Inocência (Visconde de Taunay)/XXVII
Santa Maria, advogada nossa, ouvi
nossos rogos. Virgem pura, ante Vós
se prostra uma infeliz donzela.
Walter Scott, Os Dois Desposados
Descrever o abalo que sofreu Inocência ao dar, cara a cara com Manecão fora impossível Debuxaram-se-lhe tão vivos na fisionomia o espanto e o terror, que o reparo, não só da parte do noivo, como do próprio pai, habitualmente tão despreocupado, foi repentino,
—Que tem você? perguntou Pereira apressadamente.
—Homem, a modos, observou Manecão com tristeza, que meto medo à senhora dona...
Batiam de comoção os queixos da pobrezinha: nervoso estremecimento balanceava-lhe o corpo todo.
A ela se achegou o mineiro e pegou-lhe no braço.
—Mas você não tem febre?... Que é isto, rapariga de Deus?
Depois, meio risonho e voltando-se para Manecão:
—Já sei o que é... Ficou toda fora de si... vendo o que não contava ver... Vamos, Nocência, deixe-se de tolices.
—Eu quero, murmurou ela, voltar para o meu quarto.
E encostando-se à parede, com passo vacilante se encaminhou para dentro.
Ficara sombrio o capataz.
De sobrecenho carregado, recostara-se à mesa e fora, com a vista, seguindo aquela a quem já chamava esposa.
Sentou-se defronte dele Pereira com ar de admiração.
—E que tal? exclamou por fim... Ninguém pode contar com mulheres, iche!
Nada retorquiu o outro.
—Sua filha, indagou ele de repente com voz muito arrastada e parando a cada palavra, viu alguém?
Descorou o mineiro e quase a balbuciar:
—Não... isto é, viu... mas todos os dias... ela vê gente... Por que me pergunta isso?
—Por nada...
—Não;... explique-se... Você faz assim uma pergunta que me deixa um pouco... anarquizado. Este negócio é muito, muito sério. Dei-lhe palavra de honra que minha filha havéra de ser sua mulher... a cidade já sabe e... comigo não quero histórias... t: o que lhe digo.
—Esta bom, replicou ele, nada de percipitações. Toda a vida fui ansim... Já volto; vou ver onde pára o meu cavalo.
E saiu, deixando Pereira entregue a encontradas suposições.
Decorreram dias, sem que os dois tocassem mais no assunto que lhes moía o coração. Ambos, calmos na aparência, viviam vida comum, visitavam as plantações, comiam juntos, caçavam e só se separavam à hora de dormir, quando o mineiro ia para dentro e Manecão para a sala dos hóspedes.
Inocência não aparecia.
Mal saía do quarto, pretextando recaída de sezões: entretanto, não era o seu corpo o doente, não; a sua alma, sim, essa sofria morte e paixão; e amargas lágrimas, sobretudo à noite, lhe inundavam o rosto.
—Meus Deus, exclamava ela, que será de mim? Nossa Senhora da Guia me socorra. Que pode uma infeliz rapariga dos sertões contra tanta desgraça? Eu vivia tão sossegada neste retiro, amparada por meu pai... que agora tanto medo me mete... Deus do céu, piedade, piedade.
E de joelhos, diante de tosco oratório alumiado por esguias velas de cera, orava com fervor, balbuciando as preces que costumava recitar antes de se deitar.
Uma noite, disse ela:
—Quisera uma reza que me enchesse mais o coração... que mais me aliviasse o peso da agonia de hoje...
E, como levada de inspiração, prostrou-se murmurando:
—Minha Nossa Senhora mãe da Virgem que nunca pecou, ide adiante de Deus. Pedi-lhe que tenha pena de mim... que não me deixe assim nesta dor cá de dentro tão cruel. Estendei a vossa mão sobre mim. Se é crime amar a Cirino, mandai-me a morte. Que culpa tenho eu do que me sucede? Rezei tanto, para não gostar deste homem! Tudo... tudo... foi inútil! Por que então este suplício de todos os momentos? Nem sequer tem alívio no sono? Sempre ele... ele!
As vezes, sentia Inocência em si ímpetos de resistência: era a natureza do pai que acordava, natureza forte, teimosa.
—Hei de ir, dizia então com olhos a chamejar, à igreja, mas de rastos! No rosto do padre gritarei: Não, não!... Matem-me... mas eu não quero...
