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Historias e sonhos (1920)/Harakashy e as Escolas de Java

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Tudo o que este mundo encerra é propriedade do brâmane, porque ele, por seu nascimento eminente, tem direito a tudo o que existe.

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Na minha peregrinação sentimental por este mundo, fui ter, não sei como, à cidade de Batávia, na ilha de Java.

É fama que os franceses ignoram sobremodo a geografia; mas estou certo de que, entre nós, pouca gente tem notícias seguras dessa ilha e da capital das Índias Neerlandesas.

É pena, pois é da terra um dos recantos mais originais e cheios de surpreendentes mistérios que se vão aos poucos desvendando aos olhos atônitos da nossa pobre humanidade.

Lá, Dubois achou partes do esqueleto do Pithecanthropus erectus; e o doido do Nietzsche tinha admiração por certas trepadeiras dessa curiosa ilha, porque, dizia ele, amorosas do sol, se enrodilhavam pelos carvalhos e, apoiadas neles, elevavam-se acima dos mais altos galhos dessas árvores veneráveis, banhavam-se na luz e davam a sua glória em espetáculo.

Os restos do afastado ancestral do homem que Dubois encontrou, não os vi quando lá estive.

Trepadeiras e cipós vi muitos, mas carvalho não vi nenhum. Nietzsche, que lá não esteve, certamente julgou que Java tinha alguma semelhança com Saxe ou com a Suíça.

Não eram precisos os carvalhos nem as tais trepadeiras, muito vulgarmente, como todas as plantas, amorosas da luz, para tornar Java interessante, porque só o aspecto mesclado de sua população, a confusão do seu pensamento religioso, as suas antiguidades búdicas e os seus vulcões descomunais seduzem e prendem a atenção do peregrino desgostoso ou do sábio esquadrinhador.

Por meses e meses, o tédio mais principesco desfaz-se naquelas terras de sol candente e orgia vegetal que, talvez, com a Índia e os grandes lagos da África, sejam os únicos lugares da terra que não foram ainda banalizados inteiramente.

Creio que não será assim por muito tempo. Lá estão os holandeses; e edificaram até, na cidade de Batávia, um bairro europeu chamado, na língua deles, Weltevreden (paz do mundo), cujas damas se vestem e têm todos os tiques periódicos das moças de Hong-Kong ou de Petrópolis.

Nos olhos das mulheres do bairro europeu não há senão a mui terrena ânsia da fortuna; mas nos olhares negros, luminosos, magnéticos das javanesas há coisas do Além, o fundo do mar, o céu estrelado, o indecifrável mistério da sempre misteriosa Ásia. Também há volúpia e há morte.

A massa de hindus, de chineses, de anamitas, de malaios e javaneses, porém, esmaga a banalidade pretensiosa daquelas holandesas rechonchudas que estão pedindo a sua imediata volta às monótonas campinas da pátria, com as suas vacas nédias, os seus clássicos moinhos de vento e a ligeira névoa que parece sempre cobri-las, para readquirirem o necessário relevo das suas pessoas.

Não falando no famoso jardim botânico dos arredores, Batávia, como São Paulo ou Cuiabá, possui estabelecimentos e sociedades de ciência e de arte dignas de atenção.

A sua academia de letras é muito conhecida na rua principal da cidade, e os literatos da ilha brigam e guerreiam-se cruamente, para ocuparem um lugar nela. A pensão que recebem é módica, cerca de cinco patacas, por mês, na nossa moeda; eles, porém, disputam o fauteuil acadêmico por todos os processos imagináveis. Um destes é o empenho, o nosso “pistolão”, que procuram obter de quaisquer mãos, sejam estas de amigos, de parentes, das mulheres, dos credores ou, mesmo, das amantes dos acadêmicos que devem escolher o novo confrade.

Há de parecer que, por tão pouco, não valia a pena disputar acirradamente, como fazem, tais posições. É um engano. O sujeito que é acadêmico tem facilidade em arranjar bons empregos na diplomacia, na alta administração; e a grande burguesia da terra, burguesia de acumuladores de empregos, de políticos de honestidade suspeita, de leguleios afreguesados, de médicos milagrosos ou de ricos desavergonhados, cujas riquezas foram feitas à sombra de iníquas e aladroadas leis — essa burguesia, continuando, tem em grande conta o título de membro da academia, como todo outro qualquer, e o acadêmico pode bem arranjar um casamento rico ou coisa equivalente.

