Iniciado

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Desolado alchimista da Dôr, Artista, tu a depuras, a fluidificas, a espiritualisas, e ella fica para sempre, immaculada essencia, sacrametando divinamente a tua Obra.

Pedrarias rubentes dos occasos; Angelus piedosos e concentrativos, a Millet; Te-Deum glorioso das madrugadas fulvas, através do deslumbramento paradisiaco, rumoroso e largo das florestas, quando a luz abre immaculadamente n’um som claro e metallico de trômpa campestre — claro e fresco, por bizarra e medieval caçada de esveltos fidalgos; a verde, viva e viçosa vegetação dos vergéis virgens; os opalescentes luares encantados nas mattas; o crystalino cachoeirar dos rios; as collinas emotivas e saudosas, — todo aquelle esplendor de colorida paisagem, todo aquelle encanto de exhuberancia de prados, aquelles aspectos selvagens e magestosos e ingenuos, quasi biblicos, da terra acolhedôra e generosa onde nasceste, — deixaste, afinal, um dia, e vieste peregrinar inquieto pelas inhospitas, barbaras terras do Desconhecido...

Vieste da tua paragem feliz e meiga, — amplidão de bondade patriarchal, primitiva —, mergulhar na onda nervosa do Sonho, que já de longe, dos êrmos rudes do teu lar, fascinava de magneticos fluidos, de imponderados mysterios, o teu bello ser contemplativo e sensibilisado.

Chegas para a Via-Sacra da Arte a esta avalanche immensa de sensações e paixões uivantes, roçando esta multidão insidiosa, confusa, dubia, que de rastos, de rojo, borborinha, farejando anciosamente o Vicio.

Vens ainda com todo o sol fremente do teu solitario firmamento provinciano na carnação vigorosa de forte, de virilisado n’aquelles ares; trazes ainda no sangue accêso a impetuosidade dos lutadores alegres e heroicos e ainda todo esse organismo desenvolvido livremente nos campos respira a saude brava d’aquella athmosphera casta e verde, dos amplos céos humidos da tinta fresca das manhans, aguarellados delicadamente de claro azul.

Mas, d’ahi a pouco, uma vez immerso completamente na Arte, uma vez concentrado definitivamente n’ella, todo esse brilho e viço victoriosos, por uma surprehendente transfiguração, desapparecerão para sempre, e então, tu, livido, tremulo, espectral, phantastico, terás o impressionante aspecto angustioso e fatal do lugubre apparato de um guilhotinado...

A Arte dominou-te, venceu-te e tu por ella deixaste tudo: a viva, a penetrante, a tocante affeição materna, de um humano enternecimento até ás lagrimas, até á morte, até ao sacrifício do sangue. Por ella deixaste esse affecto extremo, louco, quasi absurdo, de tua mãe — cabeça branca estrellada de amarguras, Espirito celestial do Amor, aquella que nas miragens infinitas e nas curiosidades enigmaticas da Infancia, santificou, ungio o teu corpo com o oleo sacrosanto dos beijos.

Tudo esqueceste, para vir fecundar o teu ser nos seios germinadores da Arte. E, quando alimentado, quando conquistado e vencido por ella, quizeres voltar depois aos braços acariciantes de tua mãe, n’um risonho movimento de affectiva alegria, clara, fresca, espontanea, sadia e simples como a de outrora, esse movimento lhe parecerá funesto e acerbo, como o rictus de uma caveira, sem jamais o antigo encanto e frescura.

E tu, então, surgirás para ella como a sombra, o phantasma do que foste, um desvairado, perdido, errante na Dôr — taes e tantas serão em ti as duras rugas, imprevistas e prematuras, para sempre pungitivamente produzidas pelo dilaceramento da Paixão esthetica.

Mas tua mãe te fallará das bizarras correrias da tua mocidade, mais florida e mais virgem do que um campo de rosas brancas nas agrestes regiões onde nasceste.

E a alma da tua mocidade, a tua joven bravura de mocidade, andará, vagará já, errando, errando, esquecida do mundo, como um solitario monge, através dos longos e sombrios claustros da Saudade.

E, não só tua mãe, mas teus irmãos, teu pae, todos os teus te olharão depois, secretamente abalados, como a um desconhecido, sentindo, por vago instincto, que os caracteres ignótos e supremos do teu ser não são apenas, elementarmente, os mesmos caracteres da simples e natural consanguinidade; que tu, por mais unido que estejas a elles por laços inevitaveis, fataes, estás longe, afastado d’elles a teu pezar, sem malicia, de alma desprevenida e sã, como as estrellas nas soberanias transcendentes da sua luz estão para sempre afastadas da obscura Terra. E tudo isso por andares attrahido por forças redemptoras, perdido nos centros fascinantes do absoluto sentir e do absoluto sonhar!

Agora, ainda trazes a alma como a mais excêntrica flôr do Sol, com todas as febrilidades e deslumbramentos do Sol,—flor da força, da impetuosidade das seivas, aberta, rasgada em rubro, viva e violenta a vermelho, cantando sangue...

