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Libelo republicano

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Libelo republicano acompanhado de comentários sobre a campanha de Canudos

O povo que não tem um sentimento vivo e enérgico do seu direito,
não saberá defender a sua independência e liberdade.
(Ihering)



Esta página histórica não é o produto do interesse individual, ou da paixão partidária a incitar-nos a pena; do cenário político de nosso país nos retiramos de vez; é, porém, um tributo à verdade, onde povos e reis para não deixarem triste lembrança de sua passagem pela vida devem procurar luz e força.

Nas épocas de decadência moral o homem probo tem por dever afrontar os ímprobos. Ao abrir as veias por ordem do déspota romano Thraséas ensinava à mocidade como devia morrer quem sabe ser livre:

“Libemus Jovi Liberatori; specta, juvenis; et omen quidem dii prohibeant; ceterum in ea tempora natus es, quibus firmare animum expediat constantibus exemplis” foram as últimas palavras do grande cidadão.

“Quando os homens de bem não logram compreender e realizar os desígnios da Providência, encarregam-se disto os desonestos. Sob o açoite da necessidade e no meio da impotência geral surgem sempre almas corrompidas, e audazes, as quais como que adivinham o que pode acontecer e o que se pode tentar, e tornam-se instrumentos de um triunfo, que não lhes cabe naturalmente, mas do qual aproveitam-se para colher-lhe os frutos” escreveu Guizot. É o que está sucedendo no Brasil.

Somos respeitadores da autoridade legal e legitimamente constituída.

Acatamos as leis do país, e ainda mais as leis morais, que, por não serem escritas, não absolvem todavia os seus transgressores da reprovação geral. Se nos submetemos aos abusos, que diariamente se multiplicam entre nós, é porque não temos meios e recursos para reagir contra os seus autores; nunca, porém, abdicaremos o último dos direitos dos vencidos – o de protestar com energia contra os demolidores da pátria e da república. Deus fez-nos racional e pensante; exercemos um direito inerente à nossa natureza. Só os vermes toleram ser calcados aos pés sem protestarem.

Diremos só a verdade; mas nua e crua. Novos e mais fundos ódios acumular-se-ão sobre a nossa cabeça; haverá, porém, mérito em afrontá-los, desde que são nobres e elevados os intuitos, que nos dirigem.

Os ódios passarão, e restar-nos-há a tranqüilidade da consciência, que não abandona jamais os que cumprem um dever. “Quia non in solo pane vivil homo, sed in omni Dei verbo.” Os poderosos do dia não nos intimidam; só tememos AQUELE que nos pode matar a alma.

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A paixão da honra não envelhece, nem passa pelas vicissitudes, que afetam o corpo. O sentimento da dignidade rejuvenesce os velhos, que devem servir de exemplo à mocidade.

Quando sob o comando de Breno os gauleses se apoderaram de Roma, contemplavam tomados de admiração e espanto os senadores romanos, que se conservavam sentados em suas cadeiras curuis trajando as vistosas vestes de seu cargo no vestíbulo dos palácios, que habitavam e que deixaram abertos. Pareciam deuses ou estátuas de deuses, diz Tito Lívio; um dos invasores, porém, menos tímido, ou mais curioso, ousou puxar a longa barba branca de Marco Papírio: o indiscreto e temerário bárbaro caiu logo fulminado pelo cetro de marfim, que empunhava o velho. O sentimento da dignidade vibrara o golpe mortal. Que lhe importava a morte, contanto que morresse de pé?

A missão do homem sobre a terra não é amontoar riquezas, que lhe proporcionem gozos e prazeres, e menos tornar-se poderoso para humilhar os seus semelhantes; mas servir leal e desinteressadamente à pátria, que sintetiza a associação política, de que é membro: cumpre-lhe conquistar pela correção de sua conduta a afeição, a estima, a consideração e o respeito de seus concidadãos.

As leis do mundo moral são tão fatais, como as que regem o mundo físico.

Os que, assaltando as altas posições oficiais, as exploram sem escrúpulo em proveito próprio com detrimento social, só encontrarão em torno de si a turba de lacaios e turiferários, que os endeusam ávidos dos proventos e migalhas que lhes possam tocar. Os corruptores e corrompidos facilmente se associam; mas, além do círculo estreito, que formam, o desprezo dos homens de bem e a animadversão pública os acompanham.

Grandes criminosos podem passar impunes sobre a face da terra: a Justiça Divina, porém, os aguarda. Quanto mais esta se demorar, tanto mais grave será o castigo.

Cada um será rigorosamente julgado segundo suas obras.

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Nesta vasta região, que no passado constituía o império do Brasil, tão generosamente dotada pela Mão Divina de todas as riquezas naturais imagináveis, tudo é grande, exceto o homem!

Dar-se-á que para ensinamento e como provação nossa a Providência reunisse e amontoasse sobre as classes que se arrogaram o privilégio exclusivo de governar a nação, todas as baixezas, que pode conter o coração humano?

Salvo algumas honrosas exceções, pode-se dizer que da camada superior da sociedade brasileira desapareceram as mais elementares noções de pundonor e de brio.

Sente-se, percebe-se que a ordem moral está profundamente subvertida entre nós e sobretudo no mundo político.

Os réus de lesa-nação são elevados à categoria de heróis! E recebidos festiva e triunfalmente, quando em prisão celular deviam expiar os crimes cometidos!!

Na história da humanidade não há exemplo de nação alguma, reduzida ao grau de aviltamento, a que chegamos e suportando por tanto tempo e sem murmurar, os lobos que a devoram.

Em gravíssimas faltas deve ter incorrido o povo brasileiro para estar passando por tão dura expiação.

Dez longos anos de desastres e desgraças!…

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Digamos sem rebuço a verdade. O movimento revolucionário de 15 de Novembro não foi obra do exército e da armada.

A maioria destas corporações não o preparou; mas sim um punhado de jovens sonhadores e bravos com alguns oficiais, como eles, que entendiam que só com o regímen republicano o Brasil seria livre. Nobres eram os intuitos, que os impeliam; a monarquia cedeu sem resistir. O resto, com a nação ingênua e bestificada aceitou o fato consumado.

Os autores reais da fácil vitória daquele dia viram-se dentro em pouco cruelmente mistificados.

Da obra feita aproveitaram-se os homens de presa, cansados de viver pobres, que ascenderam às posições.

O governo provisório foi a fonte donde emanaram os males que afligem a nação e o novo regímen.

Nesse governo de triste memória dominaram soberanamente o talento sem probidade e a improbidade sem talento.

O chefe nominal desse governo não estava na altura do papel, que lhe incumbia. Os seus próprios companheiros o qualificaram de – sargentão.

Entretanto não era ávido de dinheiro e sem contestação um bravo general. Este ao menos resgatou muitas de suas faltas pela sua conduta a 23 de Novembro de 1891.

Os fracos e pusilânimes do passado tornaram-se de repente poderosos e temíveis. Iros da véspera, passaram a Cresos no dia seguinte.

Prometiam ao povo o reinado pleno da democracia, e o espoliaram de todos os direitos políticos. Garantiam e juravam que os vícios e abusos da monarquia seriam extirpados de raiz, e que a república seria justa.

Econômica, digna de respeito e amor nacionais, e deram-nos a república mercantil e do encilhamento, a mais repugnante canalhocracia, que a razão humana pode conceber.

O grande leilão da pátria começou e o escândalo foi tal, que o Tempo, jornal republicano radical, e portanto insuspeito à nova ordem de coisas, publicava em suas colunas as seguintes quadras:

“Sem cerimônias, senhores,
O Brasil está em leilão,
Qualquer banqueiro ou barão
Pode bem arrematá-lo…

“Tenho ordem de entregá-lo
A quem dinheiro mais der…
Vejam lá, quem quer? Quem quer?
Tempo não tenho a perder.

“É pensar e oferecer
Fazendo lance graúdo…
Que vendo terras e tudo,
Porém com dinheiro à vista…

“Silêncio, pois, que a lista,
Passo a ler sem mais dentença
E se alguma diferença
Nela houver, não façam caso,

“Que desta terra o atraso,
Ou sua prosperidade,
Depende da habilidade
De quem faz este pregão.

