Impossível (Cesário Verde)
Nós podemos viver alegremente,
Sem que venham com fórmulas legais
Unir as nossas mãos, eternamente,
As mãos sacerdotais.
Eu posso ver os ombros teus desnudos:
Palpá-los, contemplar-lhes a brancura,
E até beijar teus olhos tão ramudos,
Cor de azeitona escura.
Eu posso, se quiser, cheio de manha,
Sondar, quando vestida, pra dar fé,
A tua camisinha de bretanha
Ornada de crochet.
Posso sentir-te em fogo, escandecida,
De faces cor-de-rosa e vermelhão,
Junto a mim, com langor, entredormida,
Nas noites de verão.
Eu posso, com valor que nada teme,
Contigo preparar lautos festins,
E ajudar-te a fazer o leite-creme
E os mélicos pudins.
Eu tudo posso dar-te, tudo, tudo:
Dar-te a vida, o calor, dar-te cognac,
Hinos de amor, vestidos de veludo,
E botas de duraque;
E até posso, com ar de rei (que o sou!),
Dar-te cautelas brancas, minha rola;
Da grande loteria que passou,
Da boa, da espanhola.
Já vês, pois, que podemos viver juntos
Nos mesmos aposentos confortáveis,
Comer dos mesmos bolos e presuntos,
E rir dos miseráveis.
Nós podemos, nós dois, por nossa sina,
Quando o Sol é mais rúbido e escarlate,
Beber na mesma chávena da China
O nosso chocolate.
E podemos até (noites amadas!)
Dormir juntos dum modo galhofeiro,
Com as nossas cabeças repousadas
No mesmo travesseiro.
Posso ser teu amigo até a morte,
Sumamente amigo...! Mas, por lei,
Ligar a minha sorte à tua sorte
Eu nunca poderei!
Eu posso amar-te como o Dante amou,
Seguir-te sempre como a luz ao raio...
Mas ir contigo à igreja, isso não vou:
Lá nessa é que eu não caio!
Lisboa, 1874