Iaiá Garcia/XIII
Jorge achou em casa, nessa mesma noite, uma carta de Buenos Aires. Procópio Dias narrava-lhe a viajem e os primeiros passos, e dizia ter toda a esperança de se demorar pouco tempo. Tudo isso era a terça parte da carta. As duas outras terças partes eram saudades, expressões de sentimento, e um nome no fim, um nome único, e que era a chave do escrito. Jorge leu atentamente essas confidências, na mesma noite esboçou uma resposta. Não era fácil combinar a discrição que quisera conservar em suas relações com Procópio Dias e a necessidade de lhe mandar algumas esperanças. Embora com esforço, redigiu a resposta conveniente, contando-lhe as boas impressões que tinha; só as boas, não lhe disse as duvidosas; sobretudo não desceu a nenhuma realidade, a nenhum nome próprio; nada mais que uma extensa série de locuções igualmente animadoras e vagas.
No dia seguinte não foi à casa de Luís Garcia; choveu torrencialmente. Mas no outro dia foi, logo depois do jantar. Achou reunida a família.
— Good evening, my dear mestre! bradou Iaiá logo que o viu entrar na sala.
— Faltava mais uma língua a esta tagarela, disse Luís Garcia rindo; daqui a pouco tempo ninguém a poderá aturar.
Jorge não esperava, decerto, encontrar na moça a mesma expressão que lhe deixara na antevéspera, quando de um gesto nervoso lhe comprimira o pulso. Tinham passado quarenta e oito horas, e para que ela se restabelecesse bastariam apenas quarenta e oito minutos. Contava com a mudança; não obstante procurou ler-lha nos olhos, e achou-os tão alegres como o tom em que ela o saudara. A lição isolou-os, e foi também o pretexto mais favorável para lhe mostrar a carta de Procópio Dias. Iaiá viu-a selada e compreendeu tudo; arrebatou-a às mãos de Jorge.
— Ah! disse este, seu gesto vale um discurso.
— Posso ler?
— Pode.
Iaiá desdobrou a carta e leu-a para si. Enquanto lia, Jorge fitava-a. Não lhe via nenhuma confusão, alvoroço ou alegria; os olhos seguiam lentamente de uma linha a outra, e a mão firme voltava a página. No fim, quando leu o próprio nome, teve um movimento de tédio; e inconscientemente amarrotou o papel; mas emendou-se logo, alisou a carta com a mão e restituiu-a silenciosamente. Durante alguns segundos ocupou-se em traçar com um lápis alguns círculos na margem da folha aberta da gramática; ergueu enfim os olhos e perguntou sem rir:
— Acredita no que diz essa carta?
— Acredito; tudo o que está aí escrito, já o ouvi de viva voz, e com a mesma sinceridade e calor. Quem sabe? pode ser que seja o primeiro amor desse homem.
— O primeiro... o primeiro... repetiu ela entre dentes.
— Talvez o primeiro, insistiu Jorge; e para uma moça, acho que deve ter algum encanto ser amada por um homem, considerado superior às paixões. A vida de Procópio Dias teve sempre outra ordem de interesses...
— Conhece-o há muitos anos?
— Há muitos, não; conheço-o desde o Paraguai.
— Acha que eu fazia bem em me casar com ele?
— Bem ou mal, conforme o amor que lhe tiver. Esse é o ponto necessário, e em meu conceito, o ponto duvidoso. Receio que a senhora o não ame deveras; já tive ocasião de o dizer.
— Preciso de alguns esclarecimentos. O senhor amou decerto alguma vez...
— Nunca.
— Nunca? Nunca teve um amor, um só que fosse? Não creio. Um coronel! Nada; não creio; só se me jurasse; era capaz de jurar?
— Juro.
— Em nome de sua mãe? concluiu ela fitando-lhe uns olhos cuja expressão imperativa contrastava com o tom submisso da palavra.
Jorge hesitou um instante. Tinha cepticismo bastante para proferir uma fórmula vaga de juramento; mas recuou diante da fórmula positiva. Hesitou e ladeou a pergunta.
— Esse nome resume justamente o meu único amor, disse ele; amei a minha mãe.
Iaiá sorriu com ar de dúvida; depois olhou para ele comovida. — Eu amo meu pai, redargüiu ela; nossos corações podem entender-se.
