Inspirações do Claustro/Meditação
Isto pensava, isto escrevo, isto tinha n'alma, isto vai no papel: que doutro modo não sei escrever.
Gosto de meditar de noite, às vezes,
Como um infante,
Espasmado no olhar, fitando o corpo,
Que tem diante.
Gosto de meditar de dia, às vezes,
Como o ancião,
A quem idéias se erguem do passado
Em borbulhão.
O infante, o ancião!—os dois extremos
Da existência;
Um à vida, outro à morte, iguais amostram
Igual tendência.
Este é planta mimosa, delicada,
Esperançosa:
Aquel'outro hasteada e quase murcha,
Colhida rosa.
Este promete e cheiro e viço e ramas.
Flores ao cento;
Aquel’outro esgalhar espera as folhas
A certo vento.
E muitas vezes o sol cresta a plantinha,
Denuda e mata:
E vinga a planta antiga, — e quase morta
Revive intacta.
O velho então é como o infante estúpido,
Que nasce agora:
Magina mil visões: sem causa ri-se,
Sem causa chora.
Se fui infante estúpido e pasmado,
Adulto louco:
Se hei de ser velho, sem sentir, sem alma,
Daqui a pouco.
Antes quisera ser infante, — quase
Sem sensações:
Não tora ao menos cônscio de remorsos,
Nem decepções.
Fosse por toda a vida infante néscio,
Sem consciência:
Morresse alfim apenas circunscrito
Em minha essência.
Por que e para que rompeu meu corpo
Do embrião?
Que melhor que não fora me abafasse
A compressão?
Fora melhor. E o olho vil do hipócrita
Não me veria:
Franzindo-me o nariz atrás das costas,
Não se riria.
Fora melhor. E a seiva de amargores
Não me coara,
E a precoce da estação das dores inda
Não me chegara.
Fora melhor. E o estigma da tristeza
Não me selara.
Melancólica ronha os rins sensíveis
Não mos gastara.
O coração não fora um grosso livro
De negras laudas.
Não me açoitara a hidra dos remorsos
Co'as férreas caudas.
Não me fora sem flores a existência
Contínuo inverno.
Não me fora este mundo um campo estéril,
Páramo eterno.
Onde só nascem, crescem e vicejam
Males sem conto.
Donde se ceifa antecipado pranto,
Enojo pronto.
Porque e para que rompeu meu corpo
Do embrião?
Pela miséria, e para a morte interna
Do coração!
E o Deus, que tem por escabelo nuvens
De ouro e marfim,
De ofendido, parece deslembrado,
— Triste! — de mim!
Deus! para que tiraste-me do imo
Do embrião?
P'ra vida de minha alma, — ou para a morte
Do coração?
{{c|
III}}
Oh! morra o coração, — gérmen fecundo
De mil tormentos.
Desfaleçam-lhe as fibras, — espedacem-se
Os filamentos.
Isenta de paixões, — de amor, ou ódio,
Surja a razão.
Não obedeça escrava aos sentimentos
Do coração.
Torne-se o coração lâmpada extinta,
Cinza no lar.
E deixe que a razão veleje livre
Em largo mar.
Creia num Deus, — e dos dulçores goze
De almo ascetismo.
Não mais lhe roa as vísceras o cancro
Do cepticismo.
A dúvida infernal, batendo as azas,
Perdendo as cores,
Precipite-se súbito nas chamas
Exteriores.
Sepulte-se a descrença em negras trevas
De negro inferno.
Creia a razão convicta nas justiças
Do Deus eterno.
Sim: o viburno pequenino, humilde
No prado agreste,
Vegeta ao pé da realeza enfática
De alto cipreste.
E Deus, que vivifica o alvar pinheiro
E a tenra planta:
Que os soberbos calcina, e que os humildes
Do pó levanta:
De minha vil baixeza, como os homens,
Ah! — não se peja;
Que ele mão cheia de mil dons em todos
Largo despeja.
Mas se ‘té 'qui parece deslembrado,
Triste! — de mim:
Se não manda aguardar minh'alma dúbia
Um querubim:
Se nunca se lembrar que um ente existe
Nessa amargura,
Melhor não fora me gelasse o sangue
A morte dura?
