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Inocência (Visconde de Taunay)/XVII

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O leproso. - Interesse? Ah! nunca inspirei senão compaixão...

O militar - Quão feliz fora eu se pudesse dar-vos algum consolo!...
Xavier de Maistre, O Leproso de Aosta

Não devo ter sociedade senão comigo mesmo, nenhum amigo, senão Deus. Generoso estrangeiro, adeus, sê feliz. Adeus para sempre!

Idem

A pessoa que chegara, bem que tivesse descavalgado, não se adiantou ao encontro do dono da casa. Pelo contrário como que recuou, conservando-se depois imóvel, encostado a um burrinho, cujas rédeas segurava.

De seu lugar, perguntou-lhe Pereira com expressão não muito prazenteiro:

—Então, como vai, Sr. Garcia?

— Como hei de ir, respondeu o interpelado. Mal... ou melhor, como sempre.

—Pois esteja na certeza de que muito sinto.

—Está aí o cirurgião? indagou Garcia.

—Não tarda a vir vê-lo aí fora... Olhe, é um instantezinho.

Palavras tão cruéis não pareceram fazer mossa ao desgraçado.

— Esperá-lo-ei com toda a paciência, replicou melancólico.

—Já sei que volta hoje para casa, afirmou Pereira.

—Volto. Se a noite me pegar em caminho, ficarei no pouso das Perdizes.

—É verdade: lá há uma tapera. Mas o Sr. não tem medo de almas do outro mundo? Dizem que o tal rancho velho é mal-assombrado.

—Eu? exclamou o infeliz. Só tenho medo de mim mesmo. Quisesse um defunto vir gracejar um pouco comigo, e de agradecido lhe beijava os dedos roídos dos bichos. Olhe, Sr. Pereira, continuou com voz um tanto alta e agoniada, não levo a mal o senhor não me convidar para entrar em sua casa; não, no seu caso havia de fazer o mesmo.

Oh! Sr. Garcia! quis protestar Pereira.

—Nada;... digo-lhe isto do coração... Na minha família sempre tivemos nojo de lázaros... Sou o primeiro... O sr. nem imagina... Vivi muitos anos meio desconfiado... A ninguém contei o caso... De repente, arrebentou o mal fora. Já não era mais possível enganar nem a um cego... Ah! meu Deus, quanto tenho sofrido!...

—Permita Ele, interrompeu Pereira em tom compassivo, que este doutor tenha algum remédio... Bem vê... às vezes...

—Curar a morféia? replicou Garcia com sorriso pungente de sarcasmo. Não há esse pintado... que em tal pense...

—Então para que quer ver o médico?

— Só para uma coisa... Saber pelos livros que ele tem lido e pelo conhecimento das moléstias, se isto pega... É só o que quero... Porque então fujo de minha casa. Desapareço desta terra... e vou-me arrastando até tombar nalgum canto por aí... Dizem uns que pega... outros que não... que é só do sangue... Eu não sei...

É, abanando tristemente a cabeça, apoiou-se ao tosco selim.

Depois, ergueu os olhos para os céus, e exclamou:

—Cumpra-se tudo quanto Deus Nosso Senhor Jesus Cristo houver determinado!... Se o médico me desenganar, não quero que a minha gente fique toda... marcada... Irei para São Paulo...

Pereira cortou este doloroso diálogo:

—Está bem, patrício Garcia, disse, vou já mandar-lhe o homem... espere um pouco...

E, entrando, reiterou o pedido a Cirino, que se demorara a receitar a Coelho umas beberagens de velame e pés-de-perdiz, plantas muito abundantes naquelas paragens, de grandes virtudes diuréticas e que deveriam ser empregadas um mês depois da aplicação do leite de jaracatiá.

—Ande, doutor, instou Pereira, vá lá fora ver o coitado do outro e despache-o depressa. Estou todo enfernizado por vê-lo no meu terreiro.

Cirino saiu então e, caminhando com lentidão, parou a alguns passos do mal-aventurado Garcia, cujo rosto repentinamente se contraiu enquanto tirava o chapéu com submissão e receio.

