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Inocência (Visconde de Taunay)/XI

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Comam e bebam: nada de cerimônias comigo. Minhas casa e franca; eu também. Façam provisão de alegria e de mim disponham sem constrangimento.

Plauto. Miles Gloriosus

Levantou-se de repente Cirino da marquesa em que se sentara.

—Tenho vontade de amanhã seguir viagem...

—Quê, doutor? protestou Pereira. Partir já? isso nunca... Vosmecê ainda não curou de todo minha filha. Pago-lhe todos os prejuízos da sua estada aqui... se for preciso.

—Oh! Sr. Pereira, reclamou por seu turno o jovem, isso quase me ofende...

—Desculpe-me, e muito; mas, antes de duas semanas, não o deixo sair daqui.

—Porém...

—Doentes não lhe hão de faltar. A minha rancharia vai ser visitada como se fosse casa de presepe, e o Sr. não poderá dar vazão aos que o vierem procurar. Olhe, hoje mesmo mandei avisar o Coelho, e daqui a pouco está ele cá, rente como pão quente. Atrás do primeiro, virá uma chusma dos meus pecados... Então quer deixar Nocência como ainda está?...

—Verdade é, balbuciou Cirino.

—Pois então? Nem pensar nisso é bom. Deixe tudo por minha conta; vosmecê há de aqui arranjar os seus negócios.

—Já que o senhor o diz... Eu tinha receio de vexá-lo. Uma vez que até cá venham doentes...

—Hão de vir, esteja sossegado...

—Ficarei, decidiu Cirino, quanto tempo for do seu agrado.

—Ora, muito que bem, exclamou Pereira esfregando as mãos com sincera satisfação, estou como quero. Quanto ao Sr. Maia.., Meyer, quero dizer, este há de criar raízes nesta casa...

—Isso também não: tenho tempo marcado pelo meu governo...

—Bem, bem; mas em todo caso, fará uma boa temporada conosco. É pena que o Manecão não chegue, porque apressávamos o casório, e arranjávamos uma festança como nunca se viu nestes matarrões... Mas estou aqui a dar com a língua nos dentes, sem pensar que os nossos estômagos ainda esperam sua matula. O almoço não pode tardar; é um pulo só... Se consentem vou ver 1á dentro.

Ao dizer estas palavras, saiu da sala, voltando pouco depois acompanhado de Maria, a velha escrava que trazia a toalha da mesa e a competente cuia de farinha.

— Á mesa! gritou Pereira. Almoço hoje com vosmecês. Sr. Meyer, o senhor comerá dora em diante comigo e com a menina, lá no interior da casa; ouviu?

E, voltou-se para Cirino.

—Bem sabe, explicou logo, como se fosse o Chiquinho.

Depois de pronta a mesa, sentaram-se os três alegremente.

—Olhe, Sr. Meyer, disse o mineiro servindo o alemão, isto é feijão-cavalo e do melhor. Misture-o com arroz e ervas; deite-lhe uns salpicos de farinha...

Começou o naturalista a mastigar com a lentidão de um animal ruminante, interrompendo de vez em quando o moroso exercício para exclamar:

—Delicioso, com efeito! Muito delicioso.

Comia Cirino pouco e em silêncio.

—Na Alemanha, observou Meyer contemplando um grão de feijão, a maior fava não chega a este tamanho. Aqui a fava de lá teria polegada e meia pelo menos. Um almoço, assim, havia de custar na Saxônia dois táleres, ou pelo câmbio que deixei no Rio de Janeiro, dois mil e quinhentos réis...

Interrompeu-o Pereira com gesto cômico.

—Dois mil e quinhentos? Ora, que terra essa! Como é que se chama?

— Sac-sônia, respondeu o alemão com gravidade.

—Saco-sonha! exclamou Pereira. Não conheço... Mas, então lá muita gente há de andar a morrer de fome...

—Pelos últimos cálculos, replicou Meyer com várias pausas durante as quais introduzia enormes colheradas da mistura que lhe aconselhara o anfitrião, é sabido que em Londres morrem no inverno oito pessoas à míngua, em Berlim cinco, em Viena quatro, em Pequim doze, em Iedo sete, em...

—Salta! atalhou Pereira exultando de prazer, então viva cá o nosso Brasil! Nele ninguém se lembra até de ter fome. Quando nada se tenha que comer, vai-se no mato, e fura-se mel de jataí e manduri, ou chupa-se miolo de macaubeira. Isto é cá por estas bandas; porque nas cidades, basta estender a mão, logo chovem esmolas... Assim é que entendo uma terra... o mais é desgraça e consumição ...