A esta palavra não havia que replicar; pareceu-lhe a condenação do pretendente. Apertou a mão que a moça lhe estendeu, e sentiu-a fria. Após uma curta pausa, abanou a cabeça, murmurando:
— Assim pois, nenhuma sombra de esperança...
— Faça o que entender, disse a moça no fim de outra pausa. Em todo o caso desejo ter a resposta que lhe der.
Jorge abriu a carteira, e tirou de lá o rascunho da carta que pretendia mandar a Procópio Dias.
— A resposta, disse ele, já está escrita. Não querendo matá-lo, pus aqui algumas gotas de esperança; não ousaria contudo mandar o remédio, sem ouvi-la.
Iaiá recebeu o papel dobrado, olhou um instante para ele, outro para Jorge. — Leia, disse este. Iaiá não obedeceu: pegou do lápis, e sobre a folha do papel dobrado começou a lançar os traços de um desenho. Posto que a luz batesse em cheio no papel, Jorge não pôde ver desde logo o que era; mas esperava, em frente da moça, que ela rematasse o capricho. Nessa ocasião Estela foi ter com eles.
— Já acabou a lição? perguntou.
— Agora é uma lição de desenho, ao que parece, disse Jorge.
Estela pôs a mão no ombro da enteada. — É o Procópio Dias! disse ela olhando para o desenho. Era, mas o desenho frisava com a caricatura; a fealdade de Procópio Dias excedia as proporções verdadeiras, o nariz era enormemente triangular, as rugas da testa grossas e infinitas: um monstro cômico. Estela sorriu da travessura, mas repreendeu-a.
— Deixe ver, disse Jorge quando ela acabou.
— Para quê? retorquiu Iaiá com indiferença.
E levando o papel à chama, queimou-o. Jorge interrogou-a com os olhos; ela encarou-o sem se perturbar. Depois folheou a gramática lentamente.
— Continuemos a lição, disse ela. I love. Vá; onde estávamos? Aqui, era aqui.
Estela assistiu à lição toda, com a paciência da curiosidade. Não olhava nunca para o mestre, dividia a atenção entre a discípula e o livro. A lição foi longa, mais longa do que era necessário, porque o próprio mestre não acompanhava pontualmente o texto e a leitura. Iaiá tinha diante de si dois juízes, cada um dos quais buscava decifrar-lhe na fronte a inscrição que lá lhe teria posto o seu destino. Percebia-o, e não se enfadava. Ia de um tempo a outro, e do indicativo ao imperativo, voltando ao começo logo que chegava ao fim, fitando os dois inquisidores com um olhar em que pareciam dormir todas as ignorâncias da terra.
A tranqüilidade era aparente. Nessa noite, recolhida aos aposentos, a moça deu largas a dois sentimentos opostos. Entrou ali prostrada. — Que estou eu fazendo? disse ela apertando a cabeça entre os punhos. Abriu a veneziana da janela e interrogou o céu. O céu não lhe respondeu nada; esse imenso taciturno tem olhos para ver, mas não tem ouvidos para ouvir. A noite era clara e serena; os milhões de estrelas que cintilavam pareciam rir dos milhões de angústias da terra. Duas delas despegaram-se e mergulharam na escuridão, como os figos verdes do Apocalipse. Iaiá teve a superstição de crer que também ela mergulharia ali dentro e cedo. Então, fechou os olhos ao grande mudo, e alçou o pensamento ao grande misericordioso, ao céu que se não vê mas de que há uma parcela ou um raio no coração dos símplices. Esse ouviu-a e confortou-a; ali achou ela apoio e fortaleza. Uma voz parecia dizer-lhe: — Prossegue a tua obra; sacrifica-te; salva a paz doméstica. Restaurada a alma, ergueu-se do primeiro abatimento. Quando abriu de novo os olhos, não foi para interrogar, mas para afirmar, — para dizer à noite que naquele corpo franzino e tenro havia uma alma capaz de encravar a roda do destino.
