Inconveniente da riqueza (edição de 1877)
Um dia Nosso Senhor Jesus Christo, viajando na Alsacia, foi surprehendido pela noite á entrada d'uma aldeia. Procurou d'um lado para outro uma casa, onde podesse pedir pousada, mas as portas estavam já todas fechadas, não se via nem um raio de luz atravez das janellas, tudo estava adormecido. Apenas no fim d'um beco se ouvia o barulho do mangual com que se bate o trigo, e n'esse sitio havia uma pequena luz. Nosso Senhor dirigiu-se para lá, chegou ao pé do muro d'uma quinta, e bateu á porta. Foi um camponez que lh'a veiu abrir.
— Fazia favor, disse-lhe o bom Jesus, de me dar agasalho por esta noite? Não se havia de arrepender.»
E accrescentou:
— Visto que já todos estão deitados, para que é que você está ainda a trabalhar?»
— Ora, respondeu o camponez, soube hontem á noite que ia ser perseguido por um credor desapiedado, se lhe não pagasse ámanhã o que lhe devo, portanto eu e meus filhos estamos a bater o pouco trigo que colhi, para o vender no mercado, e pagar a minha divida. Depois disto não nos fica nada, e não sei como havemos d'atravessar o inverno. Seja o que Deus quizer!»
Ao dizer isto o camponez limpava o suor da testa, e passava a mão pelos olhos arrazados de lagrimas. O Senhor teve dó d'elle, e disse-lhe:
— «Não desanimes. Quando te pedi hospitalidade, disse-te que não te havias d'arrepender de m'a ter dado. Vou provar-t'o.»
Pegou na candeia, que estava suspensa n'uma das traves do celleiro, e approximou-a do trigo.
— Que vae fazer? disseram assustados os trabalhadores, vae deitar fogo a tudo!»
Mas no mesmo instante, da palha, que elles receiavam ver inflammar-se, de cada espiga, desceu uma chuva de grãos prodigiosa. Á vista d'um tal milagre os camponezes maravilhados cairam de joelhos.
— Visto que foste caritativo, disse Jesus, visto que recebeste na tua pobreza o forasteiro que veiu ter comtigo como um pobre mendigo, serás recompensado. Foi Deus que entrou na tua fazenda, é Deus que te enriquece.»
Dito isto desappareceu.
E a chuva dos grãos não parou em toda a noite, e fez um monte tão alto como a egreja.
O camponez pagou as suas dividas, comprou terras, e construiu uma bella casa. Era rico, e tornou-se orgulhoso e altivo com os pobres. Elle e seus filhos adquiriram costumes perdularios, tanto e tanto fizeram, que se arruinaram, e, como tinham sido maus nos tempos em que eram ricos, ninguem os ajudou na sua miseria. Uma noite o velho camponez, que bebera enormemente, entrou no celleiro, e, recordando-se do milagre que o enriquecêra, imaginou que tambem elle o poderia fazer. Agarrou na candeia, approximou-a d'um feixe de palha, communicou-se o fogo, ardeu a casa e tudo o que lhe restava, e passado tempo morreu na miseria mais absoluta.