“Eis aqui a relação:
Vinte Estados excelentes
Com quinze milhões de gentes
De caráter fraco e nobre.

“Seja rico ou seja pobre,
— Rios, florestas gigantes,
— Minas de ouro e brilhantes,
Tudo vendo, meus senhores!

“Capitalistas, doutores
— O Necrotério, a Intendência;
E para que a paciência
Não me falte finalmente,

“Em leitura tão ingrata
Declaro solenemente
Que vendo o Brasil inteiro
— Do Amazonas ao Prata…!”

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Por que tudo isso aconteceu? O Provisório deixou de ser o representante dos altos interesses nacionais para ser o protetor de interesses individuais, alguns até inconfessáveis.

“O crime que nós toleramos, (escreveu notável publicista) o erro em que persistimos cientemente, todo o mal, de que por nosso silêncio, ou covardia moral nos tornamos cúmplices, tem repercussões inevitáveis no tempo e no espaço.

“Há uma justiça só para tudo. Se não sabemos reconhecê-la em tempo conveniente, se recuamos ante o dever, ou porque nos seja penoso praticá-lo, ou porque vai de encontro aos nossos interesses do momento, em roda de nós, na atmosfera que nós mesmos criamos formam-se tempestades, que ficam por muito tempo abafadas até o instante de desencadearem-se assombrosamente. As catástrofes do futuro não são as mais das vezes se não os castigos do presente.

“Deixaram o general Bonaparte confiscar em seu proveito a revolução e durante quinze anos arrastar os nossos exércitos vitoriosos pela Europa inteira. Watterloo e o desmembramento da França foram a resposta fulminante ao golpe d’Estado aclamado, e ao imenso traço de sangue, pelo qual se podia seguir as pegadas do conquistador corso.

“Deixaram mais tarde Napoleão 3º estrangular a República, que lhe confiara seus destinos. O ano terrível veio relembrar a todos quanto custa aos povos entregarem-se aos criminosos depois de ter permitido o crime, ainda mais, depois de tê-lo aceito e dele gozado.

“De ordem política, ou não, o crime é sempre crime. Nada o desculpa. Nada o justifica”.

Nem uma só das esperanças, que alimentavam os republicanos sinceros e honestos, realizou-se!

Um decênio inteiro de decepções sucessivas.

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Saldanha Marinho entristecido exclamava coram populo “Esta com certeza não era a república que eu aspirava”.

No último período de sua dolorosa existência, o marechal Deodoro confessava-se profundamente arrependido de haver concorrido para mudança do nosso regímen político, e de seus lábios alguns de seus amigos ouviram cair estas palavras: “se me fosse possível desfazer o que está feito, eu não hesitaria”!

Digam outros que “a república é isso mesmo”; nós, não.

Para nós o regímen republicano é muito diferente d’isto, que no Brasil se tem visto, e cujo desabamento ora procura impedir o atual presidente da União.

As democracias instituem-se para a utilidade, engrandecimento moral e material e prosperidade da associação política, e não para a exploração desta por um punhado de aventureiros audazes e sem consciência.

As democracias, como elas devem ser, não arruínam um povo inteiro para enriquecerem mercadores políticos.

Em que regímen democrático, regularmente organizado, um ex-ministro e senador acharia ensejo para escrever, sob sua assinatura, as linhas, que se seguem, copiadas textualmente do Tempo, de 7 de setembro de 1893?

“O miserável que entrou para o governo sem ter nada de seu, e enriqueceu-se à custa da fortuna pública, reduzindo à miséria uma nação inteira para locupletar os amigos, que lhe ofereciam palácios, tem agora a ousadia de pretender provar que correu sob minha exclusiva responsabilidade a compra do palácio Itamaraty. – Aristides Lobo.”

Não inventamos. É fácil reconhecê-lo, folheando a coleção desse jornal.

Era esse mesmo ex-ministro e senador, que já não pertence ao número dos vivos, que referindo-se à situação, que sucedeu ao Provisório, escrevia para um órgão de publicidade de S. Paulo: “Esta situação gravita para a lama; serve-se dos trapos os mais imprestáveis do império, e cerca-se de gente que muito honradamente podia habitar os nossos presídios militares.”

Chamassem-no embora — o injusto, o feroz. Há todavia uma verdade que ninguém ousará contestar: Aristides Lobo entrou pobre para o governo, e saiu como entrou.

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Nas repúblicas democráticas o povo é o soberano, de direito e de fato; a ele, a última palavra sobre os públicos negócios. A soberania nacional é um dogma inviolável e sagrado.

Entre nós o soberano nem sequer é ouvido! O dogma foi substituído pelo infame bico de pena. E chamam a isto sistema representativo!

À nação, espoliada de todos os seus direitos, impuseram a humilhante tarefa de “pagar e não bufar”, na frase pitoresca do dr. Ferreira Vianna.

Estamos reduzidos a rebanho de Panúrgio, dirigido por pastores rapaces.

Nas democracias regulares o mérito pessoal é o caminho único para chegar às honras. A obscuridade do nascimento, a pobreza e até mesmo a indigência não fazem estacar o cidadão capaz de bem servir a pátria.

A virtude política, ainda nas repúblicas aristocráticas, é condição vital.

As funções públicas e a consideração política só devem obtê-las os que aliam o talento à probidade. Sem esta, o talento, se não for inútil, será funesto à sociedade.

Entre nós, porém, a subserviência ao poder tem-se tornado o melhor título de recomendação. Daí a indiferença política, que torna este povo um povo de “vivos cadáveres”.

Entretanto a indiferença pela causa publica é o maior crime, que uma nação pode cometer. Tanto vale suicidar-se.

Aqueles, que não se preocupam do rumo que o país leva, não devem ser simplesmente considerados amigos do descanso, do repouso e do seu bem-estar. Devem ser tidos como membros inúteis, senão prejudiciais à comunhão política.

Noções elementares, comezinhas dos governos democráticos, mas no Brasil republicano completamente obliteradas!

Não se recomendando os homens pela correção de sua conduta, não admira que as mediocridades chatas e sem escrúpulos, a ignorância e a incapacidade tomem a dianteira e assaltem as altas posições, especialmente nos Estados.

Que outros títulos, porém, podem ter valor perante o árbitro supremo dos nossos destinos – o invicto e invencível bico de pena?

Um governo assim é a mais detestável máquina de opressão, que se possa imaginar. A calmaria podre, que ele consegue obter pelos recursos criminosos que emprega, é pior e mais temerosa, do que todos os excessos da revolução.

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Os povos fortes e enérgicos castigam com as armas os que transformam o poder público em instrumento de tirania. Os fracos servem-se do ridículo, que também mata pelo desprezo.

Na impossibilidade de recorrer à força, o brasileiro vê-se na triste contingência de representar de Heráclito, ou de Demócrito.

Encontramos no Diário Mercantil de Porto Alegre os seguintes versos, que bem demonstram em que conta é tido por toda parte o regímen político, que nos felicita.

UM POR TODOS

“Perguntou Deus quem fizera
Esta república assim:
Eu não sei quem disse que era
O Benjamin.

“Foi o Benjamin chamado;
Mas por modéstia ou decoro,
Disse: antes fosse escutado
O Deodoro.

“Foi o Deodoro… e querendo
Não laborar num engano
Disse: isto lá… só sabendo
Do Floriano.

“Lá vai o Floriano agora
Prestar contas do que fez;
E assim se foram embora
Todos três.

“O atual presidente
É Prudente de Moraes…
Uma pergunta prudente:
Demorais?

A verdade histórica, porém, impõe-nos um dever. O período — Floriano — foi sombrio. A guerra civil com o seu cortejo de horrores devastou os Estados do Sul. Há manchas de sangue no quadro do seu governo; não as há, porém, de lama.

Entre as sombras deste quadro destaca-se ereta a figura do marechal, defendendo impertérrito o princípio da autoridade, e mostrando à nação as mãos perfeitamente limpas.