Em sala, onde mil luzes por mil lâmpadas
Reparte o gás,
Delas a mais pequena que se apague
Que mal que faz?
Qual rápido relâmpago no espaço
Sói discorrer,
Tal, sem deixar pegadas de seu vôo,
Foge o prazer.
Foge o prazer como a andorinha leve
Os ares corta:
Como o primeiro feto — esperanças suas —
A esposa aborta.
Foge o prazer, qual seta que dispara
Índio sagaz:
Qual no deserto a voz, que um eco apenas
Nos vales faz.
Ali—bem vejo — ali pompéia esplendida
A cena aberta.
E da platéia os vácuos atacados
O povo aperta.
Jubilosas menções, palmas soantes
Rompem, murmuram.
Melíflua orquestra, tímpanos sonoros
A dor lhes curam.
Os vates das paixões enamorados,
Como possessos,
Trovam, filtrando em todos o requinte
De seus acessos.
Fugazes fadas no ademã fantástico
Cisnes gorjeiam.
Depois, prendendo-se a audição aos cantos,
Todos pranteiam.
Arrebatam-se as almas, — magnetizam-se
Os sentimentos.
Mudam de sua ação inda os mais frigidos
Temperamentos.
Letargia fatal! — ao outro dia
Calmos acordam.
E, sonâmbulos quase, — aéreas formas
Só lhes recordam.
A miséria da vida se lhes mostra
Então real.
Catam novos prazeres: nem um deles
De mais lhes val'.
Qual rápido relâmpago no espaço
Sói discorrer,
Tal, sem deixar pegadas de seu vôo,
Foge o prazer.
Hora da noite, — hora solene e sacra
Á reflexão:
Quando do mesmo sono o pobre e o rico
Dormindo estão.
Gosto de vós, sombras da noite queda,
Morte do dia,
Que me amparais dos cálidos esgares
Da hipocrisia.
Posso então retrair-me em minha essência,
Viver comigo.
Não me rodeia do traidor a mascara
Com cor de amigo.
Profundo o olhar do hipócrita, —profundo
Como o oceano.
Na retina lhe luz das trevas cegas
O anjo insano.
Sorri também.—Este sorriso estrídulo,
Oh ente vil,
Por dá-lo mesmo assim fazes, empregas
Esforços mil!
Sorri também: e seu sorriso — escárnio —
Da natureza.
Seu sorriso — um prelúdio concebido
De malvadeza.
Quanta vez viração tépida e fresca
Serena os ares,
E procela depois revolta horrenda
Terras e mares!
Quanta vez mil delícias lá desmancha
Vaivém da sorte!
Quanta vez o prazer da vida incauta
Precede à morte!
Assim sorri o hipócrita um sorriso
De fúria má.
Mentiras, manhas ímpias seu demônio
Grato lhe dá.
Hipócrita, que pisas o palácio
E a palhoça e a cela,
Deixa de teus furores esquecida
Uma parcela.
Não me toques na orla dos vestidos
Co'a férrea mão:
Deixa-me entregue na soidão da noite
Á reflexão.
17 de novembro de 1831.
Notas do autor
[editar]Meditação – pag. 14.
Eu conheço o ingênuo descarnado e comum desta peça poética, se seu nome é este. Tenho vergonha de chamar isto — meu. Não é por orgulho que o digo, nem por falsa modéstia: é pela verdade, que eu amo, pela verdade, a quem eu gosto de sacrificar toda a exterioridade ridícula, toda a convenção puramente social que a possa encobrir. Não posso me alargar muito nestas notas, — e me perdoarão alguma coisa pouco desenvolvida, porque a brevidade não traz sempre a clareza. Se me fosse licito deixar de fazê-las, seria melhor. Para quem leu somente o prólogo, são elas inúteis. Quem, porém, teve a paciência de ler sossegado, — o que eu acho difícil, — todas essas composições, a qual mais contraditória em aparência, esse precisará de alguma coisa mais. Eu não o saciarei entretanto, porque não posso.
A peça presente foi impressa há dois anos ou mais no Noticiador Católico. As poucas pessoas que lêem este periódico, aplaudiram — as Páginas do coração, — nome que lhe dei, então, e que, por extravagantemente romântico, risquei agora. É por isso que estas poucas pessoas gostaram, que eu também o deixo ir aí.