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Horas de Folga/O presente de Susana

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O PRESENTE DE SUSANA




E’ o dia dos anos de Susana e todas as suas amiguinhas se apressam a ir visitá-la e a levar-lhe presentes.

A mãe deu-lhe uma grande boneca, o pai uma mobilia e a tia Leonor, tendo percebido que ela preferia os jogos a qualquer outra brincadeira, deu-lhe um novo jôgo, que ainda em Lisbôa estava pouco visto, chamado Os principais rios de Portugal. Fechadas numa grande caixa estavam várias peças de madeira. A maior representava o Oceano Atlântico: as outras, todos os nossos rios que ali vão desaguar.

As peças do jôgo sacudiam-se e baralhavam-se ao acaso dentro dum saco. Supunhâmos que um menino tirava o bocadinho de madeira que representava o rio Minho. Nas costas desse pedaço de madeira estava escrito:

«Vem de Espanha, separa a Galiza da província portuguesa do Minho, banha Melgaço, Valença, e Caminha. E’ navegavel até Monsão.»

Devia dizer tudo isto muito depressa, sem se enganar . Enganando-se, pagava prenda e assim corria a roda, mas sem haver berlinda. No fim de três voltas contava-se o que mais enganos tivesse tido e era-lhe


O presente de Paulo

entregue o pedaço grande. Devia então ler muito depressa, nas costas dêle, o curso de todos os rios que nêle fôssem desaguar e, sempre que se enganasse, o menino, que tinha o nome do rio, devia-o emendar e obrigá-lo a beijar-lhe a mão. Era um jôgo para dez pessôas que muito iria divertir Susana. Pelo menos ela assim o pensou.

Á tarde perguntou-lhe a mãe:

– ¿De todos os presentes que tiveste, qual te agradou mais?

– ¿Com verdade, verdade?

– Decerto, nem eu quero que me fales de outro modo.

– Dos rios de Portugal.

– ¿Mais que da boneca?

– Muito mais. Depois de jantar vai a minha mãe vêr como eu me vou divertir.

Os primos de Susana eram cinco: por isso os mais velhos resolveram ficar com dois rios cada um.

Susana chocalhou o saco e estendeu-o a Rogério que tirou dois pedacinhos de madeira e disse com muita rapidez: Sou o Lima. Venho de Espanha, atravesso a província do Minho e passo por Ponte de Lima e Viana. Sou navegavel até Ponte da Barca.

– Quantos kilómetros tem de curso?

– 110.

– E’ águia, não é urso.

Outro meteu a mão no saco. Foi o Paulo: saíu-lhe o Cávado.

– Eu sou o Cávado. Nasço na serra do Lourenço.

Uma gritaria medonha, acompanhada de imensas risadas, cobriu a voz do pequeno que, muito vermelho, indagava:

– ¿Então não disse bem?

– Este é urso, não é águia, gritavam os outros com mais força.

– Não é serra do Lourenço. E’ serra do Larouco.

E, para mostrar que sabia muito bem, a Virgínia continuou do lado:

– Corre junto de Montalegre e Barcelos, e entra no Atlântico formando porto em Esposende. E’ navegavel durante 12 kilómetros.

– Qual é o teu curso?

– 100 kilómetros, respondeu Paulo a mêdo, apesar de estar vendo com muita atenção o que estava escrito nas costas do seu pedacito.

– Vá lá. E’s águia, não és urso.

Era a vez de Susana. Metendo a mão no saquinho, tirou um pedaço de madeira e com uma rapidez espantosa, papagueou.

– Sou o Douro. Venho de Espanha, separo a Beira de Traz-os-Montes e Minho, banho S. João da Pesqueira, Peso da Regoa e Porto. Tenho cinco afluentes e deixo-me navegar no espaço de 165 kilómetros.

– Tens grande curso?

– 640 kilómetros.

– E’s águia, não és urso.

E assim correram o jôgo todo, chamando ursos aos que se enganavam e águias aos que diziam bem. Escusado é dizer que foi Paulo que teve o Oceano Atlântico.