Tarde conciliou o sono. Já dia claro, sonhou que ia calcando a beira de um abismo, e que uma figura de mulher lhe lançava as mãos à cinta e a levantava ao ar como uma pluma. Pálida, com o olhar desvairado, a boca irônica, esta mulher sorria, de um sorriso triunfante e mau; murmurava algumas frases truncadas que ela não entendia. Iaiá bradou-lhe em alta voz: — Dize-me que não amas e eu te amarei como te amava! Mas a mulher, sacudindo a cabeça com um gesto trágico, e colando-lhe os lábios nos lábios, soprou ali um beijo convulso e frio como a morte. Iaiá sentiu-se desfalecer e rolou ao abismo. Acordou agitada e deu com a madrasta, a contemplá-la, ao pé da cama. No primeiro instante, fechou os olhos e recuou até a parede; mas logo depois voltou a si.
— Tive um pesadelo horrível, disse ela respirando largamente; rolei no fundo de um abismo, empurrada por duas mãos de ferro. Ainda estou fria. Veja as minhas mãos. Tenho o peito oprimido. Felizmente passou. Está aqui há muito tempo? Eu agitei-me muito?
— Falaste em voz bem alta.
— Que foi?
— "Dize-me que não amas e eu te amarei como te amava." Não sei que estas palavras se possam dizer no fundo de um abismo. Tu confundes os sonhos...
— Talvez; não me lembra outra coisa. Só me lembro do abismo, que felizmente não passou da minha imaginação. É muito tarde, não é?
— Nove horas.
— Nove horas!
Estela foi à janela, e, abrindo a veneziana, mostrou-lhe o sol. Depois encostou-se ali a olhar para fora. Entrara alguns minutos antes, admirada do prolongado sono da enteada, e ia pousar-lhe a mão no ombro, quando ouviu aquela palavra balbuciada no meio de grande agitação; palavra misteriosa e vaga, mas que se lhe embebeu no coração como um espinho. De sua parte, Iaiá não estava menos inquieta. Receava que houvesse dito alguma coisa mais, — um nome ou uma circunstância precisa; — em todo caso, era bastante o que ouvira a madrasta, para imaginar, que o sonho lhe escancarara as portas da consciência. Uma e outra espreitavam-se desconfiadas e medrosas. A madrasta deixou a janela e foi sentar-se na beira da cama. Ambas sorriam com esforço e nenhuma conseguia falar primeiro. Correram assim três longos minutos de acanhamento e observação recíproca. Estela foi a primeira que rompeu o silêncio.
— O teu pesadelo foi um castigo, disse ela; foi o castigo da caricatura que ontem fizeste. Aquilo não é bonito. Todos sabem que o Procópio Dias é bem recebido em nossa casa. Que se há de pensar de nós, quando virem que se tratam assim as pessoas ausentes?
Iaiá refletiu um instante.
— Era preciso, disse ela; era uma maneira de desenganar de uma vez as pretensões desse senhor.
— Mas quem te falou nelas?
— O Dr. Jorge, que parece protegê-lo. Não é possível que haja ninguém mais feliz do que aquele homem. Bastou gostar de mim, para que todos se empenhem em aprová-lo e aconselhar-me que não devo tomar outro marido. Parece-lhe que eu...
— A que propósito te falou nisso o Dr. Jorge?
— A propósito de coisa nenhuma; falou porque é amigo dele. Não lhe disse eu uma vez que um dia, se todos teimarem, serei obrigada a casar com Procópio Dias? Receio muito que assim aconteça.
— Não, disse Estela vivamente; não há de acontecer assim, primeiramente porque eu não o consentirei nunca; depois, porque tu amas o outro...
— Eu?
— O teu amor de colégio, aos doze anos e meio...
— Ah! disse Iaiá. E depois de alguns instantes continuou, com um gesto de grande vergonha: — Fiz mal em lhe dizer aquilo; peço-lhe que não repita a ninguém.
Estela não ouviu as últimas palavras. Erguera-se outra vez para dissimular a comoção, que parecia crescer. Entretanto, Iaiá enfiou um roupão e enterrou o pé na chinelinha matinal. Quando, cinco minutos depois, encontrou os olhos de Estela, achou-os sombrios, como os da figura do pesadelo, e insensivelmente buscou ver se teria um abismo ao pé de si.
— Iaiá, disse Estela em tom seco, tu amas, tu confessas que amas a alguém; quero que me digas o nome desse homem, ouves? Exijo sabê-lo para avaliar o que te convém. Sabes que tenho autoridade de mãe.
Iaiá sentiu ferver-lhe o sangue nas veias.
