Idéas de Géca Tatu/Paranoia ou Mystificação?
Ha duas especies de artistas. Uma composta dos que vêm normalmente as coisas e em consequencia disso fazem arte pura, guardados os eternos rythmos da vida, e adoptados para a concretização das emoções estheticas, os processos classicos dos grandes mestres. Quem trilha por esta senda, se tem genio, é Praxiteles na Grecia, é Raphael na Italia, é Rembrandt na Holanda, é Rubens na Flandres, é Reynolds na Inglaterra, é Leubach na Allemanha, é Zorn na Suecia, é Rodin na França, é Zuloaga na Hespanha. Se tem apenas talento vae engrossar a pleiade de satelites que gravitam em torno daquelles sóes immorredoiros.
A outra especie é formada pelos que vêem anormalmente a natureza, e interpretam-na á luz de theorias efêmeras, sob a sugestão estrabica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furunculos da cultura excessiva. São productos de cansaço e do sadismo de todos os periodos de decadencia; são frutos de fins de estação, bichados ao nascedouro. Estrellas cadentes, brilham um instante, as mais das vezes com a luz de escandalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento.
Embora elles se dêem como novos precursores duma arte a vir, nada é mais velho de que a arte anormal ou teratologica: nasceu com a paranoia e com a mystificação. De ha muito já que a estudam os psychiatras em seus tratados, documentando-se nos innumerosos desenhos que ornam as paredes internas dos manicomios. A unica differença reside em que nos manicomios esta arte é sincera, producto ilogico de cerebros transtornados pelas mais estranhas psychoses; e fóra delles, nas exposições publicas, zabumbadas pela imprensa e absorvidas por americanos malucos, não ha sinceridade nenhuma, nem nenhuma logica, sendo mystificação pura.
Todas as artes são regidas por principios immutaveis, leis fundamentaes que não dependem do tempo nem da latitude. As medidas de proporção e equilibrio, na fórma ou na côr, decorrem do que chamamos sentir. Quando as sensações do mundo externo transformam-se em impressões cerebraes, nós «sentimos» ; para que sintamos de maneira diversa, cubica ou futurista, é forçoso ou que a harmonia do universo soffra completa alteração, ou que o nosso cerebro esteja em desarranjo por virtude de alguma grave lesão. Emquanto a percepção sensorial se fizer no homem normalmente, através da porta commum dos cinco sentidos, um artista diante de um gato não poderá «sentir» senão um gato, e é falsa a «interpretação» que o bichano fizer um "totó", um escaravelho ou um amontoado de cubos transparentes.
Estas considerações são provocadas pela exposição da sra. Malfatti, onde se notam acentuadissimas tendencias para uma attitude estthetica forçada no sentido das extravagancias de Picasso e companhia. Essa artista possue um talento vigoroso, fóra do commum. Poucas vezes, através de uma obra torcida para má direção, se notam tantas e tão preciosas qualidades latentes. Percebe-se de qualquer daquelles quadrinhos como a sua autora é independente, como é original, como é inventiva, em que alto grau possue umas tantas qualidades innatas e das mais fecundas na constucção duma solida individualidade artistica.
Entretanto, seduzida pelas theorias do que ella chama arte moderna, penetrou nos dominios dum impressionismo discutibillissimo, e põe todo o seu talento a serviço duma nova especie de caricatura.
Sejamos sinceros : futurismo, cubismo, impressionismo e «tutti quanti» não passam de ouros tantos ramos da arte caricatural. E' a extensão da caricatura a regiões onde não havia até agora penetrado. Caricatura da côr, caricatura da fórma — caricatura que não visa, como a primitiva, ressaltar uma idéa comica, mas sim desnortear, aparvalhar o espectador.
A physionomia de que sae de uma destas exposições é das mais suggestivas. Nenhuma impressão de prazer ou de belleza denuncia as caras; em todas se lê o desapontamento de quem está incerto, duvidoso de si proprio e dos outros, incapaz de racionar, e muito desconfiado de que o mystificam grosseiramente. Outros, certos criticos sobretudo, aproveitam a vasa para «épater les bourgeois». Theorisam aquillo com grande dispendio de palavrorio technico, descobrem nas telas intenções e subintenções inacessiveis ao vulgo, justificam-nas com a independencia de interpretação do artista e concluem que o publico é uma cavalgadura e elles, os entendidos, um pugilo genial de iniciados da Esthetica Oculta. No fundo, riem-se uns dos outros, o artista do critico, o critico do pintor.
E' mister que o publico se ria de ambos.