Lá, a literatura não é uma atividade intelectual imposta ao indivíduo, determinada nele, por uma maneira muito sua e própria do seu feitio mental; para os javaneses, é, nada mais, nada menos, que um jogo de prendas, uma sorte de sala, podendo esta ser cara ou barata.

Os médicos, que, em Java, têm outra denominação, como veremos mais tarde, são os mais constantes fregueses da academia. Estão sempre a bater-lhe na porta, apesar de não ter a medicina nada que ver com a literatura.

Pertencendo à Academia de Letras — é o que imagino — como que eles ganham maior confiança dos clientes e mais segurança no emprego dos remédios. Assim, talvez, pensem eles e também o povo, tanto que a clínica lhes aumenta logo que entram para a ilustre companhia javanesa.

É bem possível que as suas letras e a sua fascinação pela Academia visem somente tal resultado, porquanto, entre eles, a rivalidade na clínica é terrível e mais ainda quando se trata de competir com colegas estrangeiros. Usam contra estes das mais desleais armas.

Um houve, natural de um pequeno país da Europa e de extração campônia, que só as pôde manter à distância, usando de armas e processos grosseiramente saloios. Estava sempre de varapau em punho e foi o meio mais eficaz que encontrou, para não lhe caluniarem e lhe prejudicarem a clínica.

A literatura desses doutores e cirurgiões é das mais estimadas naquelas terras; e isto, por dois motivos: porque é feita por doutores e porque ninguém a lê e entende.

O critério literário e artístico dos médicos de Java não é o de Hegel, de Schopenhauer, de Taine, de Brunetière ou de Guyau, eles não perdem tempo com semelhante gente. Não admitem que a obra literária tenha por fim manifestar um certo caráter saliente ou essencial do assunto que se tem em vista, mais completamente do que o fazem os fatos reais. Literatura não é fazer entrar no patrimônio do espírito humano, com auxílio dos processos e métodos artísticos, tudo o que interessa o uso da vida, a direção da conduta e o problema do destino. Não, absolutamente não.

Os doutores javaneses de curar não entendem literatura assim. Para eles, é boa literatura a que é constituída por vastas compilações de coisas de sua profissão, escritas laboriosamente em um jargão enfadonho com fingimentos de língua arcaica.

Curioso é que a primeira qualidade exigida em um livro de estudo é a sua perfeita, completa clareza, que só pode ser obtida com a máxima simplicidade de escrever, além de um encadeamento naturalmente lógico de suas partes, evitando-se tudo o que distraia a atenção do leitor daquilo que se quer ensinar.

Vou explicar-me melhor e os leitores verão como os sábios javaneses prendem a atenção, poupam o esforço mental dos seus discípulos, empregando termos obsoletos e locuções que desde muito estão em desuso.

Suponhamos que um médico nosso patrício se proponha a escrever um tratado qualquer de patologia e empregue a linguagem de João de Barros, mesclada com a do Padre Vieira, sem esquecer a de Alexandre Herculano. Eis aí em que consiste a literatura suculenta dos doutores javaneses; e todos de lá lhes admiram as obras escritas em tal patoá ininteligível. Darei um exemplo, servindo-me do nosso idioma.

Antes, porém, de dar essa mostra do modo de escrever dos esculápios de lá, dar-lhes-ei o de falar, com uma anedota que me contaram lá mesmo — porque lá há também irreverentes e observadores. Uma família média, tendo o chefe doente e vendo que a moléstia não dava volta com o modesto médico assistente, resolveu chamar uma das celebridades da medicina javanesa. A mulher do doente era quem mais queria isto, porque, embora possam ser excelentes, com todos os bons predicados, nenhuma mulher perde de todo a vaidade; e a visita de uma notabilidade hipocrática fazia falar a vizinhança. Foi chamado o homem, o doutor Lhovehy, um celebridade retumbante, professor, membro de várias academias, inclusive a de Letras e a de História e Geografia.

Ele foi de carro, com a visita paga adiantadamente: cento e cinquenta florins. Em chegando junto ao doente, com três jeitos de mau ator foi falando assim:

— Até agora quem o há tratado?

— O doutor Nepuchalyth.

— Mister é que tenhais sempre atilamento com esses físicos incautos. Eles são homens que não curam senão por experiência e costume; e é tão bom de enganar os néscios não afeitos ao bom parecer dos físicos de valia que dão cor a facilmente serem enganados por eles e o pior é que alguns clientes físicos, ou por contentar todos os do povo e não querer trabalhar ou especular as curas, vão-se com o parecer deles; e porque ser aprazível ao povo faz ao físico ganhar mais moedas, usam logo em princípio as suas mezinhas deles.

