Irmãos e Adventistas
Na própria A.C.M. eu soube que o evangelismo ainda tinha duas igrejas no Rio, os irmãos e os sabatistas. Dos irmãos, apesar dessa classificação tão parternal, o meu informante só conhecia um probo negociante da rua do Hospício.
Esse negociante era um homem baixo, simples e modesto, vendendo relógios e amando a Deus. Recebeu-me por trás do mostrador, e quando soube que tinha sob os olhos um curioso, pasmou.
- Interessa-lhe muito saber o que são os cristãos?
- Os irmãos...
- Perdão, os cristãos.
- Era para mim um grande favor.
Ele coçou a cabeça, alegou uma grande ignorância, com humildade. Depois, como eu continuava diante dele, resolvido a não sair, resignou-se.
- Os irmãos que se reúnem à rua Senador Pompeu, n.0 121 denominam-se cristãos.
Não precisa perguntar porque. Leia os atos dos Apóstolos capítulo 11, versículo 26. Existem no Rio, há vinte e cinco anos. Não tem templo próprio, reúnem-se em casa de um irmão como deve ser. Leia a Epístola de São Paulo aos Romanos, capítulo 16, versículo 5. Os seus estatutos, a sua regra de fé são as Escrituras e a sua divisa é não ir além delas. Leia a 1 a Epístola aos Coríntios, capítulo 4, versículo 6.
- E o pastor, quem é?
- Reconhecemos como único pastor a Jesus Cristo. Leia São João, capítulo 10, versículos 11 a 16. O governo da igreja está ao cuidado dos anciãos ou mais velhos, que fazem esse serviço sem outra remuneração que não sejam o respeito e a honra da igreja. Leia os Atos... Como não nos achamos autorizados pelas Escrituras, não celebramos casamentos, reconhecemos o instituído pelas potestades legalmente constituídas, a quem buscamos obedecer, desde que não contrariem as determinações de Deus. Leia a Epístola aos Romanos versículos 1 a 6. Naturalmente cuidamos dos pobres e dos enfermos, fazendo coletas e seguindo o ensino das Escrituras. Veja a Epístola aos Coríntios.
- Como se pratica o culto?
- No primeiro dia da semana congregamo-nos para celebrar a festa da Páscoa cristã, ou a Ceia do Senhor, às 11 da manhã com pão e vinho. Nessa ocasião adoramos a Deus, entoando hinos e lendo as Escrituras, interpretando-as e edificando a alma com muitos outros dons do Espírito Santo. Basta ler a neste respeito São Paulo e os Atos e o Evangelho segundo São Mateus. Reunimo-nos também aos domingos das 5½ às 6½ da tarde para estudar as Escrituras. Das 6½ às 7½ prega-se o Evangelho.
Era simples, puro, primitivo. Aquele relojoeiro, que a cada palavra parecia amparar a sua autoridade na palavra da Bíblia, enternecia.
- E que se diz nessa hora de domingo aos pobres pecadores e irmãos?
- Vede os Atos, São Paulo, São João... Só há um Salvador, só há um meio para o perdão dos pecados e só existe um mediador entre Deus e os homens - é nascer de novo, é nascer do Espírito Santo. Esperemos a sua chegada.
- Então, Cristo está para chegar.
Gravemente o honesto irmão olhou-me.
- Talvez demore. Talvez venha aí... A corrupção é tanta que só ele a pode extinguir.
Saí meio aflito. É possível que ainda se encontre um cristão de conto católico em plena cidade do vício, é possível essa candura?
Estava de tal forma nervoso que, sabendo obter de um crente em Niterói informações sobre os adventistas, escrevi logo uma carta espetaculosa, pedindo-lhe uma nota de efeito.
No dia seguinte lia esta resposta lacônica e seca: - "I;mo. Sr. - Se quiser compreender a verdade de Deus, venha V. S. até ao nosso templo, em Cascadura."
Era uma recusa? Era uma lição? Guardei a carta humilhado, porque grande crime é para mim magoar a crença de qualquer, e estava, domingo, tristemente lendo, quando à porta surgiu um homem de negra barba cerrada, vestido numa roupa de xadrez. Olhou-me fixamente, limpamente, e a sua voz, de uma inédita doçura, disse:
- Eu sou o crente a quem há tempos escreveu!
Levantei-me nervoso. A tarde de inverno, caindo, punha pela sala uma aragem álgida, e a minha pobre alma estava num desses momentos de sensibilidade em que se crê no maravilhoso e nos espaços. Fui excessivo de gentileza. Pedia perdão, de não ter obedecido ao convite, mas era tão longe, tão vago, em Cascadura...
O crente fervoroso sentou-se, pousou a sua mala no chão, encostou o velho guarda-chuva à parede.
- Não é bem em Cascadura, fica entre Cupertino e essa estação, deixei de mandar-lhe as notas porque não me achava com competência para as dar. São João disse. Temei a Deus e dai-lhe Glória. Eu sou muito humilde, só lhe posso dar a minha crença.
- Mas uma simples informação?
- Era preciso consultar os meus irmãos.