Cousas, em aparência mínimas, servem muitas vezes para dar à medida do caráter de um homem.

Floriano, arbitrária e ilegalmente, fez mil e muitos alferes do exército, mas seu filho ficou praça de pret.

Exemplo, que não souberam imitar os presidentes dos dois ramos do poder legislativo da Bahia.

Nas respectivas secretarias um acomoda o filho: o outro, o genro e sobrinho. Terra infeliz! Em que as rendas públicas tornaram-se propriedade de alguns indivíduos…

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Em política uma falta é mais que um crime, dizia Talleyrand.

O povo, por mais ignorante, que o suponham, é sempre justo em seus juízos. Quem já apontou o nome do ilustre Sr. Campos Salles entre os mercadores políticos? A nação, porém, sabe que foi S. Exª um dos dous autores do famoso regulamento eleitoral, que o Sr. Cesário Alvim subscreveu.

Não justificam, nem mesmo atenuam esse erro político os móveis, que o ditaram.

A política é também uma religião, em que os apóstolos devem ter fé absoluta na doutrina, que pregam.

A gente do Provisório não tinha fé na obra de 15 de Novembro.

“Como náufragos em desespero, lançamos mão de tal meio, que nos afigurava a tábua única de salvação possível contra a derrota nas urnas, que víamos iminente” (Textuais). Naquela emergência faltou ao atual presidente da República a intuição do futuro. Aquele regulamento gerou o bico da pena: este trouxe o descrédito das instituições, e trará o desabamento delas, se não acudirem a tempo.

É mister voltarmos aos moldes eleitorais da lei de 9 de janeiro de 1881.

E. Vacherot, em seu notável Estudo sobre a Democracia, dá ao sufrágio universal a justa medida de seu valor, quando diz: “O sufrágio universal é impraticável em seu pleno e livre exercício, enquanto a educação política do povo não estiver feita. Um governo despótico, ou ditatorial pode empregá-lo aos seus fins, dirigindo-o com o favor do silêncio da imprensa independente e o ruído da imprensa servil, ou devotada.”

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O honrado presidente da República, como todos os brasileiros de coração está sentindo e sofrendo as conseqüências fatais desse erro funesto.

Como não estará a pesar-lhe na consciência a falta cometida? A semente daninha, que ele ajudou a plantar, tem produzido, e continua a produzir seus frutos maléficos.

A história não perdoa o interesse sem grandeza, nem o culto à liberdade sem a honra e a fé, que a sublimam.

Pôncio Pilatos lavou as mãos ao entregar o manso Nazareno à sanha cruel dos judeus. Naqueles tempos a justiça não tinha santuários, e o delegado de Tibério nunca fora apóstolo da liberdade, que deve ter sempre por limite a justiça.

A cobardia de Pilatos tem atravessado e atravessará os séculos.

A liberdade tem também o seu pudor; não a mancheis, porque ela perderá a sua vitalidade e encanto.

Os interesses que então surgem a combater-se, não ao influxo do ideal, que é e há de ser sempre a força suprema d’alma nas labutações de sua passagem sobre a terra, mas à sombra da tirania matreira e cúpida, rebaixarão os homens, que, de cidadãos, se tornarão escravos.

É o que o mundo pasmo está a presenciar aqui.

Um vasto país fadado a grandes destinos, mas empobrecido e aviltado: poderes políticos que não compreendem, ou não querem compreender a sua missão; autoridades, que não se respeitam, nem respeitam a lei; juizes, que se enfileiram entre os pretorianos dos dominadores do dia; legisladores, que mentem à consciência, porque eles próprios são o produto da mentira; povoações que jogam o bicho, e submetem-se resignadas àqueles mesmos, que as condenam ao sofrimento e à miséria!

Como nós, já o nobre presidente da República trabalha e clama pela verdade eleitoral. Há realmente mérito em reconhecer e confessar a falta cometida; isto, porém, não basta; cumpre repará-la empregando para chegar ao fim todos os meios humanamente possíveis.

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A heróica e infeliz Espanha acaba de perder o maior e o mais eloqüente de seus oradores. O mundo civilizado lamentou com razão o passamento de E. Castellar: era um republicano sem jaça. Para republicanos sinceros a sua autoridade moral será sempre de inestimável valor. Fale por nós o grande morto:

“Perturbai o sufrágio por meio do poder público destinado somente a obedecer-lhe; desconcertai-o com os manejos da administração, destinada apenas a garanti-lo; corrompei-o com manobras, com subornos, com violências e escândalos, e os povos renegarão uma ordem, que é mentida, uma autoridade que é imposta, um governo que é arbitrário, umas instituições, que são sua cadeia e calabouço; desenganar-se-ão dos grandes exercícios da vida pública, e espreitarão ansiosos o momento em que possam responder aos excessos da arbitrariedade com o golpe das revoluções.

“Não conheço, Srs., demagogo mais furioso, conspirador de mais êxito, revolucionário maior do que um ministro do governo consagrado ao ímprobo trabalho, que se chama fazer eleições, e que, na realidade, consiste em desfazer a vontade nacional. A um governo assim eu não chamaria o centro da administração pública; chamá-lo-ia o viveiro, onde se cultivam as raízes das futuras barricadas, o antro, onde guardam-se as tempestades e os ventos de todos os revolucionários.

“O ato mais transcendente da vida pública é o das eleições. Os governos representativos ou não são cousa alguma, ou são governos de eleição. Quando este ato se perturba, com ele perturba-se a sociedade inteira, e os povos passam da anarquia à ditadura, e da ditadura à anarquia, como os doentes de febres do frio excessivo ao calor também excessivo.”

Não há negá-lo. Em matéria de corrupção eleitoral nenhum país chegou ainda à culminância, que nós já atingimos.

Cumpre estacar à borda do abismo, que ameaça devorar a república.

Se as urnas não se libertarem da tremenda corrupção que as avassala, quaisquer que sejam os homens investidos do poder, as instituições ruirão por falta de base.

Como a herança de Alexandre, os cargos eletivos só aos mais dignos devem caber.

A cadeira, que o Sr. Campos Salles ocupa hoje, não pode, não deve ficar, por honra desta nação, ao alcance de qualquer aventureiro audaz e sem escrúpulos, que cogite em empolgá-la.

Donde se levanta a tempestade? Todos o sentem; todos o percebem. É mister conjurá-la.

Solus reipublicæ suprema lex est.

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A situação da quase totalidade dos Estados da União é deplorável: finanças avariadas, e seus habitantes divididos em vencedores e vencidos. Estes têm sede e fome de justiça. Os vencedores negam-lhes pão, água, ar e luz.

Nenhum, porém, tão infeliz e aviltado, como a Bahia. A terra de tão nobres gloriosas tradições, a progenitora dos Cairus, Caravelas, Pedra Branca, S. Lourenço, Zacarias, Rio Branco, Nabuco, Cotegipe, Saraiva, Dantas e outros varões ilustres, que honraram a pátria, está reduzida a — anima vilis — sobre a qual todas as experimentações são impunementes permitidas.

Já era muito termos passado pela vergonha de ver organizado o poder legislativo do Estado pelo sabre da polícia, atentado sem nome contra a forma federativa da república, diante do qual os poderes da União cruzaram os braços com a mais criminosa indiferença.

Políticos pigmeus que ignoram que o primeiro dever do verdadeiro estadista é jamais subordinar a conveniências de ocasião os direitos sagrados da sociedade e da justiça!

Não há mal que não nos tenha flagelado – a fome, a peste e a guerra, e sobre todos eles, um governo perverso, corruptor e corrompido.

Sob o pretexto de pacificação, o solo do sertão encharcou-se de sangue. Essa intitulada pacificação fonte de lucros inconfessáveis para alguns, outra cousa não foi, senão o extermínio dos que ainda ousavam resistir às ordens imperiosas do dono da fazenda e seus feitores.

Os criminosos reais ficaram em sua maioria impunes, e os jornais da terra noticiaram que muitos deles foram incluídos no 5º corpo de polícia, que se organizara para a campanha de Canudos.