Depois de ter pronunciado esse exórdio com toda a solenidade teatral e doutoral, o Garcia Orta não anunciado, da sublime escola de Java, examinou o doente e receitou em grego. Quase ao sair, a mulher perguntou-lhe:

— Doutor, qual a dieta?

— Polho cozido ou caldo dele.

A mulher voltou para junto do marido, sem ter compreendido a dieta, pois temeu mostrar-se ignorante em face do sábio, indagando o que era polho.

Logo que a viu, o marido ralhou-a com doçura:

— Filha, eu não dizia a você que esses médicos famosos não servem para nada?... Este que você trouxe fala que ninguém o entende, como se a gente falasse para isso... Receita umas mixórdias misteriosas... Sabe você de uma coisa? Continuo com o doutor Nepuchalyth, ali da esquina. Este ao menos tem juízo e não inventou um modo de falar para ele só entender.

O exemplo de que falei acima é o que se encontra em obras de um famoso doutor lá de Java. Cito um único, mas poderia citar muitos. O javanês, doutor de curas, queria dizer: “Sou de opinião que a febre deve ser combatida na sua causa”.

Julgou isto vulgar, indigno do seu título e das suas prerrogativas consuetudinárias, e escreveu provocando a máxima admiração dos seus leitores, da seguinte forma:

Erro, quer parecer-me, é não se atentar donde provém tal febre com incendimento e modorra, para só tratá-la às rebatinhas, tão de pronto como se mesmo fora ela a doença, senão consequência muita vez de vitais desarranjos imigos da sã vida e onde o físico de recado achará a fonte ou as fontes do mal que deixa assim o corpo sem os bons e sãos aspectos de sua habitual composição.

Depois de uma beleza destas, a sua entrada na academia foi certa e inevitável, pois é nessa espécie de pot-pourri de estilos de tempos desencontrados, com o emprego de um vocábulo senil, tirado à sorte; de salada de feitios de linguagem de épocas diferentes, de modismos de séculos afastados uns dos outros, que a gente inteligente de Java encontra a mais alta expressão da sua oca literatura. Há exceções, devo confessar. Continuo, sem me deter nelas.

A ciência javanesa está muito adiantada. Nunca se fez lá a mais insignificante descoberta; nunca um sábio javanês edificou uma teoria qualquer.

Penso que tal se dá por não haver precisão disso; os da estranja suprem as necessidades da mentalidade javanesa.

O sábio da Batávia é o contrário de todos os outros sábios do mundo. Não é um modesto professor que vive com seus livros, seus algarismos, suas retortas ou éprouvettes. O sábio de Java, ao contrário, é sempre um ricaço que foge dos laboratórios, dos livros, das retortas, dos cadinhos, das épuras, dos microscópios, das equatoriais, dos telescópios, das cobaias, tem cinco ou seis empregos, cada qual mais afanoso, e não falta às festas mundanas.

A presunção de cientista, entretanto, não há quem lá não a tome. Basta que um sujeito tenha aprendido um pouco de álgebra ou folheado um compêndio de anatomia, para se julgar cientista e se encher de um profundo desdém por toda a gente, sobretudo pelos literatos ou poetas. Contudo todos desse gênero querem sê-lo e, em geral, são péssimos.

Vou lhes contar um caso que se passou com o doutor Karitschâ Lanhi, quando foi nomeado diretor do câmbio do Banco Central de Java. Esse doutor era professor da Escola de Sapadores, da qual mais adiante falarei, e por isso se julgou no direito de pleitear o lugar do banco. No dia seguinte de sua nomeação, o seu subalterno imediato foi perguntar-lhe qual a taxa de câmbio que devia ser afixada.

— Sempre para a alta. Qual foi a taxa de ontem?

O empregado retrucou:

— 18 5/17, doutor.

O sábio pensou um pouco e determinou:

— Afixe: 18 5/21, senhor Hatati.

O homem reprimiu o espanto e todo o banco riu-se de tão seguro financeiro que lhe caía do céu, por descuido. Não houve remédio senão demitir-se ele uma semana depois de nomeado.

São assim os graves sábios de Java.

Não nos afastemos, porém, do nosso estudo.