— Minha mãe morreu, redargüiu com igual sequidão; estou pronta a obedecer a meu pai.
Estela apenas disfarçou a sensação interior; após alguns instantes de silêncio, saiu.
Longe da enteada, a madrasta deu inteira expansão aos sentimentos que a combaliam. Fechou-se no gabinete do marido; depois evocou o passado, como uma força contra o presente, porque era o presente que ameaçava tragá-la. Um instante abalada pela leitura da carta de 1867, buscou recobrar a antiga quietação, mas a interferência de Iaiá perturbou essa obra de sinceridade. O procedimento da enteada, a súbita conversão às atenções de Jorge, toda aquela intimidade visível e recente, acordara no coração de Estela um sentimento, que nem aos orgulhosos poupa. Ciúme ou não, revolvera a cinza morna e achou lá dentro uma brasa. Suspeitou a rivalidade da outra, e não foi preciso mais para que o grito de rebelião fizesse estremecer aquela alma solitária e virgem. O pensamento perdeu a habitual placidez. O coração começou de bater com a celeridade e a violência das grandes febres.
Eram as energias latentes de um amor comprimido, mas intenso, como uma cratera que acaso fechasse uma abóbada de gelo; pior que tudo, tinha a fatalidade de um longo constrangimento, a luta de duas forças igualmente pujantes, indomáveis e cegas. O orgulho vencera uma vez; agora era o amor, que, durante os anos de jugo e compreensão, criara músculos e saía a combater de novo. A vitória seria uma catástrofe, porque Estela não dispunha da arte de combinar a paixão espúria com a tranqüilidade doméstica; teria as lutas e as primeiras dissimulações; uma vez subjugada, iria direito ao mal.
Ora, no meio desse duelo, já doloroso, embora ainda curto, ouviu Estela a última palavra da enteada, comentário da que lhe escapara na agitação do pesadelo. Saiu dali aterrada, rateando as sombras, e desviando os olhos quando algum clarão de realidade se lhe acendia ao longe. Não podia crer na rivalidade consciente e declarada de Iaiá; era inverosímil, seria a sua própria vergonha e condenação. Mas as palavras retiniam-lhe ao ouvido, e o gesto frio e duro da enteada parecia clarear o que havia obscuro nelas.
Não podia durar muitas horas a situação em que a fatalidade das circunstâncias havia posto as duas mulheres. Iaiá era a mais dúctil, e, outrossim, a mais interessada. Logo que Estela a deixou só, caiu em si e compreendeu que, além de ferir cruelmente a mulher que lhe servia de mãe, levantara uma ponta do véu que trazia envolto o pensamento; ao demais, a injúria produzira a reação do amor, — do amor que lhe tinha e não perdera de todo, apesar dos acontecimentos últimos. Na seguinte manhã foi ter com a madrasta.
— Confesso que fui excessiva e desobediente, disse ela; não o devia ser, mas a senhora falou com um modo tão seco! tão duro. Pareceu-me que duvidava de mim; fosse o que fosse, não era o seu modo do costume. Sempre a respeitei como minha mãe; não nego, não poderia negar nunca os seus direitos, assim como não desconheço a sua amizade; mas a senhora mesma tem um bocadinho de culpa; sempre me tratou antes como irmã do que como filha. Daí veio alguma confiança, alguma liberdade, e foi por isso que ontem cheguei a esquecer quem éramos, para a tratar como não devia. Foi isso somente; foi um excesso, uma leviandade, nada mais. Consulte o seu próprio coração e ele lhe responderá que não foi mais do que isso. Vá; pergunte-lhe, ele me conhece.
Estela escutou-a silenciosamente, sem vergar a altivez da fronte, mas também sem nenhuma expressão de despeito ou desafio. Luzia-lhe nos olhos alguma coisa que espreitava a alma da outra por baixo das pálpebras descidas. Iaiá falara de um jacto, mas não de um só tom; simplicidade, timidez, faceirice, — havia de tudo na maneira por que se exprimiu durante aqueles poucos segundos. A explicação era a um tempo sincera e hábil, mas de tal modo se confundiam os dois caracteres, que a própria habilidade não tinha consciência de si: era antes um instinto do que um cálculo.
