Historias e sonhos (1920)/Livia
E todos os dias quando ela, de manhã cedo, ia, ainda morrinhenta da cama, preparar o café matinal da família, ia toda envolvida num nevoeiro de sonhos, sonhados durante um demorado dormir de oito horas a fio. Por vezes — lá na cozinha, só, vigiando pacientemente a água que fervia — ao lhe chegarem as reminiscências deles em tumulto, juntas, borbulhava-lhe nos lábios uma interjetiva qualquer, eco desconexo do muito que lhe falavam por dentro.
De quando em quando, sofreando um gesto glorioso de satisfação, dizia — é ele — e isso de leve traduzia a grande carícia que lhe era dado gozar naquele instante, refazendo aquele sonho bom — tão bom e acariciador que bem lhe parecia um inebriamento de capitosos perfumes a se evolar do Mistério vagarosamente, suavemente... Depois, logo que o café se aprontava e, na sala de jantar, todos ao redor da mesa se punham a sorvê-lo, mastigando o pão de cada dia — ela, d’olhos parados, presos a uma linha do assoalho, levando compassadamente a xícara aos lábios, ficava a um canto a pensar, remoendo a cisma, procurando decifrar naqueles traços nebulosos — tão mal grudados pela memória — a figura viva daquele com quem, em sonhos, se vira indo de braço dado ruas em fora.
Esforço a esforço, de evocação em evocação, aparecia-lhe aos poucos a sua figura, o seu ar; e, após esse paciente trabalho de reconstrução, lhe vinha, anunciado por um sorriso reprimido que lhe encrespava radiosamente o semblante, o seu nome sílaba por sílaba... Go-do-fre-do. Então com volúpia, ela lhe pesava os recursos: ganhava cento e vinte, no emprego da Central, talvez, em breve, viesse a ter mais. Quarenta para casa e o resto para o vestuário e alimentos.
Era pouco — convinha — mas servia, pois, assim ficaria livre da tirania do cunhado, das impertinências do pai; teria sua casa, seus móveis e, certamente, o marido lhe dando algum dinheiro, ela — quem sabe! — que tão bons sonhos tinha, arriscando no “bicho”, aumentaria a renda do casal; e, quando assim fosse, havia de comprar um corte de fazenda boa, um chapéu, de jeito que, sempre, pelo Carnaval, iria melhorzinha à rua do Ouvidor, assistir passarem as sociedades.
O café já se havia acabado; e ela ficara ainda distraída e sentada, quando soou de lá da sala de visitas a voz vigorosa do cunhado:
— Lívia! Traz o meu guarda-sol que ficou atrás da porta do quarto. Depressa!... Anda que faltam só oito minutos para o trem!
E como se demorasse um pouco, o Marques, redobrando de vigor no timbre, gritou:
— Oh! C’os diabos! Você ainda não achou! Safa! Que gente mole!
Humildemente, Lívia lá foi aos pulos, como uma corça domesticada, entregar o objeto pedido, para lhe ser arrancado bruscamente das mãos...
Envolvida ainda naquele sonho que lhe soubera tão bem a manhã, ela, através das frinchas da veneziana viu o cunhado atravessar a rua e se perder por entre o dédalo de casas.
Certificada disso, abriu a janela. O subúrbio todo despertava languidamente.
As montanhas, verde-negras, quase desnudas de vegetação, confusamente surgiam do seio da cerração tênue e esgarçada. As casas listravam de branco e ocre o pardacento geral, enquanto bocados de neblina, finos, adelgaçados, flutuavam sobre elas como sombras erradias.
As ruas descalças e enlameadas eram atravessadas por alguns transeuntes cabisbaixos, malvestidos, andando céleres em busca do embarcadouro.
Corria, de resto, como sempre, morosamente o viver diário; e a Lívia, sacudida pelo silvo agudo de uma locomotiva, levantou de repente os olhos, até ali fitos na estação que emergia do ambiente pardo a clarear-se, para pregá-los numa nesga do céu que o sol abria, por entre a névoa, furiosamente, vitoriosamente.
A súbitas, sua alma voou, asas abertas, voo rasgado, para outras bandas, outras regiões. Voou para a cidade de luxo e elegância que, ao fim daquelas fitas de aço, refulgia e brilhava.