Só nestes tempos calamitosos e sob um governo de tal jaez se arrancam das cadeias públicas criminosos para fazê-los envergar a farda de mantenedores da ordem e defensores das instituições!

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A guerra de Canudos foi o requinte da perversidade humana.

O ódio a dous antigos correligionários, depois adversários, que ousavam ainda enfrentar o dominador e a faina ingrata de conquistar, fosse como fosse, um distrito eleitoral, em que esses homens exerciam e ainda exercem influência incontestável, foram os móveis, que a provocaram.

Não há necessidade de declinar-lhes os nomes. A Bahia os conhece bem.

Pelos meios ordinários essa conquista era impossível. O governo da Bahia só crê no direito da força. Espalhar a polícia por aquelas paragens, prendendo, intimidando, devastando fazendas e criações, como já fizera nos sertões do Oeste com a famigerada pacificação, pareceu-lhe eficaz.

Era ainda possível que esses dous adversários e inimigos resistissem defendendo as suas vidas e propriedades e as de seus amigos. Seria azado o ensejo para suprimi-los. Canudos foi apenas o pretexto. É fácil reconhecê-lo.

No princípio era uma questão, que seria resolvida com cem praças apenas da brigada policial.

Recorra-se aos telegramas expedidos pelo governador da Bahia ao governo federal.

A justiça estadual não se ocupava dos habitantes daquele arraial. Contra eles não havia instaurado processo algum. Nos cartórios do Estado nenhum deles tinha o seu nome no rol dos culpados.

Nada de extraordinário se passava com relação a Antonio Conselheiro e aqueles, que o acompanhavam.

Ninguém ignora que gênero de vida levavam os canudenses: plantavam, colhiam, criavam, edificavam e rezavam.

Rudes, ignorantes, fanáticos talvez pelo seu chefe, que reputavam santo, não se preocupavam absolutamente de política.

Antonio Conselheiro porém confessava-se monarquista. Era seu direito, direito sagrado, que ninguém podia contestar em um regímen republicano democrático. Não há ato algum por sua parte ou dos seus que fizesse ao menos presumir que ele tentasse contra o governo da República.

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Somos justos. Pela vasta celebração do grande estadista que tanto tem felicitado a Bahia, nunca passou a idéia de que seu plano de conquista eleitoral tivesse as conseqüências que teve.

A 1ª expedição policial partiu para o seu destino e voltou espavorida.

Preparou-se segunda e esta comandada já por um oficial de exército: teve sorte igual.

Exercia então a presidência da República o vice-presidente, nesta época ainda criatura e protegido do governador do Estado. A todas as exigências deste subscreveu o chefe do poder executivo federal.

Organizou-se 3ª expedição, composta toda de praças de linha em número talvez de quatrocentas, bem armadas e municiadas e até com a artilharia ao mando do major Febrônio de Brito. Este inteligente e bravo oficial recebeu ordem de seguir para Canudos, e cumpriu sem hesitações.

Rudes e ignorantes, os Canudenses todavia previam a sorte que os esperava, se cruzassem os braços. Não esperaram o ataque desta coluna. Vieram encontrá-la.

Ao penetrar nas gargantas da serra do Cambaio, próximo à Lagoa Vermelha, Febrônio e os seus comandados viram-se inesperadamente cercados por inumerável multidão de Canudenses. Os soldados brasileiros, formados em quadrado bateram-se como leões, cerca de três horas, causando perdas enormes aos atacantes; mas nem por isto diminuía a violência do ataque.

As munições esgotavam-se. Impossível seria àquele punhado de bravos resistir por mais tempo ao número.

O valente oficial resolveu retirar, e esta operação realizou-a ele com tanta proficiência, que não deixou um só ferido, uma arma sequer no campo da luta.

O combate da Lagoa Vermelha e a retirada – Febrônio são talvez os dous feitos d’armas mais notáveis dessa tremenda campanha. Sem contestação eles dão a medida do mérito militar desse oficial superior do nosso exército.

As grandes perdas, que nessa ocasião sofreram os Canudenses, fizeram-lhes compreender que era indispensável mudar de tática ante as forças federais sempre bem armadas e municiadas, ao passo que eles não dispunham de iguais recursos.

Por seu lado, Antonio Conselheiro incutia-lhes no espírito que tinha poderes para garantir a salvação eterna aos que morressem por arma de fogo, mas não aos que perecessem por ferro frio.

Daí duas conseqüências: — as guerrilhas, ou, diremos melhor, a caçada de homens, e o horror pela degolação, gênero único de morte, que temiam.

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Continuava em exercício o Vice-Presidente.

O governo estadual, exacerbado pelo insucesso de suas tentativas, fez-lhe novas exigências. A criatura submeteu-se ainda uma vez ao criador.

Quarta expedição organizou-se no Rio de Janeiro, não mais de algumas centenas de praças, mas uma brigada completa com as três armas – infantaria, cavalaria e artilharia.

Escolheu-se a dedo o comandante desta força – o temerário, intrépido e temível Coronel Moreira César.

O governo do Estado exultou! Tratou logo de preparar festiva recepção ao novo chefe, descurando todavia dos meios de desembarque para as forças de seu comando.

Diante dessa luzida coluna de bravos sob as ordens do tal chefe, aos olhos do mundo oficial o resultado parecia certo, e seguro.

A brigada seguiu o seu destino.

Do meio do caminho o chefe dela telegrafava ao governador: “Só tenho um receio: não encontrar quem combater”.

A folha oficial anunciava urbe et orbe que – “desta vez o que o sabre, o fuzil, e o canhão não fizessem fá-lo-ão o fogo e o incêndio!”

Moreira César foi de marcha batida e sem disparar um tiro até Canudos. Aquelas paragens pareciam abandonadas. Dir-se-ia que o só terror de seu nome dispersara toda aquela gente. E foi até o princípio do arraial, convencido talvez de que só teria o trabalho de arrasá-lo.

E quando, tranqüilo, com o seu binóculo examinava e estudava a topografia do lugar, inesperadamente feriu-o uma bala perdida. O ferimento foi mortal.

A notícia do desastroso acontecimento espalhou-se com a rapidez do raio. O pânico apoderou-se da coluna expedicionária e ela dispersou-se abandonando armas, munições e bagagens, de que se apossaram os Canudenses. Eis a origem dos recursos bélicos, de que dispuseram depois.

“Não há mal absoluto” já o disse alguém.

Se o coronel Moreira César não tivesse sido a primeira vítima, e penetrasse na praça com todas as forças de seu comando para arrasá-la, como provavelmente era a sua intenção, ninguém teria escapado; talvez não ficasse quem nos trouxesse notícia do desastre.

Entretanto, ao passo que nas regiões oficiais rejubilavam-se previamente pelo êxito feliz desta expedição, e elemento popular, como se um espírito profético o inspirasse, predizia e anunciava o fim que teve!

Não faltou mesmo quem o atribuísse ao dedo da Providência.

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Enquanto estes fatos se passavam na Bahia, o presidente efetivo reassumia o exercício de seu cargo. O “santo varão”, no dizer de um dos órgãos de publicidade do Rio de Janeiro, não possuía o talento brilhante do seu substituto; não era, como ele, uma sumidade médica e cirúrgica; mas um bacharel formado em ciências jurídicas e sociais e porventura a maior notabilidade forense de Piracicaba. Em assuntos políticos e administrativos, porém, devia mostrar-se menos desorientado do que o ilustre professor na Faculdade de Medicina da Bahia.

Acresce que não era criatura do governador desse Estado, e nem na dependência deste se achava.

Além disto cumpria-lhe pesar a responsabilidade do poder, de que se achava investido.

O mais rudimentar senso comum impelia-o a inquirir rigorosamente de quanto na Bahia se passava.

Por que essa guerra a Canudos? Eram criminosos e estavam processados e pronunciados os habitantes daquela localidade?

