vôo de passaro, e desejaria porventura poder depôr aos pés de Ebba Munck toda essa bella cidade pittoresca como um estranho presente de nupcias.

Se de todo perdesse a esperança de poder realisar o seu sonho de amor, iria porventura refugiar-se na solidão gelada da Noruega, em Hammerfest talvez, a cidade mais septentrional do mundo, a dois passos do cabo Norte, habitando uma d'essas casas exoticas, feitas de troncos de arvore, que os seus habitantes occupam.

Mas todo o aspecto do paiz o enchia de confiança e de estimulo. Os Alpes scandinavos diziam-lhe que fosse inabalavel como elles; as torrentes que fosse impetuoso como ellas; as florestas de pinheiros que as imitasse na firmeza; os golfos que teimasse, a seu exemplo, em vencer os obstaculos. Tanto mais que o principe Oscar sabia que era amado...

Dissera-lh'o Ebba Munck, a quem elle abrira o seu coração.

Era certo que ella fugira da côrte, para evitar o olhar do principe que a dominava, mas amava-o, era amada, eis tudo.

Dama de honor da princeza real da Suecia, fôra outr'ora galanteada, requestada. Um moço official de cavallaria estivera para desposal-a, chegára a fazer-se o enxoval, mas o coração de mademoiselle Munck, por um d'esses presentimentos extraordinarios que se não podem explicar, retirára á ultima hora o seu consentimento.

Não era aquelle o homem que ella devia amar.

Enfastiada da côrte, pensando já talvez no principe Oscar, como no impossivel, quando a obrigaram a voltar a Stockolmo, a sua belleza reapparecêra velada por um veu de dôce melancolia.

Foi então que o principe Oscar fez reparo na belleza de mademoiselle de Munck,—essa belleza triste das violetas.

Mas as almas namoradas, se avançam um passo para o seu ideal, deliciam-se em recuar dois passos, como para se atormentarem deliciosamente.

Ebba Munck fugiu da côrte, talvez com o proposito de não voltar mais.

Fez-se irmã da caridade n'um hospicio de Stockolmo, quiz consagrar a Deus o seu pensamento, mas o amor do principe foi ahi procural-a para adquirir a certeza de que era correspondido.

Uma affirmação categorica, tanto mais desafogada quanto parecia irrealisavel, exaltou a paixão do principe, que desde esse dia não teve senão um unico pensamento: desposar mademoiselle de Munck.

Adivinham-se facilmente as difficuldades que um tal projecto suscitaria a principio.

Mas, á força de insistencia e de pertinacia, os obstaculos foram abrandando, e o tempo acabou por consummar a sua obra.

Do alto do largo balcão de pedra, que olha para o mar sem limites, o principe Oscar, para desposar mademoiselle de Munck, arremessára através do espaço, para o abysmo das aguas, os seus direitos ao throno, os seus titulos de duque e de alteza real, e a pensão annual que lhe era votada pela Dieta.

N'esse dia ficou sendo o mais feliz dos homens, apenas Bernadotte, um official da marinha sueca, simplesmente.

Em março de 1888, celebrava-se o casamento, baseado na declaração authentica que o principe, mezes antes, havia dirigido a seu pai.

«Segundo a constituição, nenhum principe da casa real póde casar, sem consentimento do rei. Como depois d'um exame da minha consciencia me acho penetrado do mais ardente amor por mademoiselle Ebba Henrietta Munck, filha do fallecido coronel Charles Jacques Munck de Tulkila e da sua viuva, née baroneza Coderstrom, e como estou convencido da sua fidelidade ao meu amor, vejo-me obrigado, tanto pelo respeito e dedicação filial, como pela obediencia ás leis, a pedir humildemente o consentimento de vossa magestade, meu augusto pai, á minha união com mademoiselle Munck. Toda a minha felicidade depende d'esse consentimento.

«Por este casamento perco evidentemente, segundo o §. 5.º da lei da successão, para mim e meus descendentes, todo o direito de successão ao throno dos Reinos-Unidos. E como, segundo a minha opinião, não conviria á minha situação futura aproveitar as altas dignidades que me teem sido concedidas na qualidade de principe herdeiro, peço humildemente auctorisação para renunciar não só ao titulo de alteza real e de duque de Gothland, mas tambem, por mim e meus descendentes, a todos os outros privilegios de que tenho gosado, na qualidade de membro da casa real.

«Junto a este humilde pedido o desejo de conservar a minha nacionalidade sueca e de gosar, depois do meu casamento, dos direitos civicos, que pertencem a todo o subdito. Pela vossa benevola auctorisação, sahirei da posição excepcional que constitue, segundo a declaração de vossa magestade ao conselho de estado, inserida no protocolo de 6 de março, a razão que dictou o apanagio dos principes, filhos segundos.

«Considero portanto o apanagio de 26:000 corôas, que a dieta de 1887 me votou, como deixando de existir; renuncio portanto a este apanagio para ser restituido á lista civil.

«Peço igualmente, em virtude do artigo 34.º da Constituição noruegueza, para ser isento de todos os meus deveres de subdito norueguez.

«Stockolmo, 18 de Janeiro de 1888.

Oscar.»

O rei communicou o pedido do principe Oscar ao conselho de ministros e accrescentou:

«Não attendi ao pedido do meu amado filho, sem madura reflexão. Estando assegurada, segundo todas as apparencias, a successão dos Reinos-Unidos, não hesitei em não impedir a sua felicidade, concedendo-lhe a auctorisação, que me pediu, como seu pai e seu rei.»

Ao casamento de Oscar Bernadotte assistira sua mãi, a rainha da Suecia, Sophia de Nassau, o principe azul, o principe vermelho, a princeza da Dinamarca e a duqueza de Albany.

N'aquelle dia o Almanach de Gotha perdia um nome, mas a chronica do amor inscrevia mais uma pagina.

E o mundo inteiro fallou d'esse acontecimento ruidoso, que attrahira todas as attenções para a côrte do rei Oscar, o soberano da Scandinavia, que, vindo hospedar-se no Paço real da Ajuda, alongou o seu olhar azul de poeta do norte pela corrente magestosa do Tejo, o bello rio da Europa do sul...