Quando a lembrança de Cirino se lhe apresentava mais viva, estorcia-se de desespero. A paixão punha-lhe o peito em fogo...
—Que é isto, Santo Deus? Aquele homem me teria botado um mau olhado? Cirino, Cirino, volta, vem tomar-me... leva-me!... eu morro! Sou tua, só tua... de mais ninguém.
E caía prostrada no leito, sacudida por arrepios nervosos.
Um dia, entrou inesperadamente Pereira e achou-a toda lacrimosa.
Vinha sereno, mas com ar decidido.
—Que tem você, menina, perguntou ele, meio terno, de alguns dias para cá?
Inocência encolheu-se toda como uma pombinha que se sente agarrar.
Puxou-a brandamente o pai e fê-la sentar no seu colo.
—Vamos, que é isto, Nocência? Por que se socou assim no quarto?... Manecão lá fora a toda a hora está perguntando por você... Isto não bonito... É, ou não, o seu noivo?
Redobraram as lágrimas.
—Mulher não deve atirar-se a cara dos homens... mas também é bom não se canhar assim... É de enjoada... Um marido quase, como ele já é...
De repente o pranto de Inocência cessou.
Desvencilhou-se dos braços do pai e, de pé diante dele, encarou-o com resolução:
—Papai. sabe por que tudo isto?
—Sim.
—É porque eu... não devo...
—Não devo o quê?
—Casar.
Arregalou Pereira os olhos e de espanto abriu a boca.
—Que? perguntou ele elevando muito a voz...
Compreendeu a pobrezinha que a lata ia travar-se. Era chegado o momento.
Revestiu-se de toda coragem.
—Sim, meu pai, este casamento não deve fazer-se..
—Você está doida? observou Pereira com fingida tranqüilidade.
Prosseguiu então Inocência com muita rapidez, as faces incendiadas de rubor:
—Conto-lhe tudo papai... Não me queira mal... Foi um sonho... O outro dia, antes de Manecão chegar, estava sesteando e tive um sonho... Neste sonho, ouviu, papai? minha mãe vinha descendo do céu... Coitada! estava tão branca que metia pena... Vinha bem limpa, com um vestido todo azul... leve, leve!
—Sua mãe? balbuciou Pereira tomando de ligeiro assombro.
—Nhor-sim, ela mesma...
—Mas você não a conheceu! Morreu, quando você era pequetita.....
—Não faz nada, continuou Inocência, logo vi que era minha mãe... Olhava para mim tão amorosa!... Perguntou-me: Cadê seu pai? Respondi com medo: Esta na roga; quer mecê, que ele venha? - Não, me disse ela, não é perciso; diga-lhe a ele que eu vim ate cá, para não deixar Manecão casar com você, porque há de ser infeliz... muito!... muito!...
—E depois? perguntou Pereira levantando a cabeça com ar sombrio, girando os olhos.
—Depois... disse mais... Se esse homem casar com você, uma grande desgraça há de entrar... nesta casa que foi minha e onde não haverá mais sossego. Bote seu pai bem sentido nisso. E sem mais palavra, sumiu-se como uma luz que se apaga.
Cravou Pereira olhar inquiridor na filha.
Uma suspeita lhe atravessou o espírito.
—Que sinal tinha sua mãe no rosto?
Inocência empalideceu.
Levando ambas as mãos à cabeça e prorrompendo em ruidoso pranto, exclamou:
—Não sei... eu estou mentindo... Isto tudo é mentira! mentira! Não vi minha mãe!... Perdão, minha mãe, perdão!
E, caindo de bruços sobre a cama, ficou imóvel com os cabelos esparsos pelas espáduas.
Contemplou-a Pereira largo tempo sem saber que pensar, que dizer.
Súbito se inclinou sobre o corpo da filha e ao ouvido lhe segredou com muita energia:
—Nocência, daqui a bocadinho Manecão chega da roça... você ha de ir para a sala... se não fizer boa cara, eu a mato.
E erguendo a voz:
—Ouviu? Eu a mato!... Quero antes vê-la morta, estendida, do que... a casa de um mineiro desonrada...
Às pressas saiu do quarto, deixando Inocência na mesma posição.
—Pois bem, murmurou ela, já que é preciso... morra eu!