—Decerto! corroborou o alemão, o Brasil é um país muito fértil e muito rico. Dá café para meio mundo beber e ainda há de dar para todo o globo, quando tiver mais gente... mais população...

—Bem eu sempre digo, acudiu Pereira tocando no ombro de Cirino e deitando-lhe uns olhos de triunfo. Lá fora é que nos conhecem, nos fazem justiça... Não acha, patrício? Homem, agora reparo ...vosmecê está tão calado!... meio casmurro, que é isso? sempre aquele negócio?

De fato, Cirino, depois que ouvirá o convite a Meyer para conviver no interior da casa de Pereira, tornara-se sombrio, inquieto, meditabundo. O corpo ali estava, mas a sua imaginação vigiava zelosa o quartinho onde repousava aquela menina febricitante, tão bela na sua fraqueza e palidez enferma.

—Se são mulheres, ponderou Pereira, deixe-se disso; não há maior asneira... É fazenda que não falta.

No meio dos exercícios mandibulares, julgou Meyer que o seu hospedeiro considerava o sexo feminino do ponto de vista meramente estatístico e acreditou conveniente assentar melhor a idéia, um tanto vagamente aventada.

—Na raça eslava, disse dogmaticamente, a proporção é de duas mulheres para um homem; na germânica, há aproximadamente número equivalente, na latina de dois homens para uma mulher. Na França, a proporção para o lado masculino é de...

—Mas o senhor contou? interrompeu Pereira. Deixe-lhe dizer uma coisa: eu cá não engulo araras...

—Ni eu, afirmou Meyer com alguma surpresa e energia, nem sei como o senhor me vem falar nessas aves agora... Se as considera como caça, deve saber que os trepadores têm a carne dura, preta e...

Riu-se Pereira do equívoco e, explicando-o, continuou a discutir com o seu interlocutor, que não discrepava uma linha dos seus princípios de método e escrupulosa polidez.

—Pode o senhor falar um ano inteiro, disse o mineiro para concluir; mas quanto a mim, não entendo patavina das suas contas e jigajogas. Quem me tira da tabuada, bota-me no mato... E agora, vamos agradecer a Deus Nosso Senhor Jesus Cristo o ter-nos dado esta comida, ainda que insuficiente e mal temperada.

E, unindo o exemplo à palavra, levantou-se e, de mãos postas ao peito, orou em voz baixa com unção, no que foi imitado pelos dois hóspedes.

—Esteja convosco o Senhor, disse ao terminar, em voz alta, persignando - se.

—Amém, responderam Cirino e Meyer.

—Agora, anunciou o mineiro saindo da mesa, vou dar um giro pela minha roga, onde estão na capina três negros cangueiros, um dos quais é o meu fazendeiro; depois, hei de visitar uns conhecidos meus, avisando-os da sua chegada, doutor. Ah! acrescentou todo desfeito em amável sorriso, falta-lhe mostrar minha filha, Sr. Meyer.

—Sua filha! exclamou o alemão. Então tem filhos?

—Sim, senhor. Não se lembra que o seu vulto é o do mano Chiquinho? Pois então? Que maior prova lhe posso dar de confiança e amizade?... Não é verdade, Sr. Cirino?

—Sem dúvida, balbuciou a custo o mancebo.

—Minha filha chama-se Nocência e só hoje é que se levantou da cama... Esteve doentinha... Assim mesmo, não sei se as maleitas a deixaram... O corpo é às vezes caroável dessas malditas e...

—Isto está ao meu cuidado, atalhou Cirino com alguma pressa. Ainda ao meio-dia há de tomar quina...

—Vosmecê faça o que for melhor... Quer vir, Sr. Meyer?

—Pois não! pois não! respondeu amavelmente o alemão.

— É a única pessoa da família que tenho aqui, além de um marmanjão que está agora na carreira por essas estradas, agenciando a vida ... Então, vamos! Venha também, continuou ele voltando-se para Cirino, um cirurgião é quase de casa.

Saíram, pois, os três. Pereira na frente, seguiu o oitão da direita, e, abrindo uma tranqueira do cercado dos fundos, entrou pela cozinha, onde a velha preta Conga estava lavando pratos e arrumando louça numa prateleira.