Inocência (Visconde de Taunay)/IV
Está a cela na mesa. Torne o bom acolhimento desculpável o mau passadio.
Quando assomaram os dois viajantes à entrada do terreiro que rodeava a vivenda de Pereira, correram-lhes ao encontro quatro ou cinco cães altos e magros, que aos pulos saudaram o dono da casa com uma cainçada de alegria.
Puseram-se algumas galinhas a girar atarantadas, ao passo que vários galos, já empoleirados na cumeeira da morada, bradavam novidade e uns porcos e bacorinhos aqui e acolá se erguiam dentre palhas de milho e, estremunhados, olhavam para os recém-chegados com olhos pequenos e cheios de sono.
Do interior da habitação, não tardou a sair uma preta idosa mal vestida, trazendo atado à cabeça um pano branco de algodão, cujas pontes pendiam ate ao meio das costas.
—Olá, Maria Conga, perguntou Pereira, que há de novo por cá?
—A benção, meu senhor, pediu a escrava chegando-se com alguma lentidão.
—Deus te faça santa, respondeu o mineiro. Como vai a menina? Nocência?
—Nhã está com sezão.
—Isto sei eu, rapariga de Cristo; mas como passou ela de trasantontem para cá?
—Todo o dia, vindo a hora, nhã bate o queixo, nhorsim.
—Está bem... É que o mal ainda não abrandou... Daqui a pouco, veremos. E a janta?... Está pronta? Venho varado de fome. Que diz, Sr. Cirino? indagou, voltando-se para 0 companheiro.
—Não se me dava também de comer alguma coisa. Temos razão para...
—Pois então, interrompeu Pereira, ponha pé no chão e pise forte que o terreno é nosso. Minha casa, já lho disse, é pobre, mas bastante farta e a ninguém fica fechada.
Deu logo o exemplo, e descavalgou do cavalinho zambro, o qual foi por si correndo em direção a uma dependência da casa com formas de tosca estrebaria.
Apeou-se igualmente Cirino, mas, ao penetrar numa espécie de alpendre de palha que ensombrada a frente toda, mostrou repentina e viva contrariedade no gesto e na fisionomia.
—Ora, Sr. Pereira, exclamou ele batendo com o tacão da bota num sabugo de milho, só agora é que me lembro que as minhas cargas vão todas tomar caminho do Leal e aqui me deixam sem roupa, nem medicamentos. Que maçada! Devíamos ter esperado na boca da sua picada.
Respondeu-lhe o mineiro todo desfeito em expansivo riso:
—Olé, pois o doutor é tão novato assim em viagens? Então pensa que lá não deixei aviso seguro à sua gente? Não se lembra de um ramo verde que pus bem no meio da estrada real?
—É verdade, confirmou Cirino.
—E então? Daqui a pouco a sua camaradagem está batendo o nosso rasto. Entremos, que a fome já vai apertando.
Consistia a morada de Pereira num casarão vasto e baixo, coberto de sapé, com uma porta larga entre duas janelas muito estreitas e mal abertas. Na parede da frente que, talvez com o peso da coberta, bojava sensivelmente fora da vertical, grandes rachas longitudinais mostravam a urgência de serias reparações em toda aquela obra feita de terra amassada e grandes paus-a-pique.
Ao oitão da direita existia encostado um grande paiol construído de troncos de palmeiras, por entre os quais iam rolando as espigas de milho, com o contínuo fossar dos porquinhos, que dali não arredavam pé.
Corrido na frente de toda a vivenda, via-se um alpendre de palha de buriti, sustentado por grossas taquaras, ligeiro apêndice acrescentado por ocasião de alguma passada festa, em que o número de convidados ultrapassara os limites de abrigo da hospitaleira habitação.
Internamente era ela dividida em dois lanços: um, todo fechado, com exceção da porta por onde se entrava, e que constituía o cômodo destinado aos hóspedes, outro, à retaguarda, pertencia à família, ficando, portanto, completamente vedado às vistas dos estranhos e sem comunicação interna com o compartimento da frente.
Era de barro compacto e socado o chão desta sala, vendo-se nele sinais de que as vezes ali se acendia fogo: pelo que estavam o sapé do forro e o ripamento revestidos de luzidia e tênue camada de picumã que lhes dava brilho singular como se tudo fora jacarandá envernizado.
—Isto aqui, disse Pereira penetrando na sala e sentando-se numa tripeça de pau, não é meu, e de quem me procura. Poucos vêm cá decerto parar, mas enfim é sempre bom contar com eles... Minha gente mora na dependência dos fundos.
E apontou para a parede fronteira à porta de entrada, fazendo um gesto para mostrar que a casa se estendia além.
—Sr. Pereira, disse Cirino recostando-se a uma sólida marquesa, não se incomode comigo de maneira alguma... Faça de conta que aqui não há ninguém
—Pois então, retorquiu o mineiro, deite-se um pouco, enquanto vou lá dentro ver as novidades. A hora é mais de comer, que de cochilar; mas espere deitadinho e a gosto, o que é sempre mais cômodo do que ficar de pé ou sentado.