Eu ficara na sombra, a luz batia-lhe em cheio no rosto. Reparei então nos traços dessa fisionomia. O lábio era quase infantil, os dentes brancos, pequenos, cerrados, e toda aquela espessa barba negra parecia selar potentemente a inefável bondade do seu perfil. De resto o crente era tímido, cada palavra sua vinha como um apostolado que se desculpa e a sua voz persuasiva ciciava baixinho a crença do Infinito, com um conhecimento dos livros sagrados extraordinário.
- Mas a origem dos adventistas? - indaguei eu.
O crente puxou a cadeira.
Uma discussão que se levantou na América em 1840 e na qual Guilherme Miller ocupou lugar saliente. Os adventistas esperavam o fim do mundo em 1844, porque a profecia de Daniel, no capitulo 8 versículo 14, diz que o santuário será justificado ou purificado ao fim do decurso do período profético de 2.300 dias.
- Deus! em tão pouco tempo?
- Dias proféticos equivalentes a um ano. Os adventistas julgavam que o 2.300 era o ano de 1.844 e que a justificação ou purificação do santuário importaria em ser queimada a terra com a vinda de Cristo.
Esperavam pois a vinda de Jesus.
Olhei o crente. Os seus olhos eram beatos como os olhos dos puros.
- Ora o tempo passou e Cristo não veio...
- Sim - fez ele -, e claro ficou o erro. Ou houve falta na contagem dos 2.300 dias ou a purificação do santuário não era purificação da terra na segunda vinda de Cristo. Mas a questão agitara o estudo. A coisa foi examinada e duas opiniões se formaram. Uns julgavam que o período profético ainda não decorrera, outros, com lento trabalho, chegaram à convicção de que o erro existia na palavra santuário.
- Então o santuário?
- Não tem aplicação à terra, mas verdadeiramente ao céu, onde Jesus Cristo entrou no fim desse período de tempo, para purificá-lo com o seu próprio sangue, conforme está descrito.
A classe que aceitou essa interpretação é a que se chama adventistas do 7.º dia. Não marcamos tempo nem cremos que qualquer período profético assinalado na Bíblia se estenda até nós.
- Então aceitam como base da fé?
- A Bíblia Sagrada, a palavra de Deus, sem tradições, e a autoridade de qualquer igreja. Cristo é o Messias prometido, só por ele se obtém a salvação. As pessoas salvas observam os dez mandamentos inclusive o 4.º, celebram a Santa Ceia do Senhor, em conexão com o ato de humildade praticado por Jesus Cristo, crêem na ressurreição, que os mortos dormem até esse momento, conforme as palavras do Salvador em São João..
- A ressurreição?
- Sim, a dos justos far-se-á na segunda vinda de Cristo, a dos ímpios mil anos depois, com um grande fogo que os queimará e purificará a terra!
- Então não é cedo?...
- Infelizmente, parece. Nós fazemos o bem, temos uma missão médica, que envia facultativos a toda a parte do mundo, fundamos sanatórios, e, crendo que a educação intelectual não basta, conseguimos escolas industriais.
À semelhança do cristianismo nos tempos apostólicos o adventismo tomou um rápido incremento, elevando-se o número de crentes a 80.000, segundo as profecias sagradas.
- E a obra no Brasil?
- A obra no Brasil começou em 1893, contando hoje um número de membros leigos de 800 a 900 espalhados na maioria pelos Estados de Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, contando o seu corpo eclesiástico: três pregadores ordenados, três licenciados, dois missionários médicos, dois professores diretores de escolas missionárias e onze professores de escolas paroquiais, sete colportores evangelistas, uma revista O Arauto da Verdade e um redator.
Na sua organização outros membros ocupam cargos segundo os dons manifestados e conforme a necessidade do trabalho na obra de Deus.
Tem quinze igrejas organizadas.
O atual presidente do trabalho é um médico missionário Dr. H. F. Graf, residente em Taquari - Rio Grande do Sul - e o secretário-tesoureiro, o irmão A . B. Stauffer, residente no Distrito Federal, em Cascadura.
Há ainda uma comissão administrativa composta de sete pessoas, duas escolas missionárias, uma em Taquari no Rio Grande do Sul, outra em Brusque, Santa Catarina, e onze escolas paroquiais.
Ele levantara-se. Terminada a informação, partia como um personagem de lenda. Pegou da mala, do guarda-chuva.
- Bernardino Loureiro, quando quiser...
Apertei-lhe a mão com reconhecimento. Se há no mundo momentos fugazes de sinceridade, a presença desse varão mos tinha dado com a extrema paz que vinha da sua palavra.
- Diga-me uma coisa, uma última. E Cristo? Quando vem Cristo?
- Os sinais que deviam preceder a sua vinda, conforme Ele mesmo predisse em Mateus, cumpriram-se. É de crer que a sua vinda esteja próxima.
- Quando?
- Ainda nesta geração, talvez amanhã, quem sabe?
Tornou a apertar-me a mão, sumiu-se. Passara como o anunciador, apagara-se como um raio de sol.
A noite caíra de todo. As trevas subiam lentamente pelas paredes, e a brisa úmida, entrando pelas janelas, sacudia as folhas de papel esparsas, num tremor assustado.