No caso afirmativo, ao poder estadual competia só providenciar para a captura, julgamento e punição deles, segundo as nossas leis criminais. Esta tarefa não podia caber ao exército, criado para manter as instituições, quando atacadas, e defender a honra nacional, se a ultrajam.

Não eram criminosos? Neste caso, se a União tivesse de intervir, deveria somente para proteger os perseguidos contra os perseguidores.

A Constituição Federal não faz distinções: todos os brasileiros devem ser garantidos em seus direitos naturais, civis e políticos.

A associação política, quando cria o poder, e cada membro despe-se de uma parte de suas forças individuais para formar a força coletiva, de que o investe e que o torna forte, é para que ele defenda a comunhão inteira, e cada um de seus membros quando atacado seja por quem for.

O direito não tem dois pesos, nem duas medidas, e a justiça distribui-se com atenção a posições oficiais.

Era mais que anormal o que se passava na Bahia: uma povoação de mais de vinte mil almas defendia – unguibus et rostris – o seu direito de vida e propriedade contra um governo, audaz, prepotente e sem a menor noção de seus deveres.

O governo da União não se deu ao trabalho de inquirir de cousa alguma, esquecendo até o que devia à humanidade e às luzes do século.

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O Sr. Prudente de Moraes, não obstante a desinteligência, em que se achava com o vice-presidente, encampou in totum a política deste para a Bahia e tornou-se co-réu do monstruoso atentado, que a posteridade registrará como mais negro borrão da nossa história.

O presidente efetivo esqueceu-se de que o dever e a honra de seu cargo impunham-lhe não subordinar aos interesses de uma politicagem baixa, vil e cruel os direitos sagrados da justiça e da humanidade.

Os que sofrem de epilepsia experimentam certas sensações, que lhes prenunciam o ataque: os médicos chamam a isso aura epiléptica.

O Sr. Presidente da República teve também a sua aura, mas belicosa.

Aquela natureza fria e biliosa, que contemplara com impassibilidade marmórea a violação flagrante das leis e princípios republicanos na Bahia, onde a força policial substituiu a soberania popular e organizou o poder legislativo do Estado, sentiu-se então tomada de indignação ante as ocorrências de Canudos; e hei-la atarefada em organizar a 5º expedição contra os injustamente perseguidos.

Há no homem instintos maus, que permanecem adormecidos, e se revelam quando menos se espera. É que através do espaço existem afinidades, que aproximam os perversos.

Desta vez não se preparou um batalhão, uma brigada, ou uma divisão. Organizou-se um corpo de exército, comandado por um general, tendo às suas ordens outros generais.

Reuniu-se o que ainda restava do desorganizado exército brasileiro para ser sacrificado no açougue de Canudos.

A estas forças vieram juntar-se os corpos policiais do Alto Amazonas, Pará e S. Paulo.

Sem desconhecermos as boas intenções dos chefes desses Estados, observaremos todavia que eles exorbitaram de suas atribuições. Não se tratava de uma questão nacional, em que todo o país tem o dever de tomar parte: eles não podiam desviar esses corpos do destino que a lei lhes dera.

Foi no embarque de alguns dos batalhões de linha, que partiam para a Bahia, que o primeiro magistrado de uma nação cristã e civilizada, no fim do século das luzes, proferiu esse famoso discurso, que pena é não fique ad perpetuam rei memoriam, no qual recomendava aos soldados: —“não fique pedra sobre pedra!”

O resultado final demonstrou que a feroz recomendação foi fielmente observada.

O Sr. Prudente de Moraes na sua mocidade entregou-se apenas ao estudo dos preparatórios e da jurisprudência; homem feito, a sua profissão de advogado não lhe permitia ocupar-se de literatura; nas posições políticas e administrativas, que tem ocupado, faltava-lhe tempo para empregá-lo em tal futilidade; é possível, porém, que tenha alguma vez ouvido falar de Shakespeare e de seu drama — Macbett.

Pois bem: na cena 2ª do 2º ato desse drama o autor põe na boca do protagonista frases, que muito bem lhe podem ser aplicadas: quem nos assegura que uma voz semelhante à que ouvira

Macbett não lhe tenha mais de uma vez ferido os ouvidos?… “Prudente, não mais dormirás!” A consciência do ilustre paulista ainda não está calejada pelo hábito do crime, como a de seu co-réu.

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O ardor belicoso do chefe da União não arrefeceu.

O ministro da guerra foi mandado para a Bahia, a fim de inspecionar todos os serviços e providenciar para que nada faltasse ao exército expedicionário.

Como preencheu a comissão, di-lo-emos depois.

Pelo seu lado o governo do Estado, que só crê e confia no direito da força, sob o pretexto de auxiliar o exército federal, tratou de organizar um 5º corpo de polícia. Quem pode devassar os arcanos do futuro? A Bahia deve ter também o seu exército.

Já um chefe de polícia da terra, em seu relatório ao governador, havia afirmado que “graças ao número, disciplina e instrução da força policial, o governo do Estado achava-se habilitado a repelir qualquer invasão dos poderes federais nos negócios da Bahia”.

A campanha de Canudos tornou-se para alguns rica mina; não nos referimos aos fornecedores, raça que não escrupuliza nos meios de aumentar os seus cabedais; mas aos que por sua posição oficial não deviam haurir proventos das desgraças públicas.

O marechal ministro, do desempenho do encargo, que lhe fora confiado, desembarcou na terra de Cabral, que achou encantadora, e hospedou-se com o governador, que o tratou fidalgamente, rezam as crônicas. Pudera não.

O exército expedicionário fora dividido em duas colunas: uma viria do norte em direção a

Canudos; a outra seguiria da capital da Bahia para o mesmo ponto.

Como esta seguia, só Deus o sabe, e como chegou ao seu destino podem dizê-lo os soldados.

A 1ª coluna foi em sua marcha vivamente atacada.

A perícia do general, que a comandava e a bravura dos comandados livrou-a dos perigos, que a ameaçaram, chegando a Favelas no momento psicológico de salvar a coluna às ordens do general em chefe, que se achava prestes a ser esmagada pelos Canudenses.

O ministro da guerra chegou até Monte Santo, donde não passou. Não valia a pena ir ao teatro da luta. A travessia não era segura.

Por parte do general em chefe do exército expedicionário, foram-lhe nessa vila entregues alguns prisioneiros em número limitadíssimo.

Ao recebê-los, recomendou ao oficial que os conduzira não se esquecesse de dizer ao general que ele bem sabia que ele ministro não tinha onde guardar prisioneiros!

“Para o bom entendedor, meia palavra.”

O general Arthur Oscar compreendeu bem o alcance da resposta do seu superior hierárquico.

A sentença de Canudos estava irrevogavelmente lavrada pelo executivo federal e estadual. Não havia apelação possível.

Aí estão para prová-lo as palavras, que propositalmente fizemos imprimir em letra preta.

Magnânimo e humanitário terceto! Como o Juiz de paz da roça, aqueles três fatores formidáveis de tamanhas crueldades e desgraças, sem a menor cerimônia, revogavam o Estatuto fundamental da república, esquecidos ainda os preceitos do Divino Mestre, cuja religião professamos.

Vem de molde citar aqui, com endereço a quem competir a resposta de um general francês ao seu soberano: Depois do morticínio de S. Bartolomeu, Carlos 9º escreveu a todos os governadores das províncias ordenando-lhes o extermínio dos huguenotes. O visconde d’Ortes que comandava em Bayonna, respondeu ao rei: “Sire, entre os bons cidadãos, bravos soldados, não encontrei um só carrasco; assim eles e eu suplicamos a V. Majestade a graça de empregar nossos braços e nossas vidas com coisas praticáveis.”

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Na última fase da campanha de Canudos não há, no rigor do termo, operação militar, ou feito d’armas digno de nota especial.

Da salvação da coluna Oscar pela coluna Savage já falamos.

O 5º corpo de polícia da Bahia, que já havia abandonado as munições e bagagens, corria iminente risco de ser exterminado pelos Canudenses, que o fuzilavam vigorosamente. O coronel Serra

Martins com a força de seu comando salvou-o. Os pormenores deste episódio, o mesmo coronel que felizmente ainda vive, melhor do que nós, poderá referir.