Vinha então a tarde descendo, e a luz do crepúsculo irradiava por toda a parte, tão melancólica e suave que, sem saber por que, a alma de Cirino de repente se confrangeu.

Com assombro o encarava o lázaro. Diante dele se erguera quem lhe ia apontar o caminho da eterna proscrição. Dos seus lábios ia cair a sentença última, irremediável, fatal!

Quanta angústia no olhar daquele homem! Que pensamentos sinistros! Quanta dor!

Também ficara ali atônito, boquiaberto, à espera que a palavra de Cirino lhe quebrasse o horroroso enleio. -Então, disse este depois de breve pausa, que me quer o senhor?

—Doutor, balbuciou Garcia... primeiro que tudo quero... pagar-lhe;... trouxe algum... dinheiro... mas, talvez... seja... pouco.

Interrompeu-o Cirino:

—Não recebo dinheiro para tratar... da sua moléstia.

—Quer isto dizer, replicou com acabrunhamento Garcia, que ela não tem cura... Eu bem sabia, mas. . é tão duro ouvir sempre isso!. . Olhe, o meu mal é de pouco ... está em principio. Quem sabe... se o sr. não conhecerá alguma erva?...

— Infelizmente, respondeu Cirino, nem eu, nem ninguém conhece essa planta...

—Enfim!

E Garcia, fechando os olhos como que para concentrar as forças, continuou:

—Ah! doutor, eu sou um pobre homem... velho já cansado... Por que não me velo a morte em lugar desta podridão que me esta comendo as carnes?... Muito tempo a senti dentro de mim... Disfarcei, até ao dia em que minha neta... a filha do meu coração.. a Jacinta... ela mesma, mostrou certo receio de me abraçar . . Ah! senhor, quanto se sofre nesta vida!

E Garcia parou ofegante, empalidecendo muito.

—Dê-me água, exclamou ele, água... pelo amor de Deus!... Pudesse agora... ser o meu dia... A minha garganta... está que nem fogo! ...

E agarrou-se aos arreios para não cair no chão.

Cirino correu a buscar água.

—Onde há de ser? perguntou Pereira.

—Onde queira, respondeu o outro com pressa, veja que aquele cristão está sofrendo...

—Ah! leve a caneca de louça... Depois a quebraremos...

Com sofreguidão tomou o lázaro o vaso, bebeu de um trago e pareceu melhorar.

—Foi um vagado, disse reassumindo aos poucos a calma. Mas, como lhe contava, certeza tinha eu do mal. Agora, só quero saber uma coisa e vou-me de partida. Esse mal... pega, doutor?

—Pega, afirmou Cirino com tristeza.

—E que me resta fazer?

—Pedir à Senhora Sant'Ana paciência e a Nosso Senhor Jesus Cristo. .

Garcia abanava a cabeça acabrunhado.

...que o proteja na sua vida de desgraças. -Meu Deus, balbuciou o morfético a meia voz, dai-me forças... coragem para que eu faça o que devo fazer.

E, com súbita resolução:

—Cumpra-se a vontade do Altíssimo! exclamou, enfim. Doutor, obrigado! O pobre lázaro há de pedir ao Todo-Poderoso que neste mundo e no outro lhe pague as suas palavras de homem de letras... Adeus! Eu me vou para as terras de São Paulo... Talvez me junte à gente da minha espécie Adeus...

E, a custo montando a cavalo, voltou-se para as pessoas que tinham de longe vindo assistir à consulta.

— Adeus, disse ele acenando com o chapéu, gente e patrícios. Sr. Pereira, Sr. Coelho, mais senhores, adeus! Eu me boto de uma feita para lá das Parnaíbas... Este sertão não me vê mais nunca!,

Acolheu o silêncio essas palavras de eterna despedida.

Garcia então, esporeando com o calcanhar o ventre da cavalgadura, a passo tomou rumo da estrada geral e sumiu-se numa das voltas do caminho, quando já vinha a noite estendendo o seu lúgubre manto.