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Lavar a honra, matando?

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Dentre as muitas coisas engraçadas que me têm acontecido, uma delas é ter sido jurado, e mais de uma vez. Da venerável instituição, eu tenho notas que me animo qualificá-las de judiciosas e um dia, desta ou daquela maneira, hei de publicá-las. Antes de tudo, declaro que não tenho sobre o júri a opinião dos jornalistas honestíssimos, nem tampouco a dos bacharéis pedantes. Sou de opinião que ela deve ser mantida, ou por outra, voltar ao que foi. A lei, pela sua generosidade mesmo, não pode prever tais e quais casos, os aspectos particulares de tais e quais crimes; e só um tribu­nal como o júri, sem peias de praxistas, de autoridades jurídicas, etc., pode julgar com o critério muito racional e concreto da vida que nós vivemos todos os dias, desprezando o rigor abstracto da lei e os preconceitos dos juristas.

A massa dos jurados é de uma mediocridade intelectual pasmosa, mas isto não depõe contra o júri, pois nós sabemos de que força mental são a maioria dos nossos juizes togados.

A burrice nacional julga que deviam ser os formados a compor unicamente o júri. Há nisso somente burrice, e às toneladas. Nas muitas vezes em que servi no tribunal popu­lar, tive como companheiros doutores de todos os matizes. Com raras exceções, todos eles eram excepcionalmente idiotas e os mais perfeitos eram os formados em direito.

Todos eles estavam no mesmo nível mental, que o senhor Ramalho, oficial da Secretaria da Viação; que o senhor Sá, escriturário da Intendência; que o senhor Guedes, contramestre do Arsenal de Guerra. Podem objectar que esses doutores todos exerciam cargos burocráticos. É um engano. Ha­via-os que ganhavam o seu pão dentro das habilidades forne­cidas pelo canudo e eram bem tapados.

Não há país algum em que, tirando-se à sorte os nomes de doze homens, se encontrem dez de inteligentes; e o Brasil que tem os seus expoentes intelectuais no Aluísio de Castro e no Miguel Calmon, não pode fazer exceção à regra.

O júri porém não é negócio de inteligência. O que se exige de inteligência é muito pouco, está ao alcance de qual­quer. O que se exige lá é força de sentimento e firmeza de caráter, e isto não há lata doutoral, que dê. Essas consi­derações vêm ao bico da pena, ao ler que o júri mais uma vez absolveu um marido que matou a mulher, sobre o pretexto de ser ela adúltera.

Eu julguei um crime destes e foi das primeiras vezes que fui sorteado e aceito. O promotor era o doutor Cesário Alvim, que já é juiz de direito. O senhor Cesário Alvim fez uma acusação das mais veementes e perfeitas que eu assisti no meu curso de jurado. O senhor Evaristo de Morais defendeu, empregando o seu processo predileto de autores, cujos livros ele leva para o tribunal, e referir-se a documentos particulares que, da tribuna mostra aos jurados. A mediocridade de instrução e inteligência dos jurados fica sempre impressio­nada com as coisas do livro; e o doutor Evaristo sabe bem disto e nunca deixa de recorrer ao seu predileto processo de defesa.

Mas... Eu julguei. um uxoricida. Entrei no júri com reiterados pedidos de sua própria mãe, que me foi procurar por toda a parte. A minha firme opinião era condenar o tal matador conjugal. Entretanto a mãe... Durante a acusação, fiquei determinado a mandá-lo para o xilindró ... Entretanto a mãe... A defesa do doutor Evaristo de Morais não me abalou... Entretanto a mãe... Indo para a sala secreta, tomar café, o desprezo que um certo Rodrigues, campeão de réu, demonstrava por mim, mais alicerçou a minha convicção de que devia condenar aquele estúpido marido... Entretanto a mãe... Acabando os debates, Rodrigues queria lavrar a ata, sem proceder a votação dos quesitos. Protestei e disse que não a assinaria se assim procedessem. Rodrigues ficou atônito, os outros confabularam com ele. Um veio ter a mim, indagou se eu era casado, disse-lhe que não e ele concluiu: "É por isso. O senhor não sabe o que são essas coisas. Tomem nota desta.. ." Afinal cedi... A mãe... Absolvi o imbecil marido que lavou a sua honra, matando uma pobre mulher que tinha todo o direito de não amá-lo, se o amou, algum dia, e amar um outro qualquer... Eu me arrependo profundamente.

Lanterna, Rio, 28-1-1918.