Nessa campanha querem passar por heróis indivíduos cujo mérito consistiu em levar para a caatinga os desgraçados que caíam prisioneiros.

Nem todos compreenderão bem estas palavras. Os do Rio Grande do Sul explicá-las-ão porém com facilidade desde que dissermos: levar para a caatinga equivale a dizer – fazer o papel de João Francisco.

A lição — Febrônio — obrigara os Canudenses a mudarem de tática. A 5ª expedição, pode-se dizer, não encontrou com quem bater-se. Nesse período ninguém viu jamais um grupo ao menos de vinte conselheiristas reunidos; era porém uma luta infernal com fantasmas, por assim dizer, invisíveis.

As balas saídas, não se sabia d’onde, feriam certeiras o ponto alvejado.

Grandes e numerosas baixas sofreu o exército. As suas fileiras, de dia em dia, rareavam. Bravos soldados, valentes e distintos oficiais ali pereciam sem glória para os seus nomes e sem proveito para a pátria.

O general em chefe mostrara-se cauteloso; até no local em que assentou o seu quartel-general, demonstrou a sua prudência.

Imitar Caxias, Osório, Porto Alegre, Itaparica, Floriano, Deodoro, Moreira César, Thompson Flores e outros não é para todos. Acresce que um chefe deve resguardar-se sempre do perigo.

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Na linguagem humana não há termos bastante enérgicos, em que se possa narrar os sofrimentos, as privações e misérias, por que passaram soldados e oficiais durante os longos meses, que ainda durou a campanha.

Nenhum exército europeu suportaria por quinze dias o que sofreu o nosso por tanto tempo e com resignação, paciência e coragem acima de todo o elogio. Em cinco anos, que durou a guerra do Paraguai, nem um só dia viu-se cousa semelhante. Em duas palavras – às forças expedicionárias faltou tudo!

Tal foi o resultado da comissão do marechal-ministro da guerra. A sua previdência, solicitude e inspeção apenas conseguiram produzir estes frutos amargos. Satis autem constat que ao general em chefe jamais faltou cousa alguma. Prudente e previdente.

Para a gente de Canudos as cousas não corriam melhor: aos sitiados escasseavam-se os víveres: as munições de guerra obtidas da coluna Moreira César esgotavam-se: aos horrores da fome veio juntar-se o tormento intolerável da sede.

Aproximava-se a hora em que a cruel sentença teria plena e cabal execução.

O executor e seus auxiliares já estavam afeitos ao nobre ofício.

A levada para a caatinga e a gravata vermelha já estavam nos hábitos de alguns.

Os conselheiristas, rudes, ignorantes e fanatizados não tinham medo do fuzilamento; encaravam-no impávidos e com soberano desprezo: era para eles a salvação eterna; o degolamento porém inspirava-lhes profundo terror; por isto mesmo foi proferido este processo de supliciá-los.

Corações compassivos… almas cristãs!

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Canudos tinha chegado à última extremidade; impossível era aos sitiados a resistência por mais tempo. O espetáculo, que oferecia o arraial, não se descreve.

Em tão cruel emergência teve lugar o trágico episódio – Beatinho. Quem era esse homem? Não importa sabê-lo.

Era porém uma alma caridosa, que procurava salvar muitos de seus companheiros de infortúnio; na religião, que professava, encontrou a força precisa para desempenhar a nobilíssima missão, que tomou aos ombros.

Saiu sozinho do arraial e apresentou-se diante das linhas dos sitiadores declarando-lhes que era-lhe indispensável falar ao general em chefe. Dir-se-ia que aquela gente adivinhava as humanitárias intenções, que o animavam. Deixaram-no passar incólume. E consignamos aqui o fato por honra da farda brasileira.

Chegado à presença do general Arthur Oscar expôs-lhe o fim a que ia: “venho declarar-vos que grande número de meus companheiros estão dispostos a render-se, contanto que V. Ex. lhes garanta a vida” foram a suma de suas palavras.

“Sob minha palavra de honra prometo que as suas vidas serão respeitadas: podem vir tranqüilos.” Responde-lhe o chefe das forças legais.

E Beatinho voltou ao arraial; reuniu um grupo superior a mil indivíduos, composto de mulheres, crianças, velhos, feridos, enfermos, e horas depois com toda essa gente, que até às pedras inspirava compaixão, foi ter ao quartel general. Estavam todos profundamente convencidos de que o compromisso de honra de um general brasileiro seria satisfeito.

Horresco referens! O que se passou depois, não se qualifica.

A narração do canibalismo sem nome exercido contra esses infelizes nós a tivemos da fonte a mais insuspeita e pura, que se pode desejar – da mocidade acadêmica, que foi ao teatro da luta prestar os seus serviços médicos e cirúrgicos aos enfermos e feridos.

A mocidade acadêmica não calunia ninguém.

Em seu espírito elevado não penetram nem os interesses inconfessáveis, nem as paixões ardentes dos partidos.

Para nós, que escrevemos estas linhas, qualquer outros testemunho é dispensável.

Nos anais da história, ainda nos tempos de maior barbaria, não se registra atrocidade semelhante.

Beatinho e todos os infelizes, que o acompanharam, sem exceção de um só, foram friamente degolados!!

Atrocidades tais não se descrevem, nem se comentam. O opróbrio não recai somente em seus autores: reflete sobre a nação inteira.

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É possível porém que haja algum espírito cético, a quem repugne crer em semelhante monstruosidade. A este e outros de quilate igual recomendamos a leitura atenta do documento histórico que abaixo inserimos.

A Gazeta de Notícias — do Rio de Janeiro — tinha no teatro de luta o seu correspondente especial — o Coronel Favillo Nunes. No dia 26 de Outubro de 1897 e no número 301 desse jornal foi estampado a carta infra, que lhe dirigiu o seu correspondente imediatamente ao arrasamento e incêndio da povoação e ao extermínio de seus habitantes.

“Canudos 8 de Outubro de 1897. pretendo seguir hoje para Monte Santo, porque a permanência aqui é insuportável em vista da situação de Canudos, transformado em vastíssimo cemitério com milhares de cadáveres sepultados, outros milhares apenas mal cobertos de terra e o pior de tudo, outros milhares completamente insepultos.

“Não se pode dar um passo sem se tropeçar em uma perna, um braço, um crânio, um corpo inteiro, outro mutilado, um monte de cadáveres, aqui meio queimados, outro ali ainda fumaçando, outro adiante completamente putrefato, disforme, e no meio de tudo, o incêndio, uma atmosfera cálida e impregnada de miasmas pútridos. Por toda a parte o cheiro horripilante de carne humana assada nos braseiros das casas incendiadas, cinco mil e duzentas casas em labaredas!

“Já não se ouvem as lamentações das mulheres e das crianças, nem as ameaças canalhas dos bandidos. A morte pela fome, pela bala, pela sede e pelo incêndio emudeceu a todos, substituindo as lamúrias do banditismo pelos alegres sons dos hinos da vitória.

“Canudos não existe mais! Para a nossa infelicidade basta a sua eterna memória, que mais parece um pesadelo.

“Ali deixamos entes queridos, cidadãos prestáveis, valentes soldados, denodados servidores de quem a República ainda poderia precisar para a sua defesa e integridade. Enfim está tudo acabado. Antes de partir porém deste lugar maldito, quero informar aos leitores com mais alguma minúcia os acontecimentos do dia 5, embora já o tenha feito por telegrama. Quero ainda escrever sobre as ruínas de Canudos.

“Depois do assalto do dia 1º, em que perdemos 544 bravos, entre mortos e feridos, tendo destes falecido muitos depois, compreendi que a campanha estava terminada, dependendo o seu último momento de um acaso, do imprevisto.

“Assisti a todos os combates no meio deles, percorri todas as linhas, ora de dia, ora de noite, detendo-me aqui ou ali, com este ou aquele batalhão, quando o fogo era mais violento, tudo vendo e de tudo me informando.