Arte moderna, eis o escudo, a suprema justificação. Na poesia tambem surgem, ás vezes, furunculos desta ordem, provenientes da cegueira nata de certos poetas elegantes, apesar de gordos, e a justificativa é sempre a mesma: arte moderna. Como se não fossem modernissimos esse Rodin que acaba de fallecer deixando após si uma esteira luminosa de marmores diviṅos ; esse André Zorn, maravilhoso «virtuose» do desenho e da pintura ; esse Brangwyn, genio rembrandtesco da babylonia industrial que é Londres ; esse Paul Chabas, mimoso poeta das manhans, das aguas mansas, e dos corpos femininos em botão. Como se não fosse moderna, modernissima, toda a legião actual de incomparáveis artistas do pincel, da pena, da agua forte, da «dry point » que fazem da nossa época uma das mais fecundas em obras primas de quantas deixaram marcos de luz na historia da humanidade.
Na exposição Malfatti figura ainda como justificativa da sua escola o trabalho de um mestre americano, o cubista Bolynson. E' um carvão representando (sabe-se disso porque uma nota explicativa o diz) uma figura em movimento. Está alli entre os trabalhos da sra. Malfatti em attitude de quem diz: eu sou o ideal, sou a obra prima, julgue o publico do resto tomando-me a mim como ponto de referencia.
Tenhamos coragem de não ser pedantes : aquelles gatafunhos não são uma figura em movimento ; foram, isto sim, um pedaço de carvão em movimento. O sr. Bolynson tomou-o entre os dedos das mãos ou dos pès, fechou os olhos e fel-o passar na tela ás pontas, da direita para a esquerda, de alto a baixo. E se não o fez assim, se perdeu uma hora da sua vida puxando riscos de um lado para o outro, revelou-se tolo e perdeu o tempo, visto como o resultado foi absolutamente o mesmo.
Já em Pariz se fez uma curiosa experiencia : ataram uma brocha na cauda de um burro e puseram-n'o trazeiro voltado para uma téla. Com os movimentos da cauda do animal a broxa ia borrando un quadro...
A coisa fantasmagorica resultante foi exposta como um supremo arrojo da escola cubista, e proclama pelos mystificadores como verdadeira obra prima que só um ou outro rarissimo espirito de eleição poderia comprehender. Resultado: o publico affluiu, embasbacou, os iniciados rejubilaram e já havia pretendentes á téla quando o truque foi desmascarado.
A pintura da sra. Malfatti não é cubista, de modo que estas palavras não se lhe endereçam em linha recta ; mas como aggregou á sua exposição uma cubice, leva-nos a crêr que tende para ella como para um ideal supremo. Que nos perdoe a talentosa artista, mas deixamos cá um dillema : ou é um gênio o sr. Bolynson e ficam riscados desta classificação, como insignes cavalgaduras, cohortes inteiras dos mestres immortaes, de Leonardo a Stevens, de Velasquez a Sorolla, de Rembrandt a Whistler, ou... vice-versa. Porque é de todo impossivel dar o nome da obra de arte a duas coisas diametralmente opostas como, por exemplo, a Manhan de Setembro, de Chabas, e o carvão cubista do sr. Bolynson.
Não fosse a profunda sympathia que nos inspira o formoso talento da sra. Malfatti, e não viriamos aqui com esta série de considerações desagradaveis.
Ha de ter essa artista ouvido numerosos elogios á sua nova attitude esthetica.
Ha de irritar-lhe os ouvidos, como descortez impertinencia, a voz sincera que vem quebrar a harmonia de um côro de lisonjas. Entretanto, se reflectir um bocado, verá que a lisonja mata e a sinceridade salva. O verdadeiro amigo de um artista não é aquele que o entontece de louvores, e sim o que lhe dá uma opinião sincera, embora dura, e lhe traduz chāmente, sem reservas, o que todos pensam delle por detráz.
Os homens têm o vezo de não tomar a sério as mulheres. Essa é a razão de lhes derem sempre amabilidades quando ellas pedem opinião.
Tal cavalheirismo é falso, esobre falso, nocivo. Quantos talentos de primeira agua se não transviaram arrastados por maus caminhos pelo elogio incondicional e mentiroso? Se vissemos na sra. Malfatti apenas uma "moça que pinta", como centenas ha por ahi, sem denunciar centelha de talento, calar-nos-iamos, ou talvez lhe dessemos meia duzia desses adjectivos "bombons" que a critica assucarada tem sempre á mão em se tratando de moças. Julgamol-a, porém, merecedora da alta homenagem que é tomar a sério o seu talento dando a respeito da sua arte uma opinião sincerissima, e valiosa pelo facto de ser o reflexo da opinião do publico sensato, dos criticos, dos amadores, dos artistas seus colegas e... dos seus apologistas.
Dos seus apologistas sim, porque tambem elles pensam deste modo... por traz.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.