Das grandes artes técnicas, a mais avançada, como era de esperar, é a medicina. O tratamento geralmente empregado é o do vestuário médico. Consiste ele em usar o doutor certo traje para curar certa moléstia. Para sarar bexigas, o médico vai em ceroulas; para congestão de fígado, sobrecasaca e cartola; para tuberculose, tanga e chapéu de palha de coco; antraz, de casaca etc. etc.

Este curioso método foi descoberto recentemente em um país próximo que o repudiou, mas veio revolucionar a medicina da grande ilha. Os físicos locais adotaram-no imediatamente e aumentaram o preço das visitas e redobraram a caça aos empregos, para atender às despesas com a indumentária e os aviamentos.

Estava a ponto de esquecer-me de falar no ensino da célebre ilha do arquipélago de Sonda, pois tanto me alonguei no estudo dos seus médicos, que vou ter a ele com pressa.

Existe uma universidade com três faculdades superiores: a de “Sapadores”, a de “Cortadores” e a de “Físicos”. Os cursos destas faculdades duram cerca de cinco anos, mas cada uma delas tem um subcurso menor, de dois ou três anos. A de “Sapadores” tem o de “consertadores de picaretas”; a de “Cortadores”, o de “embrulhadores”; e a de “Físicos”, o de “cobradores”.

Nas margens do Jacarta, rio que banha a Batávia, quem não tem um título dado por uma dessas faculdades não pode ser nada, porquanto, aos poucos, os legisladores da terra e a estupidez do povo foram exigindo para exercer os grandes e pequenos cargos do Estado, quer os políticos, quer os administrativos, um qualquer documento universitário de sabedoria.

Todos, por isso, tratam de obtê-lo e é a mais dura vicissitude da vida ser reprovado no curso. É raro, mas acontece. Os jovens javaneses empregam toda espécie de meios para não serem reprovados, menos estudar. Essa contingência pueril da “bomba”, na sociedade javanesa, leva às almas dos moços daquelas paragens um travo tão amargo de desconforto que toda a felicidade que lhes chegar posteriormente não o atenuará, e muito menos será capaz de dissolvê-lo.

E mesmo que ele se acredite por sua própria iniciativa, mais valiosa e mais segura que os papéis oficiais; por mais aptidões que demonstre sem título — tem que vegetar em lugares subalternos e dar o que tem de melhor aos outros titulados, para que figurem estes como capazes. Ele escreverá as cartas de amor; mas os beijos não serão nele. Por um curioso fenômeno sociológico, as ideias bramânicas de casta se enxertaram nas caducas concepções universitárias do medievo europeu e foram dar nas ilhas de Sonda, sob o pretexto de ensino, nessa estranha e original concepção do doutor javanês. Aproveito a ocasião para avisar os leitores que essa concepção religioso-universitária também existe na República de Bruzundanga.

Creio, porém, que ela é originária da grande ilha da Malásia donde foi ter àquela República, por caminho que não descobri.

Como todo moço que tem legítimas ambições naquele recanto do nosso planeta, Harakashy, um javanês que foi muito meu amigo mais tarde, conseguiu entrar para a Escola dos Sapadores, a fim de acreditar-se na sociedade em que vivia, e ter o seu lugar sob o sol, com o título que a faculdade dava. Era malaio com muitas gotas de sangue holandês nas veias, mas sem fortuna nem família. No começo, as coisas foram indo, ele passou; mas, em breve, Harakashy desandou e foi reprovado umas dez vezes na universidade.

Em absoluto, não houve injustiça. O meu amigo nada sabia, porque ingenuamente deduzira dos fatos que a principal condição para ser aprovado, nos exames de Java, é não saber. Enganava-se, porém, supondo que tal homenagem fosse prestada a todos. Recebem-na os filhos dos grandes dignitários da colônia, dos ricaços, dos homens de negócios que sabem levantar capitais; mas escolares que não têm tal ascendência, como o meu amigo, estão talhados para engrossar a estatística dos reprovados, a fim de comprovar o rigor que há nos estudos da Universidade de Batávia.

Dá-se isto, não por culpa total dos professores; mas pelas solicitações de toda a sociedade batavense que quer seus lentes universitários, homens de salão, de teatros caros, de bailes de alto bordo; e eles, para aumentar as suas rendas, que custeiem esse luxo, têm que viver ajoujados aos ministros que dão empregos, ou aos brasseurs d’affaires que lhes pedem emprestados os nomes para apadrinhar empresas honestas, semi-honestas e mesmo desonestas, em troco de boas gorjetas.