“O assalto de 1º, embora nos desse prejuízos sensíveis e a perda de oficiais distintíssimos, foi o início da vitória, porque o inimigo, que até então, embora sitiado, se servia das aguadas do Vasa-Barris, perdeu-as nesse dia, e à sede não se resiste.

“É preciso explicar que o rio Vasa-Barris é completamente seco, existindo apenas uma pequena aguada, do lado da face direita da igreja nova, no sopé de uma grande rocha de pedra ferruginosa; mas, em qualquer lugar de seu leito, cavando-se 4 ou 6 palmos na areia, encontra-se água, que é a de que todos nós nos servimos.

“Quando se quer tomar um banho, ou aliás, quando se pode tomar um banho, leva-se além dos acessórios conhecidos, mais uma enxada, pá ou cavadeira, e aí está o Vasa-Barris para nos fornecer um banheiro esplêndido, tão esplêndido quanto se pode desejar em Canudos.

“Falemos, porém, da nossa vitória.

“Já disse aos leitores o que houve até o dia 4, em que o Beatinho, fac totum de Antonio Conselheiro, com a sua bandeira branca, parlamentou com o general em chefe, do que resultou a entrega de mais de mil jagunços de todas as idades e sexos, porém quase todos gravemente feridos, e a traição que nos fizeram na tarde daquele dia, fuzilando canalhamente os nossos soldados, como bandidos que eram.

“Durante a noite de 4 para 5 o inimigo tentou várias vezes romper as nossas linhas, cessando apenas a fuzilaria por momentos, uma ou outra vez.

“Na manhã de 5, tendo cessado o fogo às 5 e 50 minutos, a jagunçada começou a fazer entrega de mulheres e crianças, em número superior a cem, algumas feridas, mais ou menos gravemente, porém todas famintas, sedentas, esquálidas, verdadeiras múmias ambulantes, caminhando com dificuldade, amparadas por soldados ou oficiais, que mesmo no meio do combate sabem mostrar a generosidade de um coração brasileiro[1]

“O alferes Mangabeira, do 25 ou do 30, um destemido, cuja bravura tem tanta impetuosidade que chega a parecer doidice, ia e vinha trazendo duas mulheres pelas mãos, duas crianças nos ombros, outras pela frente andando com dificuldade, e tornava ao antro dos inimigos, intimando-os a que se entregassem, e eles, acocorados nos fossos, respondiam sempre que prefeririam morrer, mas não se entregavam.

“A situação era incontestavelmente desesperadora para o inimigo, a vitória era certa para nós. Isto compreendiam todos, previa-se o desenlace da luta, pressentiam-se as últimas agonias dos malvados, mas eles não se entregavam e era necessário exterminá-lo.

“Por maior que fosse o desejo de se pouparem vidas, às 9 horas da manhã convenceram-se todos que era impossível.

“O inimigo estava inabalável; os soldados, sem abandonarem as suas posições, já não se resguardavam nas pequenas trincheiras, estavam uns por cima delas, outros por dentro, por fora, ninguém mais temia o inimigo, não se dava importância ao perigo.

“O bravo major Frederico Lisboa de Mára, com o heróico 4º de infantaria do seu comando, ocupava a igreja nova, tendo até linha de atiradores no alto dos andaimes interiores, cujos soldados há 4 dias faziam fogo pelas seteiras e pequenas janelas superiores e inferiores do edifício, sempre a cavaleiro do inimigo.

“Havia na linha, junto à igreja, dous coronéis comandantes de brigada, Medeiros e Sampaio.[2] Este é de opinião que se deixe o inimigo render-se ou morrer pela sede, aquele quer precipitar os acontecimentos. O coronel Sampaio, sentindo-se cansado e doente, retirou-se para a Fazenda Velha; ao meio dia mais ou menos, chega o tenente José Antonio Dourado, do 22º, ajudante de ordens do general Arthur Oscar, com sete bombas de dinamite, e, combinado com o coronel Medeiros, lança a primeira bomba à 1 hora da tarde, no covil dos conselheiristas, seguindo-se outras pelo alferes Matos Costa, do 29, um rapaz valente e ousado.

“O coronel Medeiros, que então agia desembaraçadamente, com valor e entusiasmo, resolveu mandar uma última intimação ao inimigo para que se rendesse escolhendo o alferes Alfredo Rodrigues da Silva e o sargento Ildefonso Toletano de Araújo, todos do 22º, que prontamente saltaram as trincheiras e internaram-se no recinto ocupado pelo inimigo, acompanhados de um cabo e um soldado.

“O alferes Rodrigues da Silva e o sargento Toletano estavam intimando um grupo de doze jagunços que se achavam metidos em um fosso, dentro de uma casa, sem serem vistos, apenas pressentidos, quando um deles apontou a carabina para o sargento; este, com a maior agilidade, desviou o corpo, indo a bala matar o cabo e ferir o soldado, que se achavam atrás dele.

“Este soldado morreu no dia seguinte.

“Oficiais e sargento voltaram para as trincheiras, havendo forte tiroteio, que durou poucos minutos, cessando com o lançamento de uma bomba de dinamite que produziu violento incêndio no santuário e em outras casas próximas.

“Não eram possíveis mais protelações e os sentimentos de humanidade deviam ser banidos.

“O major Lydio Porto mandou colocar perto da igreja um grande monte de lenha seca, chegando logo depois uma carga de 4 latas de querosene, que tinha vindo com um comboio às 2 e ½.

“Às 2 e 50 minutos da tarde, tendo o coronel Medeiros autorizado o incêndio e o uso do querosene, como fora ordenado pelo general Arthur Oscar, o tenente Dourado, alferes Mattos Costa, Rodrigues da Silva, Clementino Paraná do 39º, e cadete sargento Toletano, auxiliados por diversas praças, fizeram rolos de pano velho que embeberam no líquido inflamável, entrando todos ousadamente no recinto sitiado, lançando fogo nos lugares onde se presumia e em que efetivamente existiam os fossos em que os inimigos se ocultavam.

“Os soldados lançavam lenha sobre as fogueiras, o tenente Dourado lançava dinamite e em poucos minutos todo o recinto sitiado era um vasto incêndio, mal se ouvindo as agonias das vítimas do fanatismo.

“E o incêndio lavrava desesperado e violento, devorando com suas labaredas, casas, homens, mulheres e crianças, nada poupando, nada respeitando. O fétido nauseabundo da carne humana em cremação era insuportável para quem estava, como nós, a 20 metros de distância.

“E assim passaram-se uns 50 minutos de uma expectativa ansiosa, de um desespero simpático para nós e de agonias para eles, os relapsos da lei e da ordem, os desagregados da sociedade.

“Às 3 horas e 55 minutos o bravo alferes Paraná, com licença do coronel Medeiros, saltou as trincheiras e penetrou afoutamente no meio do incêndio para verificar o seu resultado; pouco demorou, voltando entusiasmado e gritando:

— Está tudo acabado! Não há mais um jagunço!…

Foi o momento da confusão.

“Oficiais e soldados transpuseram as trincheiras, obstáculos então desnecessários, e percorreram o recinto último conquistado, enquanto que o coronel Medeiros mandava por um assistente comunicar a boa nova ao general Barbosa, comandante da 1ª coluna, que pos sua vez mandou o capitão Pinto Peixoto comunicar ao general Arthur Oscar, comandante em chefe.

“Este mandou logo, 4 horas e 7 minutos da tarde, tocar alvorada. Todas as forças formaram em suas respectivas posições; o pavilhão nacional foi hasteada em todos os recantos de Canudos; as músicas tocaram o hino glorioso da pátria e os três generais desceram de seus quartéis, viva, entusiástica e delirantemente aclamados pela tropa, que os vitoriava incessantemente.