Porém, se és vitalmente um homem, e trazes o cunho prodigioso da Arte, vem para a Dôr, vive na chamma da Dôr, vencedor por sentil-a, glorioso por conhecêl-a e nobilital-a. Tira da Dôr a profunda e radiante serenidade e a solemne harmonia profunda. Faze da Dôr a bandeira real, orgulhosa, constellada dos brazões soberanos da poderosa Aguia Negra do GEnio e do Dragão cabalistico das Nevroses, para envolver-te grandiosamente na Vida e amortalhar-te na Morte !

Vem para esta ensanguentada batalha, para esta guerra surda, absurda, selvagem, subterranea e soturna da Dôr dos Loucos llluminados, dos Videntes Ideaes que arrastam, além, pelos tempos, para os infinitos do incognoscível futuro, as purpuras fascinadoras das suas glorias trágicas.

Se não tens Dôr, vaga pelos desertos, corre pelos areaes da illusão e pede ás vermelhas campanhas abertas da Vida e clama e grita: quem me dá uma Dôr, uma Dôr para me illuminar! Que eu seja o transcendentalisado da Dôr!

Vem para a Dôr, que tu a elevas e purificas, porque tu não és mais que a corporificação do próprio Sonho, que vagueia, que oscilla na luxuria da luz, através da Esperança e da Saudade — grandes lampadas de luas de uneção piedosa, cuja velada claridade tranquilla dá ao teu semblante a expressão immaterial, incoercível, etherea, da Immortalidade...

E essa Immortalidade em que meditas é a das Idéas, da Forma, das Sensações, da Paixão, crystalisadas maravilhosamente n'um corpo vivo, quente, palpitante, que sintas mover, que sintas estremecer, agitar-se n'uma onda de sensibilidade, fremer, vibrar nas efterveseencias da luz... Condensa, apura, perfectibilisa, pois, o teu Sonho — Sol estranho, em torno ao qual vôam condores e aguias victoriosas de garras e azas conquistadoras...

Para a gênese desse Sonho, para a gênese dessa Arte, é necessário o Optimismo da Fé, poderosa e religiosamente sentida; é necessário que a tua alma, forte, a vigorada para a grande Esphéra, tenha a Crença edificante e paire presa ás correntes invisiveis, ignotas, de um sentimento espiritualisado e sereno.

Ao Pessimismo de Schoppenhauer, que tu, pelo fundo de critica psychologica e de alada e fagulhante ironia adoras, como Satan, por diabolica phantasia, adora os abstrusos venenos do Mal; a esse Pessimismo sêcco, duro, dictador e esterilisante, prefere antes o Optimismo religioso de Renan, que não abate nem enviléce as almas, mas antes as alevanta e illumina, sem lhes tirar a rectidão austera da Verdade, as linhas justas e solemnes da alta comprehensão da Vida.

Do pessimismo e do optimismo, do conjuncto dessas duas forças, tira a linha geral do tau ser, para que a visão da tua alma fique perfeita e profunda e não ganhe nem hypertrophias nem vicios de percepção nem graves e antipathicos desiquilibrios de sensibilidade, na frescura abençoada e nos rejuvenescimentos e reflorescencias da Fé.

Assim, concordará a acção com a sensação, estarás em immediata e clara harmonia com a tua extrema natureza, estudados os fundamentos que intimamente a constituem: a bondade, o affecto, o enternecimento, a delicadeza, a resignação, a brandura, a abnegação, o sacrificio e a calma, latentes qualidades essas todas puramente de um Optimismo religioso, porque são essas qualidades que representam o fundo sincero e serio das faculdades estheticas, presas sempre a um Ideal abstracto, que é, na sua essência, o Ideal do Infinito, da Immortalidade, da Religião, da Fé.

Se tens Fé, se vens inflammado vehemente e intensamente para o sentimento original da Concepção e da Fornia; se te devora a anciedade lancinante de uma Aspiração que arrebata em azas, que desprende vôos brancos e largos para regiões muito além da Morte; se percorrem os teus nervos, em prodigios de harmonia, musicas estranhas e coloridas como paixões e sensações; se dentro de todo o teu ser ha o Inferno dantesco, tumultuoso de Visões, épico de magestade mental, a crescer, a crescer, a subir mediterraneaniente em ondas cerradas, compactas de somnambulisnios esthéticos; se sentes a attrahente vertigem da palpitação dos astros, a dolência pungente das melancolias ennevoadas e doentes que insensivelmente humedecem os olhos; se na luz, se no ar, se na côr, se no som, se no aroma tens a fina, a delicada, a subtil percepção da Arte; se sabes ser, ter na Arte uma existencia una, indivisível, és o Eleito delia, o Impressionado, o Iniciado.