— Que me pedes tu? disse Estela no fim de alguns instantes. Que te perdoe? Que esqueça a tua imprudência? Uma coisa é mais fácil do que a outra. Estás absolvida; faze agora com que eu esqueça.
— Por que não? eu consegui fazer com que me amasse, quando a senhora não sabia ainda se eu era má ou boa.
— Era fácil. Tua mãe era tua mãe; mas não te amou mais do que eu. Se alguma vez o reconhecesse, não foi ontem; ontem cedeste a um mau preconceito contra as madrastas, e levantaste entre mim e ti um espectro, que se pudesse falar seria para te condenar também. Não me queixo; nunca me queixei de coisa nenhuma; quando estimo alguém, perdôo, quando não estimo, esqueço. Perdoar e esquecer é raro, mas não é impossível; está nas tuas mãos.
Subjugada pelo tom com que a madrasta falara, simples, severo e levemente repassado de tristeza, Iaiá cedeu a um nobre impulso de submissão. Pegou-lhe nas mãos e beijou-as. A madrasta sentiu nelas uma lágrima. Não recusou este testemunho do coração, e tê-la-ia apartado ao seio se lho permitisse a inflexibilidade do espírito. Limitou-se a contemplá-la com os olhos amoráveis de outro tempo.
Quando se separaram daí a alguns minutos, alguma coisa dizia à consciência de ambas que não vinham de fundar a paz, mas simples tréguas. Essa persuasão cresceu nos demais dias, porque uma e outra sentiam-se mutuamente observadas. Como houvesse entre elas um acordo tácito para não turbar a paz doméstica, Luís Garcia não percebeu essa situação nova; Jorge ainda menos do que ele. Iaiá não alterou os hábitos dos últimos dias, conquanto usasse mais alguma cautela; as relações dos dois eram, aliás, tão freqüentes e familiares como dantes. Uma vez, como a ausência de Jorge se houvesse prolongado além do costume, Iaiá mostrou-se-lhe um pouco retraída; e, perguntando-lhe ele o que tinha, respondeu afoitamente que a ausência a magoara muito.
— Quatro dias apenas, observou ele.
No primeiro domingo de março, Jorge foi ali às onze horas da manhã, e só achou Luís Garcia e Estela. Iaiá tinha ido à casa de Maria das Dores. Quando a moça voltou, Jorge e Estela estavam no jardim, ao pé da porta da sala; entre ambos havia uma cadeira vaga, — a de Luís Garcia, que fora dentro alguns minutos antes. Nenhum dos dois falava nessa ocasião; Estela estalava as unhas, Jorge batia na testa com o castão da bengala. Era constrangimento? Era dissimulação? Iaiá não soube decidir; mas o aspecto dos dois deixou-a sem pinga de sangue.
No dia seguinte voltou à casa de Maria das Dores; sabia do passeio usual de Jorge; queria vê-lo, falar-lhe. A doente não contava com a visita tão próxima da outra. Iaiá esteve com ela apenas alguns minutos, e saiu fora, a pretexto de que fazia calor e queria ver a tarde. A tarde era bela; o céu tinha todos os tons, desde o escarlate até o opala; ao nascente, algumas nuvens, raras e finas, manchavam de branco o fundo azul.
A casa ficava numa pequena elevação; Iaiá sentou-se numa pedra lisa, que servia de banco, e ali circulou um olhar pelo horizonte; depois desceu os olhos à cidade e ao mar, e esse espetáculo, tão sabido deles, levou-a aos tempos, não mui remotos, em que entre ela e o pai nenhum coração viera interpor-se. No meio das reflexões, viu parar um homem, ao longe; era Jorge; vinha a pé, em atitude de quem medita. Passaria ele sem a ver? Ergueu-se; viu-o aproximar-se, parar de novo e olhar na direção da casa. Cortejou-o de longe e fez-lhe sinal para que subisse. Jorge obedeceu sem dificuldade.
Maria das Dores, doente de uma paralisia, ficou estupefata quando viu entrar um desconhecido pela mão de Iaiá. Interrogou a moça com os olhos, e Iaiá, depois de um instante de acanhado silêncio, respondeu com desgarre:
— É meu noivo, que vem vê-la. Quero que o conheça e não diga nada a ninguém, ouviu?