Não desprezou o hóspede o convite. Tirou o pala, puxou as botas e, cruzando-as, fez dos canos travesseiros, em que descansou a cabeça.
Quem se coloca em posição horizontal, depois de vencidas umas estiradas léguas, adormece com certeza. Depressa veio, pois, o sono cerrar as pálpebras do recém-chegado e intumescer-lhe o peito com sossegada respiração.
Dormiu talvez hora e meia, e mais houvera dormido, se não fosse acordado pelo tropel de animais que paravam, e por grita de gente a pôr cargas em terra.
Assomou Pereira à porta com ar jovial.
—Então, que lhe disse eu?
—De fato; estou agora sossegado.
—E o Sr. tomou uma boa data de sono.
—Quem sabe uma hora?
—Boa dúvida, se não mais. Fiquei todo esse tempo ao lado de Nocência, que de frio batia o queixo, como se estivesse agora em Ouro Preto, quando cai geada na rua.
—Então não vai melhor?
—Qual!... Depois que o sr. tiver comido, há de ir vê-la. Está, pobrezinha, tão desfeita que parece doente de uns três meses atrás.
—Felizmente, observou Cirino com alguma enfatuação, aqui estou eu para pô-la de pé em pouco tempo.
—Deus o ouça, disse Pereira com verdadeira unção.
—Patrícios! Ó gente! gritou ele em seguida para os dois camaradas chegados de pouco: vão mecês sentar naquele rancho, ali. Perto há boa água, e lenha é o que não falta: basta estender o braço. Olhem, dêem ração de fartar aos animais. Aproveitem o milho, enquanto há: é a sustância desses bichos. Aqui, vendo-o baratinho. Um atilho por um cobre e não são espigas chuchas, nem grão soboró. Eh! lá! Maria Conga, vamos com isso!... janta na mesa!...
Foram o chamado e as indicações de Pereira cumpridas sem demora.
Apareceu a velha escrava, que estendeu em larga e mal aplainada mesa uma toalha de algodão, grosseira, mas muito alva, sobre a qual derramou duas boas cuias de farinha de milho: depois, emborcou um prato fundo de louça azul, e ao lado colocou uma colher e um garfo de metal.
—Sente-se, doutor, disse Pereira para Cirino, agora não manduco com mecê, porque já petisquei lá dentro. Desculpe se não achar a comida do seu agrado.
Vinha nesse momento entrando Maria Conga com dois pratos bem cheios e fumegantes, um de feijão-cavalo, outro de arroz.
—E as ervas? perguntou Pereira. Não há?
—Nhor-sim. Eu trago já, respondeu a preta, que com efeito voltou daí a pouco.
Tornou o mineiro a desculpar-se da insuficiência e mau preparo da comida.
—Não lhe dou hoje lombo de porco: mas o prometido não cai em esquecimento, isto lhe posso assegurar.
—Estou muito contente com o que há, protestou com sinceridade Cirino.
E, de fato, pelo modo por que começou a comer, repetindo animadas vezes dos pratos, deu evidentes mostras de que falava inteira verdade.
—Maria, disse Pereira para a escrava, que se fora colocar a alguma distancia da mesa com os braços cruzados, traz agora mel e café com doce.
—Ah! exclamou Cirino com patente satisfação estirando os braços, fiquei que nem um ovo. O feijão estava de patente. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, que me deu este bom agasalho.
—Amém! respondeu Pereira.
—Agora, amigo meu, disse o moço depois de pequena pausa, estou às suas ordens; podemos ver a sua doentinha e aproveitar a parada da febre para mim atalhá-la de pronto. Em tais casos, não gosto de adiantamentos.
Cobriu-se o rosto do mineiro de ligeira sombra: franziram-se os sobrolhos, e vaga inquietação lhe pairou na fronte.
—Mais tarde, disse ele com precipitação.
—Nada, meu senhor, retrucou Cirino, quanto mais cedo, melhor. É o que lhe digo.
—Mas, que pressa tem mecê? perguntou Pereira com certa desconfiança.
—Eu? respondeu o outro sem perceber a intenção, nenhuma. É mesmo para bem da moça.
Acenderam-se os olhos de Pereira de repentino brilho.
—E como sabe que minha filha é moça? exclamou com vivacidade,
—Pois não foi o sr. mesmo quem mo disse na prosa do caminho?
—Ah!... é verdade. Ela ainda não é moça... Quatorze, quinze anos, quando muito... Quinze anos e meio... Uma criança, coitadinha! ...
—Enfim, replicou o outro, seja como for. Quando o sr. quiser, venha procurar. Enquanto espero, remexerei nas minhas malas e tirarei alguns remédios para tê-los mais a mão.
—Muito que bem, aprovou Pereira, bote os seus trens naquele canto e fique descansado: ninguém bulirá neles... Quanto à minha filha... eu já venho... dou um pulo lá dentro, e... depois conversaremos.