Representaram-se-lhe os teatros de luxo, os bailes do tom, a rua da moda onde triunfavam as belezas. Ao considerar isso, viu-se ali também, ela, sim! ela, que não era feia, tendo o seu porte flexível e longo, envolvido de rendas, a desprender custosas essências e aqueles seus dedos de unhas de nácar, ornados de ouro e pérolas, escolhendo, na mais chique loja, cassas, baptistes, voiles...
Numa galopada de sonhos, supôs maiores coisas e — lembrando-se do que lhe contara a madrinha (oh! como era rica!) — imaginou a Europa, aquelas terras soberbas, por onde a “dindinha” passeava a sua velhice e o seu egoísmo.
Doidamente revolvia a alma e as cismas... Calculou-se lá também, na alameda de um soberbo jardim, de landau, com ricas vestes ao corpo unidas, ressaltando delas o esplendor de suas formas e o esguio patrício de seu corpo. Imaginou que, através de um caro chapéu de palhinha branca, se coasse a luz macia do sol da Europa, polvilhando-lhe a tez de ouro, em cujo fundo brilhassem muito os seus olhos vivos, negros e redondos.
— Oh! que bom! Quem me dera! — quase exclamou por esse tempo.
De reviravolta, Lívia adivinhou outra coisa no sonho. Não pensara bem; era outro que não o Godofredo, o rapaz que imaginara.
Aquele nariz grosso, aquela testa alta, o bigode ralo, não eram dele; eram antes do Siqueira, estudante de farmácia, filho do Agente. Esse poderia lhe dar aquilo — a Europa, o luxo — pois que formado ganharia muito.
Dessa forma — resolvera — “amarraria a lata” no Godofredo e “pegaria” com o Siqueira. E era muito melhor! O Siqueira, afinal, ia formar-se, seria um marido formado, ao braço do qual, se não fosse à Europa, viria a gozar de maior consideração...
Demais a Europa era desnecessária — para quê? Era querer muito. Quem muito quer nada tem; e ela para ter alguma coisa devia querer pouco. Bastava pois que lhe tirassem dali, fosse esse, fosse aquele; mas... se em todo o caso pudesse ser um mais assim... seria muito melhor.
E desde quando vinha ela querendo aquilo? Havia muitos anos; havia dez talvez. Desde os doze que namorava, que “grelava” só para aquele fim; entretanto, apesar de haver tido mais de quinze namorados, ainda ali estava, ainda ali ficava, sob o mando do cunhado.
Quinze namorados!
Quinze! De que lhe serviram?
Um levara-lhe beijos, outro abraços, outro uma e outra coisa; e sempre, esperando casar-se, isto é, libertar-se, ela ia languidamente, passivamente deixando. Passavam um, dois meses, e os namorados iam-se sem causa. Era feio, diziam; mas que fazer? como casar-se?
Por consequência, como viver? A sua própria mãe não lhe aconselhava? Não lhe dizia: “Filha, anda com isso; preciso ver esta letra vencida”?
De resto, o amor lhe desculparia, pois não é o amor o máximo tirano? Não é a própria essência da vida, das coisas mudas, dos seres, enfim?
Porventura ela os amara? Teria ela amado aquela legião de namorados? Amara um, sequer? Não sabia...
— O que é amar? interrogava fremente. Não é escrever cartas doces? Não é corresponder a olhares?
Não é dar aos namorados as ameaças da sua carne e da sua volúpia?
— Se era isso, ela amara a todos, um a um; se não era, a nenhum amara...
E o que era amar? Que era então?
Ao lhe chegar essa interrogação metafísica, para o seu entendimento, ela se perdeu no próprio pensamento; as ideias se baralharam, turbaram-se; e, depois, fatigada, foi passando vagarosamente a mão esquerda pela testa, correu-a pacientemente pela cabeça toda até à nuca.
Por fim, como se fosse um suspiro, concluiu:
— Qual amor! Qual nada! A questão é casar e para casar, namorar aqui, ali, embora por um se seja furtada em beijos, por outro em abraços, por outro...
— Ó Lívia! Você hoje não pretende varrer a casa, rapariga? Que fazes há tanto tempo na janela?!
Obedecendo ao chamado de sua mãe, Lívia foi mais uma vez retomar a dura tarefa, da qual, ao seu julgar, só um casamento havia de livrá-la para sempre, eternamente...