Dizendo isto, aproximou-o mais da paralítica. A boa velha contemplou-o alguns instantes, disse-lhe algumas palavras de conselho, pediu-lhe que fizesse feliz a sua filha de criação, e não obteve dele uma palavra ou um gesto de assentimento. Supô-lo comovido; mas ele estava simplesmente atônito.
Saindo fora da casa, assentaram-se à porta, na mesma pedra, assaz larga e extensa para dois.
— Foi preciso dizer-lhe aquilo, explicou Iaiá, porque eu desejo conversar com o senhor, e os noivos conversam mais à vontade. Demais, ela não é só paralítica; tem a vista fraca; amanhã posso substituí-lo, sem que ela dê pela mudança. Agora falemos de nós e daquela carta... E antes da carta, diga-me, sabia que eu estava aqui?
— Não; mas não vim até estes lados sem esperança de a encontrar. Já que fala na carta, deixe-me dar-lhe uma explicação; se a não dei até hoje, é porque não quisera voltar a um assunto, aborrecido para a senhora e para mim.
— Para o senhor?
— Para mim.
Iaiá apertou-lhe a mão com força.
— Vá, disse; também tenho de lhe dizer alguma coisa grave; mas ouçamos primeiro a sua explicação.
— Oh! custa pouco, acudiu Jorge. Escrevi o esboço da carta por me parecer que podia ser-lhe agradável. Lembra-se que uma vez me havia falado naquele sentido? Duvidei mais tarde, e disse-lho. Contudo, havia tanta incerteza e contradição entre suas palavras e ações, que não era difícil supor alguma coisa; há paixões que começam assim caprichosamente. A carta era um meio de dizer ao pretendente que seus suspiros podiam não ser inúteis. Era isso; só isso. Confesso que adotei o papel mais passivo, desinteressado, e, não sei até se... creio que a senhora já o qualificou de ridículo. A forma podia não ser grave, mas a intenção era afetuosa, e se merecia um riso, também merecia um aperto de mão. Esboçada a carta, não a mandaria sem mostrá-la; foi o que fiz; mas sua reprovação foi tão eloqüente, que me fez cair em mim e reconhecer que a carta era demais.
— Era de menos.
— Queria então que fosse eu próprio a Buenos Aires? perguntou Jorge sorrindo.
— Queria, se ao chegar lhe dissesse: — Pense em outra coisa; Iaiá não o ama.
— Para isso, basta que lhe não diga nada.
— Não o ama, repetiu a moça; não o ama, não o ama.
— Desta vez é sério e definitivo?
— Que admira? replicou a moça com gravidade. Não parece a coisa mais natural do mundo que uma moça não ame o Procópio Dias? Não sei o que são os outros homens; poucos tenho visto; nossa vida é tão retirada! Mas, enfim, não me parece que o Procópio Dias seja homem de se ficar morrendo por ele. E contudo ele morre por mim. Meu coração perdoa-lhe; é o mais que pode fazer. Aceitá-lo seria impossível. Já reparou nos olhos dele? Têm às vezes uma expressão esquisita, que não vejo nos olhos de papai nem nos seus. Não gosto dele; não poderia gostar nunca.
Desta vez foi Jorge que lhe apertou a mão.
— Tem razão, disse ele; se o não ama deveras está tudo acabado. Não lhe digo que ele fosse um noivo perfeito: não podia ser; mas aceitável era. Hoje percebo que entre a senhora e ele há alguns contrastes; mas o que é que não concilia o tempo? Esqueça o que lhe disse a tal respeito; e assentemos não falar mais de semelhante assunto. Provavelmente não escreverei nada; é duro dizer a um homem que todas as suas esperanças são vãs.
— A paz do meu espírito não valerá esse sacrifício?
— Vale mais; posso fazê-lo.
Iaiá refletiu.
— Não, não é preciso; não lhe diga nada; ele há de entender tudo.
Como fizessem uma pausa longa, viram duas ou três pessoas, que passavam em baixo, olharem para cima com certo ar curioso e indiscreto. Jorge ergueu-se.
— Estamos dando na vista, disse ele; hão de supor que somos dois namorados.
— Sente-se, disse Iaiá em tom intimativo. E continuou: — Que perde o senhor com isso? Dirão que não tem mau gosto em amar uma moça bonita.