Então as tolices dele amontoaram-se umas sobre as outras e as gargalhadas recrudesceram.

Quando acabasse de dizer todos os rios que nêle iam desaguar, tinha de fugir e alcançar o couto sem que nenhum dos rios o apanhasse. Se o conseguisse continuava sendo o Atlântico; se perdesse, passava a ser o Mira.

Acharam tanta graça a este jôgo os primos de


Susana e o primo Paulo

Susana que tomaram nota dos nomes dos rios, escrevendo num papelinho: Tejo, Guadiana, Douro, Mondego, Sado, Vouga, Lima, Cávado e Mira, e por traz de cada nome os correspondentes dizeres para estudarem em casa e jogarem melhor para a outra vez.

O pequeno Paulo, quando se despediu de todos e regressou a casa, ia triste e acabrunhado. O pai julgou que era sono, mas, ao passar a carruagem por um bico de gaz, viu que o filho estava muito esperto e que uma lágrima lhe brilhava nos olhos.

– ¿Que tens tu, Paulo?

– A prima Susana tem lá um jôgo, chamado Os principais rios de Portugal, e eu fui o único menino incapaz de o jogar bem. Não só fiquei Oceano Atlântico, como me chamaram no resto da noite o Mira e urso.

E explicou ao pai como era o jôgo.

– Se tu estudasses e não fosses tão preguiçoso, terias feito melhor figura; mas não te desconsoles: estás a tempo de remediar o mal. Eu vou comprar-te um jôgo.

No dia seguinte o pai de Paulo procurou por todas as lojas um jôgo igual ao de Susana, e não o encontrou. Então chamou um marceneiro, mandou fazer as peças de madeira e pintou-lhas êle; mas querendo torná-lo superior ao da sua sobrinha Susana meteu-lhe tambem os afluentes dos nossos rios e tornou o jôgo maior e mais interessante. Todas as noites Paulo, antes de se deitar, jogava uma partida com a mãe, e oito dias depois já era um excelente parceiro: nenhum dos meninos que com êle brincava seria capaz de conhecer melhor a hidrògrafia portuguesa.

Convencido disso pediu ao pai que o levasse a jantar a casa da prima num domingo, dia em que todos os meninos da família se juntavam ali.

Foi e jogou melhor do que todos os outros, que ficaram espantados do seu imprevisto saber.

Susana prometeu-lhe ir a casa dêle para ver o jôgo que o pai lhe fizera e os seus aumentos, e os meninos que lá estavam, quando fôram para casa, pediram aos pais cartão forte e talharam um jôgo para si. O mesmo podem fazer os meus pequenos leitores. Mas voltemos a Paulo: de volta a casa, com seu pai, dizia-lhe:

– Hoje, sim! Ficaram todos êles com cara de parvos.

– Ora dize-me lá, perguntava-lhe o pai em tom amigavel: ¿valeu ou não valeu a pena estudar umas noites?

– Isso valeu. Fiz um figurão. Não precisei de ler nada. Eu sabia tudo aquilo.

– Já vês que o estudo tem as suas compensações, disse o pai abraçando-o afectuosamente.

 
 

Susana, ao deitar-se no seu pequenino leito, acolchoado de seda côr de rosa, contava á mãe as peripécias do jôgo e terminava assim:

– ¿Lembra-se da triste figura que o Paulo fez no dia dos meus anos, mãezinha?

– Lembro. Não admira: êle sempre foi muito pouco estudioso…

– Pois olhe que hoje soube mais do que todos nós. Fiquei espantada. E’ preciso fazer-lhe justiça.

– Se a merece, emendou a mãe ainda duvidando.

– Merece, merece. Não imagina a pena que tenho de o ter tido tanto tempo na conta de tôlo.


… ao deitar-se no seu pequenino leito

– E’ o contra de ser preguiçoso: chega-se a parecer estúpido. Felizmente que tu nunca o pareceste.

E, muito contente de ter uma filha aplicada ao estudo, a mãe de Susana foi contar ao marido a boa transformação de Paulo.