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Joaquim Serra

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Quando há dias fui enterrar o meu querido Serra, vi que naquele féretro ia também uma parte da minha juventude. Logo de manhã relembrei-a toda. Enquanto a vida chamava ao combate diurno todas as suas legiões infinitas, tão alegre e indiferente, como se não acabasse de perder na véspera um dos mais robustos legionários, recolhi-me às memórias de outro tempo, fui reler algumas cartas do meu amado amigo.

Cartas íntimas e familiares, mais letras que política. As primeiras, embora velhas, eram ainda moças, daquela mocidade que ele sabia comunicar às coisas que tratava. Relê-las era conversar com o morto, cuja alma ali estava derramada no papel, tão viçosa como no primeiro dia. A cintilação do espírito era a mesma; a frase brotava e corria pela folha abaixo, como a água de um córrego, rumorosa e fresca.

Os dedos que tinham lavrado aquelas folhas de outro tempo, quando os vi depois cruzados sobre o cadáver, lívidos e hirtos, não pude deixar de os contemplar longamente, recordando as páginas públicas que trabalharam, e que ele soltou ao vento, ora com o desperdício de um engenho fértil, ora com a tenacidade de apóstolo. Versos sobre versos, prosa e mais prosa, artigos de toda casta, políticos, literários, o epigrama fino, o epíteto certo ou jovial, e, durante os últimos anos, a luta pela abolição, tudo caiu daqueles dedos infatigáveis, prestadios, tão cheios de força como de desinteresse.

A morte trouxe ao espírito de todos o contraste singular entre os méritos de Joaquim Serra e os seus destinos políticos. Se a vida política é, como a demais vida universal, uma luta em que a vitória há de caber ao mais aparelhado, aí deve estar a explicação do fenômeno. Podemos concluir então, que não bastam o talento e a dedicação, se não é que o próprio talento pode faltar, às vezes, sem dano algum para a carreira do homem. A posse de outras qualidades pode ser também negativa para os efeitos do combate. Serra possuía a virtude do sacrifício pessoal, e muito cedo a aprendeu e cumpriu, segundo o que ele próprio mandou me dizer um dia da Paraíba do Norte, em 10 de março de 1867:

Já te escrevi algumas linhas acerca da minha adiada viagem em maio. Foi mister... Não sei mesmo como se exigem sacrifícios da ordem daqueles que ultimamente se me têm exigido. Se eu contasse tudo, talvez não o acreditarias. Enfim, não te verei em maio, mas hei de ir ao Rio este ano.

Não me referiu, nem então, nem depois, outras particularidades, porque também possuía o dom de esquecer, — negativo e impróprio da vida política.

Era modesto até à reclusão absoluta. Suas idéias saíam todas endossadas por pseudônimos. Eram como moedas de ouro, sem efígie, com o próprio e único valor do metal. Daí o fenômeno observado ainda este ano. Quando chegou o dia da vitória abolicionista, todos os seus valentes companheiros de batalha citaram gloriosamente o nome de Joaquim Serra entre os discípulos da primeira hora, entre os mais estrênuos, fortes e devotados; mas a multidão não o repetiu não o conhecia. Ela, que nunca desaprendeu de aclamar e agradecer os benefícios, não sabia nada do homem que, no momento em que a nação inteira celebrava o grande ato, recolhia-se satisfeito ao seio da família. Tendo ajudado a soletrar a liberdade, Joaquim Serra ia continuar a ler o amor aos que lhe ensinavam todos os dias a consolação.

Mas eu vou além. Creio que Joaquim Serra era principalmente um artista. Amava a justiça e a liberdade, pela razão de amar também o arquitrave e a coluna, por uma necessidade de estética social. Onde outros podiam ver artigos de programa, intuitos partidários, revolução econômica, Joaquim Serra via uma retificação e um complemento; e, porque era bom e punha em tudo a sua alma inteira, pugnou pela correção da ordem pública, cheio daquela tenacidade silenciosa, se assim se pode dizer, de um escritor de todos os dias, intrépido e generoso, sem pavor e sem reproche.

Não importa, pois, que os destinos políticos de Joaquim Serra hajam desmentido dos seus méritos pessoais. A história destes últimos anos lhe dará um couto luminoso. Outrossim, recolherá mais de uma amostra daquele estilo tão dele, feito de simplicidade, e sagacidade, correntio, franco, fácil, jovial, sem afetação nem reticências. Não era o humour de Swift, que não sorri, sequer. Ao contrário, o nosso querido morto ria largamente, ria como Voltaire, com a mesma graça transparente e fina, e sem o fel de umas frases nem a vingança cruel de outras, que compõem a ironia do velho filósofo.