— Se dissessem que éramos dois namorados, erravam decerto, porque eu sei... eu suspeito que a senhora ama a outro. Uso dos meus direitos de confidente, exigindo que me diga a verdade.
— Toda, respondeu Iaiá, e era esse o ponto grave de que lhe queria falar. Ainda uma vez, o senhor estima-me? tem-me amizade sincera?
— Pois duvida?
— Eu duvido de tudo e de todos; até de mim. Mas, enfim, preciso de alguém que me ouça, a quem eu conte o que penso e o que sinto, e até o que receio, porque também receio, e há horas em que tremo sem saber de quê. É verdade, há ocasiões em que me parece que uma grande infelicidade vai cair sobre mim, e daí a nada penso justamente o contrário; penso que vou receber a maior felicidade do mundo, e fico alegre como um passarinho. Coisas de criança, não é?
— Não, coisas de moça. É certo que ama? a quem?
Iaiá olhou para ele algum tempo, satisfeita da impaciência que parecia ler-lhe na fronte.
— Repondo que sim e que não, disse ela. Se me pergunta a quem amo, digo-lhe que não sei, não amo ninguém; mas sinto alguma coisa misteriosa e esquisita, e não sei... desconfio... não sei que seja. Por que é que as mesmas coisas, que me eram indiferentes, agora me parecem interessantes, e até chego a supor que me falam? Ainda há pouco, antes de o ver, estava a olhar embebida para o céu, quase sem pensar, mas ainda assim curiosa ou ansiosa; olhava para o céu e para o mar; o coração apertou-se-me; depois alargou-se-me como se quisesse devorar tudo. Há dias em que me levanto alegre e viva, como uma criança; papai diz que são os meus dias azuis. Há outros em que tenho vontade de quebrar tudo, e não digo mais de duas palavras em cada hora; são os meus dias negros. Ouço às vezes uma voz que me fala; penso que é alguém e reconheço que a voz é a da minha própria imaginação. Tudo será imaginação, creio; mas é tão novo e tão bom! Em todo caso, parece-me extraordinário, e se não é loucura... É verdade, às vezes penso que vou ficar doida, e nessas ocasiões tenho medo. Será isso?
— Não, acudiu Jorge, não é loucura, é sabedoria, é a grande sabedoria da natureza. Isso que sente, não será amor; mas é a necessidade de amar; é o rebate que lhe dá o coração. Alguém virá um dia, e a voz anônima que a senhora costuma ouvir, lhe falará então pela boca do homem que o coração lhe apontar.
Iaiá escutava-o como encantada, mas sem olhar para ele. Quando Jorge acabou, fez-se entre ambos uma longa pausa. A moça tinha os olhos no horizonte onde as cores da tarde desmaiavam rapidamente. Jorge contemplava-a tomado de interesse e até de inveja; compreendia os primeiros sobressaltos desse coração em flor, e dizia a si mesmo que há sensações que o tempo leva para não restituir mais.
Iaiá acordou de suas reflexões.
— Francamente, disse ela; o senhor não se ri de mim?
— Rir? A senhora não me conhece. Não há que rir de sentimentos sinceros; e seria pagar muito mal a confiança de que me dá prova. Não me julgue um espírito vulgar...
— Papai faz-lhe muitos elogios.
— Há de saber, ou fica sabendo que minha natureza simpatiza com o que está acima do comum. A senhora vale muito; posso dizer que há dois meses eu ainda a não conhecia...
— Não tente a minha vaidade, interrompeu Iaiá; prefiro que me dê um bom conselho.
— Dou-lhe um, disse Jorge depois de curta pausa; resista um pouco a essas sensações, cujo excesso pode perturbar-lhe a existência. Não é só o coração que lhe fala, é também a imaginação, e a imaginação, se é boa amiga, tem seus dias de infidelidade. Dê um pouco de poesia à vida, mas não caia no romanesco; o romanesco é pérfido. Eu, que lhe falo, lastimo não ter já essa ordem de sentimentos em flor, e contudo não sei se ganharia com eles.
— Quê! não seria capaz de amar?
— Meu coração não envelheceu ainda.
— Entendo; amaria hoje de outro modo...
— De outro modo, e tão sinceramente como dantes; um amor de olhos abertos.
— Penso que o amor verdadeiro, ou ao menos o melhor, é o que não vê nada em volta de si, e caminha direito, resoluto e feliz aonde o leva o coração. Para que servem os olhos abertos?