Quem meu filho beija, minha boca adoça — diz o nosso povo.

Em uma sociedade que se modelou assim, não era possível que o meu Harakashy fosse lá das pernas.

Entretanto, eu o conheci e o senti muito inteligente, culto, amigo dos livros e todo ele saturado de anseios espirituais. Gostava muito de filosofia, de letras e, sobretudo, de história. Leu-me ensaios e eu achei muito bem escritos, revelando uma grande cultura e um grande poder de evocar.

Mas Java é muito estúpida e não admite inteligência senão nos “sapadores”, nos “físicos” e nos “cortadores”.

Ainda não lhes disse o que são os tais “cortadores”. São estes assim como os nossos advogados e o seu emblema é uma tesoura, devido a ser, senão de regra, mas de praxe, de tradição que toda defesa ou acusação judiciária tenha o maior número de citações possíveis e tais peças são mais estimadas quando as referências aos autores consultados vêm nelas coladas com os próprios retalhos dos livros aludidos. A tesoura é instrumento próprio para isto e, dessa maneira, enriquece os “cortadores”, pois os arrazoados dessa natureza são muito bem pagos, embora lhes estraguem as bibliotecas que alcançam muito baixas licitações quando vão a leilão.

Atribuí o desastre da vida escolar do meu amigo ao fato de ele não ter nenhum jeito para qualquer das grandes profissões liberais que a Batávia oferece aos seus filhos.

Se Harakashy nascesse em França ou em outro país civilizado, naturalmente a sua própria vocação encaminhá-lo-ia para uma aplicação mental, de acordo com a sua feição de espírito; mas, em Java, tinha que ser uma daquelas três coisas, se quisesse figurar como inteligente. Não achando campo para a sua atividade cerebral, muito pouco atraído para o estudo das “picaretas automáticas”, muito orgulhoso para bajular os professores e aceitar aprovações por comiseração, o meu amigo ficou naquela exuberante terra sem norte, sem rumo, absolutamente sem saber o que fazer.

Ensinava para vestir-se e comer. E todos que o conheciam desde menino admiravam-se que, ao infante galhardo dos seus primeiros anos, se houvesse substituído nele um rapaz macambúzio, isolado, amargo e cruel nas suas conversas camarárias, ressumando sempre uma profunda tristeza.

Aos profundos, parecerá vão; aos superficiais, parecerá tolo — tão grandes consequências para tão fracas causas.

Não me animo a discutir, mas lembro que o amor tem qualquer coisa de parecido...

Visitei-o sempre. Amei-o na sua desordem de espírito, imensa e ambiciosa de fazer o Grande e o Novo. Em uma das minhas visitas, encontrei-o no seu modesto quarto, deitado em uma espécie de enxerga, fumando e tendo um gordo livro ao lado. Eu entrava sem me anunciar. Trocamos algumas palavras e ele me disse logo após:

— Fizeram muito bem em não me deixar ir adiante.

— E essa!

— Não te admires. Continuo a estudar história e estou convencido.

— Como?

— Lê este manuscrito.

Passou-me então um códice fortemente encadernado em couro.

Era o livro que tinha ao lado. Pude ler o título: História da Universidade de Batávia com a biografia dos seus mais distintos alunos, por Degni-Hatdy — 1878.

— Quem é este Degni-Hatdy? perguntei.

— Foi um gênio, meu caro. Um gênio de escola... Recebeu medalhas, diplomas, prêmios... Vive ainda, mas ninguém o conhece mais.

— É de interesse, a memória?

— É, e bastante, pois traz a lista dos alunos ilustres da universidade.

— Quais foram?

Newton, Huyghens, Descartes, Kant, Pasteur, Claude Bernard, Darwin, Lagrange.

— Chega.

— Ainda: Dante e Aristóteles.

— Uff!

— Gente de primeira, como vês; e, quando soube, tive orgulho de ter sido de alguma forma colega deles; mas...

Por aí acendeu um cigarro, tirou duas longas fumaças com a languidez javanesa e continuou com a pachorra batava:

— Mas, como te dizia, bem cedo tive vergonha de ter um dia passado pela minha mente que eu era capaz de emparelhar-me com tais gênios. E verdade que não sabia terem eles frequentado a universidade... Vou esconder-me em qualquer buraco, para me resgatar de tamanha pretensão.

Saí. Ainda o vi durante alguns dias; mas, bem depressa, desapareceu dos meus olhos. Pobre rapaz! Onde estará?