Não tens mais do que agir fatalmente pelo teu temperamento, n'uma funcção original, n'uma castidade ingenita de emoções, na expontaneidade do teu sangue novo e dos teus nervos aristocráticos, tensibilisados pela estliesia.

Mas, para livremente chegares a esse resultado artistico, é mister que preceda a tudo isso um systema de principios integraes, fecundos e profundos na tua natureza, dando-te, por esse modo, uma firmeza e serenidade emotiva. Não é, apenas, querer, não é poder, apenas — é Ser! — E se tu sabes ser, se tu és, numa legitimidade flagrante, n'um enraisamento muito intenso de todo o teu organismo, vivendo a Arte e não a Arte vivendo em ti; se assim tu és, na. profundidade real d'esse exquisito e maravilhoso estado, meio-inconsciencia, meio-névoa, que te impulsiona para a Concepção; se assim tu és, por germens inevitaveis, fataes, a tua Obra, ainda em gestação, attestará eloquentemente, mais tarde, as inauditas manifestações do temperamento.

Tudo está em seres a tua Dôr, em seres o teu Goso, homogeneamente; em sahires, por movimentos expontâneos, livres e simples, representativos de um vivo e affirmativo Phenomeno, da Esphéra do méro Instincto para a Esphera rehabilitadôra, pura e radiante do Pensamento.

Se é certo que trazes em ti a principal essencia, as expressivas raizes, a flamma eterna, o nebuloso segredo dos Assignalados, um poder magico, irresistivel, a que não poderás fugir jamais, te arrastará, te arrojará, como Visão legendaria, prophetica, n'uma grande convulsão e estremecimento, para fora das humanas frivolidades terrestres, para fora das impressões exteriores do Mundo, mergulhando-te soberanamente, para sempre!, no fundo apocalyptico, solemne, das Abstracções e do Isolamento...

Se trazes essa verdadeira, perfeita aristocracia genésica do Sentimento; se sentes que toda a limpida e nobre grandeza está apenas na simplicidade com que te despires dos vãos ouropéis mundanos, para entrar larga e fraternalmente na Contemplação da Natureza; se vens para dizer a tua grave, funda Nevróse, que nada mais é do que a eloquente significação da Nevróse do Infinito, que tu buscas abranger e registrar; se tens essa missão singular, quasi divina, vae sereno, o peito estrellado pelas constellações da Fé, impassivel ao apedrejamento dos Impotentes, firme, seguro, equilibrado por essa força occulta, mysteriosa e suprema que illumina milagrosamente os artistas calmos e poderosos na obscuridade do meio ambiente, quando floresce e alvoresce nas suas almas a rara flor da Perfeição.

Que importam a excommunhão e os desprezos mordazes sobre a tua cabeça?! Que importam os arremessados lançaços d’aço e de ferro contra o broquél do teu peito e contra o vigor de tronco em rebentos verdes do teu flanco?! Os impios não pairam n’estas orbitas, não gyram n’estas chammejantes Esphéras, não se incendeiam e não morrem n’estes angustos e inéditos Infernos.

Segue, pois, os que seguem contrictos, sob um arco-iris celestial de esperanças vagas, a alma como uma flor exótica dos trópicos ceruleamente aberta ás mésses de ouro do sol e a bocca, no entanto, seccamente, asperamente amordaçada sem piedade pelas sêdes tenazes e amargas dos mais inquietantes desejos...

E vae sereno, como os Eleitos da Arte, extremados e apaixonados na chamma do seu Segredo, da sua excelsa Vontade — levitas extraordinarios, martyrieados nas inquisições truculentas da Carne, mas bemditos, purificados, sem culpa de peccado mundano, na recondita manifestação das Emoções e do Entendimento.

Segue resoluto, impávido, para a Arte branca e sem mancha, sem mácula, virginal e sagrada, desprendido de todos os elos que intibiem, de todas as convenções que enfraqueçam e banalisem, sem as explorações deshonestas, os extremos de dedicação falsa, as fingidas interpretações dos cynicos apostatas, mas com toda a forte, a profunda, a sacrificante sinceridade, da tua grande alma, conservando sempre intacta, sempre, a flor expontanea e casta da tua sensibilidade.

Para resistir aos perturbadores ululos do mundo fécha-te á chave astral com a alma, essa esphéra celeste, dentro das muralhas de ouro do Castello do Sonho, lá muito em cima, lá muito em cima, lá no alto da torre azul mais alta d'entre as altas torres coroadas d'estrellas.

Vae sereno, bello Iniciado! Vae sereno para esta prodigiosa complexidade de Sentimentos, agora que abandonaste a franqueza rude das montanhas, além, longe, na solidão concentrativa, no silencio banhado de impressionante, communicativa e augusta poesia, da tua terra de selvas e bosques biblicos!

Vae sereno! a cabeça elevada na luz, vitali-sada e resplandescida na nevrosidade mordente da luz e os fatigados olhos sonhadores, graves, ascéticos, attrahidos pelo mysterio da Vida, magnetisados pelo mysterio da Morte...