— A senhora quer saber muita coisa, disse Jorge sorrindo. Não basta que o coração lhe diga: ame a este; é preciso que os olhos aprovem a escolha do coração. Admira-se? Ouça-me até o fim; eu desejo preservá-la de alguma escolha má. Eleja um marido digno, um espírito que a entenda, que a admire, um homem que a possa honrar; não se deixe levar dos primeiros olhos que pareçam responder aos seus...
Iaiá abaixou a cabeça.
— Não acharei nenhum, disse ela; eu creio que este amor morrerá comigo...
Como essa idéia parecesse entristecê-la, Jorge sentiu-se tomado de compaixão, ao ver que persistia naquela aurora pura uma sombra de superstição romanesca. Pegou-lhe na mão, viu-a estremecer, recusar-lhe e cruzar os braços.
— Tem medo de mim? disse ele ao cabo de um instante.
— Tenho.
Jorge calou-se. Com a bengala entrou a reproduzir no chão umas reminiscências de geometria. Sentia-se atalhado, curioso, e tanto desejava como lhe custava sair dali. Não chegava a entendê-la claramente; a verdade, quando ia a tocá-la, parecia inverossímil. Entretanto, Iaiá não rompia o silêncio; tinha a fronte pendida e meditava. Talvez meditava na palavra que acabava de proferir, fruto da situação violenta em que ela própria ou os acontecimentos a haviam colocado. Era, a rebelião do pudor. De quando em quando, sacudia a fronte como a expelir uma idéia enfadonha ou cruel. Numa dessas vezes, Jorge disse com brandura:
— Para que negá-lo? a senhora padece; não sei se com razão ou sem ela, mas parece padecer muito.
— Oh! muito!
E dessa vez a palavra era tão angustiosa, tão sincera, tão vinda do coração, que ele cedeu antes a um impulso de generosidade do que à conveniência de não ser repelido segunda vez. Pegou-lhe nas mãos e pediu-lhe que fosse até o fim da confiança, dizendo-lhe a causa de seus males. Talvez ele pudesse removê-los.
Iaiá inclinou o rosto sobre as mãos de Jorge. Este sentiu, nelas algumas lágrimas, vertidas sem soluços. Não passava ninguém; mas ele nem teve tempo de refletir na possibilidade de um estranho. Inclinou-se também e perguntou-lhe afetuosamente o que tinha. Iaiá ergueu a cabeça, e enxugou os olhos, mas não respondeu nada.
— A senhora não tem confiança em mim, disse Jorge.
— Há coisas que se não fazem, outras que se não dizem; algumas ficarão entre mim e Deus, retorquiu ela como se fizesse uma reflexão para si. Depois fitou-o e pediu-lhe a promessa de que não diria nada do que acabava de ver e ouvir.
— Essa promessa não se faz; está feita por si. Quanto ao seu segredo, não quero violentá-lo, mas tenho esperança de que a senhora mesma o há de dizer um dia; eu saberei obter-lhe esse resto de confiança que ainda me nega.
— Já! exclamou a moça vendo Jorge levantar-se.
— Repare que a noite vem caindo; não posso ficar nem mais um minuto. Um confidente tem limites. Olhe; não peço muita coisa, mas desejo alguma coisa mais. Confidente é pouco; mestre ainda menos. Dê-me outro título ou cargo; deixe-me ser seu... seu quê? seu... seu irmão. Sim?
— Não! disse ela energicamente.
Jorge empalideceu, como se acabasse de ver o fundo da alma da moça. A negativa era alguma coisa mais do que um capricho. Não retorquiu; estendeu-lhe a mão.
— Até quando? disse ela.
— Até amanhã.
Três minutos depois, Jorge estava na rua. A noite descia rapidamente. Ele não olhou para trás; se olhasse veria a figura de Iaiá envolta já na meia sombra do crepúsculo. Veria mais; vê-la-ia refletir um pouco e espalmar a mão no ar, como uma ameaça, na direção em que ele ia.
Iaiá entrou na casa da doente.
— Seu noivo? disse esta.
— Já foi.
— Quando é o casamento?
O dia não sei. E depois de uma pausa: — Mas que se há de fazer é certo. Ou eu não sou quem sou.