Iracema/XV
Nasceu o dia e expirou.
Já brilha na cabana de Araken o fogo, companheiro da noite. Correm lentas e silenciosas no azul do céo, as estrellas, filhas da lua, que esperão a volta da mãe ausente.
Martim se embala docemente; e como a alva rêde que vae e vem, sua vontade oscilla de um á outro pensamento. Lá o espera a virgem loura dos castos affectos; aqui lhe sorri a virgem morena dos ardentes amores.
Iracema recosta-se langue ao punho da rêde; seus olhos negros e fulgidos, ternos olhos de sabiá, buscão o estrangeiro, e lhe entram n'alma. O christão sorri; a virgem palpita; como o sahy, fascinado pela serpente, vae declinando o lascivo talhe, que se prosta sobre o peito do guerreiro.
Já o estrangeiro a preme ao seio; e o labio avido busca o labio que o espera, para celebrar nesse adyto d'alma, o hymenco do amor.
No recanto escuro o velho Pagé, immerso em sua contemplação e alheio ás cousas deste mundo, soltou um gemido doloroso. Pressentira o coração o que não viram os olhos? Ou foi algum funesto presagio para a raça de seus filhos, que assim echoou n'alma de Araken?
Ninguém o soube.
O christão repellio do seio a virgem indiana. Elle não deixará o rasto da desgraça na cabana hospedeira. Cerra os olhos para não vêr; e enche sua alma com o nome e a veneração do seu Deus:
— Christo!... Christo!...
A serenidade volta ao seio do guerreiro branco, mas todas as vezes que seu olhar pousa sobre a virgem tabajara, elle sente correr-lhe pelas veias uma centelha de ardente chamma. Assim quando a creança imprudente revolve o brasido de intenso fogo, saltam as faúlhas inflamadas que lhe queimão o corpo.
Fecha os olhos o christão, mas na sombra de seu pensamento surge a imagem da virgem, talvez mais bella. Em balde chama elle o somno ás pálpebras fatigadas; ellas se abrem, máo grado seu.
Desce-lhe do céo ao atribulado pensamento uma inspiração.
— Virgem formosa do sertão, esta é a ultima noite que teu hospede dorme na cabana de Araken, onde nunca viera, para teu bem e seu. Faze que seu somno seja alegre e feliz.
— Manda; Iracema te obedece. Que póde ella para tua alegria?
O christão fallou submisso, para que não o ouvisse o velho Pagé:
— A virgem de Tupan guarda os sonhos da jurema que são doces e saborosos!
Um triste sorriso pungio os labios de Iracema:
— O estrangeiro vae viver para sempre á cintura da virgem branca; nunca mais seus olhos verão a filha de Araken, e elle quer que o somno já feche suas palpebras, e que o sonho o leve á terra de seus irmãos!
— O somno é o descanço do guerreiro, disse Martim; e o sonho a alegria d'alma. O estrangeiro não quer levar comsigo a tristeza da terra hospedeira, nem deixá-la no coração de Iracema!
A virgem ficou immovel.
— Vae, e torna com o vinho de Tupan.
Quando Iracema foi de volta, já o Pagé não estava na cabana; tirou a virgem do seio o vaso que ali trazia occulto sob a carioba de algodão entretecida de penans. Martim lh'o arrebatou das mãos, e libou as gotas do verde e amargo licor. Não tardou que a rêde recebesse seu corpo desfallecido.
Agora podia viver com Iracema, e colher em seus labios o beijo, que ali viçava entre sorrisos, como o fructo na corolla da flôr. Podia ama-la, e sugar desse amor o mel e o perfume, sem deixar veneno no seio da virgem.
O goso era vida, pois o sentia mais vivo e intenso; o mal era sonho e illusão, que da virgem elle não possuía mais que a imagem.
Iracema se affastará e oppressa e suspirosa.
Abrirão-se os braços do guerreiro adormecido e seus labios; o nome da virgem resoou docemente.
A juruty, que divaga pela floresta, ouve o terno arrulho do companheiro; bate as asas, e vôa á conchegar-se ao tepido ninho. Assim a virgem do sertão, aninhou-se nos braços do guerreiro.
Quando veio a manhã, ainda achou Iracema ali debruçada, qual borboleta que dormio no seio do formoso cacto. Em seu lindo semblante accendia o pejo vivos rubores; e como entre os arrebóes da manhã scintilla o primeiro raio do sol, em suas faces incendidas rutilava o primeiro sorriso da esposa, aurora de fruido amor.
Martim vendo a virgem unida ao seu coração, cuidou que o sonho continuava; cerrou os olhos para torna-los á abrir.
A pocema dos guerreiros, troando pelo valle, o arrancou ao doce engano: sentio que já não sonhava, mas vivia. Sua mão cruel abafou nos labios da virgem o beijo que ali se espanejava.
— Os beijos de Iracema são doces no sonho; o guerreiro branco encheu deles sua alma. Na vida, os lábios da virgem de Tupan amargão e doem como o espinho da jurema.
A filha de Araken escondeu no coração a sua alegria. Ficou timida e inquieta, como a ave que pressente a borrasca no horisonte. Affastou-se rapida, e partiu.
As aguas do rio depurarão o corpo casto da recente esposa.
A jandaia não tornou á cabana.
Tupan já não tinha sua virgem na terra dos Tabajaras.
Notas
[editar]Pag. 66.—Sahy. — Lindo passaro, azul.
Pag. 68.—Carioba.—Camisa de algodão; de cary branco e oba roupa. Tinhão tambem a arassoia de arára e oba, vestido de pennas de arara.
Pag. 68.—A' cintura da virgem.—Os indigenas chamavam a amante possuída aguaçaba, de aba homem,cua cintura, çabacoisa própria; a mulher que o homem cinge, ou traz à cintura. Fica, pois, claro o pensamento de Iracema.