“Canudos era uma vasta fogueira! As ruas estavam tapetadas por milhares de cadáveres!…

“O primeiro general que chegou foi o bravo general Barbosa, sendo vivamente vitoriado. Quando chegou o general Arthur, foi este espontaneamente aclamado o primeiro herói da República![3]

“Enquanto todos nos confundíamos em abraços e manifestações de alegria, congratulando-nos uns com os outros, o general em chefe, que sabia da morte do Antonio Conselheiro, mandava a distinta comissão de engenheiros que fizesse remover o entulho do santuário a fim de se descobrir a sepultura do homem sertanejo e inculto que, habilmente fanatizando uma grande parte de seus concidadãos, abalou no fim deste século o seu país inteiro.

“Assisti a esse trabalho e ainda pude apanhar no célebre santuário um crucifixo de metal, todo queimado, que estava no meio do entulho, mesmo por cima da sepultura de Antonio Maciel: pertence à minha coleção jaguncial!

“Até anoitecer durou o trabalho de desentulho sem ser concluído.

“Das 6 da tarde em diante, até alta hora da noite, todos os oficiais das brigadas e corpos foram incorporados e com bandas de música foram cumprimentar os generais Arthur Oscar, Barbosa e Carlo Eugenio, trocando-se congratulações simultâneas pela feliz terminação de tão sangrenta guerra e pela vitória das armas republicanas, vitória que veio consolidar a República com uma lição tremenda aos perturbadores da ordem.

“Estava salva a honra da pátria e do exército e a honra da própria Bahia, tão vilmente caluniada pelos agitadores estultos, que tudo vêem e tudo sabem… de longe.

“E assim passou-se a noite entre vivas aclamações à República, à Constituição, à memória do marechal Floriano, aos governos da União e da Bahia, ao ministro da guerra, ao legendário Arthur Oscar, ao bravo general Barbosa, ao general C. Eugenio, aos coronéis Olympio da Silveira, Dantas Barreto, Siqueira de Menezes, Medeiros, Lopes Rego, Campello, Sampaio, corpo médico, engenheiros, alunos das escolas militares, polícias da Bahia, S. Paulo, Pará e Amazonas, à memória de Moreira Cezar, Tamarindo, Tompson Flores, Sucupira, Tupy Caldas e outros.

“No dia seguinte pela manhã continuaram os trabalhos da remoção do entulho do santuário incendiado, assistindo eu a todo o movimento pela natural curiosidade de ver Antonio Conselheiro.

“Em uma casa próxima havia um grupo de mulheres que se obstinavam a morrer queimadas e à sede; outro grupo na rua exânime, um grupo de mulheres e crianças recentemente mortas de inanição.

“Uma mulher atirou-se às chamas com uma criança ao colo; outra estava morta na rua com uma criança colada aos mirrados peitos; muitos jagunços morreram queimados dando vivas à monarquia e ao Bom Jesus Conselheiro, recusando peremptoriamente darem vivas à República.

“O general em chefe nomeou duas comissões de Oficiais presididas pelos comandantes de brigadas Lopes Rego e Dantas Barreto, a fim de contarem as casas da cidadela e os cadáveres de jagunços insepultos no último recinto conquistado. A primeira contou 5.200 casas e a segunda contou 647 jagunços mortos, de 1 a 5.

“Com estes dados e com muitos outros que tenho, farei mais tarde a estatística de Canudos.

“O general em chefe publicou no dia 6 a seguinte ordem do dia, sob o nº 145.

“Viva a República dos Estados Unidos do Brasil! Está terminada a campanha de Canudos. Desde ontem que os batalhões das forças expedicionárias passeiam suas bandeiras sobre as ruínas da cidadela, com a consciência de bem haverem cumprido o seu dever.

Durante 103 dias, desde o Aracati, vos conservastes em rigorosa linha de fogo, batendo-vos em Cocorobó, Trabubu, Macambira, Angico, Umburanas, Favela e Canudos, onde repelistes três assaltos, sustentastes oito combates e vos batestes nos postos avançados, dia por dia e hora por hora, sem nunca serdes rendidos desses mesmos postos, sem mostrar fraqueza nem cansaço, fuzilando e sendo fuzilados, a 25 metros do inimigo, à meia ração e sem mudar de roupa. Valentes soldados! Tive orgulho em comandar-vos e a República vos enche de bênçãos.

Nunca se viu uma campanha como esta, em que ambas as partes sustentaram ferozmente as suas aspirações opostas.

Vencidos os inimigos vós lhes ordenáveis que levantassem um viva à República e eles o levantavam à monarquia e, ato contínuo, atiravam-se às fogueiras que incendiavam a cidadela, convencidos de que tinham cumprido o seu dever de fiéis defensores da monarquia. É que ambos vós e eles, sois brasileiros e ambos extremados em seus ideais políticos.

Valentes oficiais e soldados! A pátria está tranqüila sob a guarda de vós outros, que sois a sentinela avançada da República!

Viva a República dos Estados Unidos do Brasil!

“Vivam as forças expedicionárias no interior deste Estado! Arthur Oscar de Andrade Guimarães, general de brigada.”

“Às 10 horas da manhã ainda de 6 foi encontrado o cadáver de Antonio Conselheiro e, sendo exumado, foi examinado pelo corpo médico, que não pode verificar a causa da morte pelo adiantado estado de putrefação em que se achava.

“Depois de reconhecido pelos prisioneiros e por um oficial que o conhecia bem, foi constatada a sua identidade, do que se lavrou uma ata, que foi remetida ao general ministro da guerra.

“O Dr. Curio ficou com a cabeça do célebre bandido para estudos.

“Depois de visto o cadáver por todo o exército, foi novamente inumado no mesmo lugar, em que se achava no compartimento do lado direito do santuário junto a uma parede.

“Era um homem baixo, magro, de formas grosseiras, cabeça grande, testa larga, cabelos lisos, incultos e crescidos, barba grisalha, falhada nas faces e longo queixo; parecia moreno, representando um verdadeiro tipo de sertanejo cearense; parecia ter mais de cinqüenta anos: há quem afirme que tinha sessenta e dois. Estava vestido com uma túnica de zuarte, alpargatas de couro cru, e fora sepultado envolto em uma esteira. Tinha na cabeça um pequeno barrete de algodão azul com fios brancos.

“O general Arthur manda diariamente brigadas em exploração por Cana-Brava, Caypan, Cocorobó e outros lugares dos arredores de Canudos, porém nada se tem encontrado.

“Canudos está definitivamente concluído. Arrasado completamente o arraial pelo incêndio, o resto das igrejas pela dinamite, nada mais resta senão um vasto cemitério com dez quilômetros quadrados de superfície, onde os cadáveres insepultos estão aos montes, uns meio cremados, outros em putrefação, e outros mumificados pela ação do calor solar, que chega às vezes a 40 graus.

Nas sepulturas, principalmente dos inimigos, foram enterrados aos três e quatro em uma cova só, é a vala comum dos inimigos da pátria.

“Todos os corpos de polícia seguiram para os seus destinos conduzindo prisioneiros para a Bahia. Estes corpos prestaram relevantes e inolvidáveis serviços nesta campanha.

“As forças do exército, que aguardam ordem para regressarem às suas paragens, só seguirão depois que sejam conduzidos os doentes, restos de munições e armamento.

“Pensa o general Arthur fazer regressar os batalhões na mesma ordem, em que vieram, com exceção dos corpos da Bahia, que serão os últimos, a fim de que os outros tenham quartel na passagem pela capital do Estado.

“O 9º e o 16º serão portanto os últimos. Como já disse pretendo seguir hoje para Monte Santo, indo depois com o 24 para o Rio, com que vim e cujo número conservo ainda no chapéu.

“Não posso designar nominalmente os oficiais que mais se distinguiram porque eles são muitos, ou quase todos. Todos cumpriram galhardamente o seu dever, com bravura e denodo na defesa da República. Um bravo a todos.

“Uma lágrima para os que tombaram no cumprimento do dever sagrado e que aqui ficam solitários, talvez amanhã esquecidos no meio do deserto entre as lôbregas ruínas de Canudos!” – Favilla Nunes.

O missivista debalde põe em contribuição todo o seu talento e habilidade e ainda afeição ao general em chefe para disfarçar, ou atenuar os horrores que descreve.

Nessa carta fala ainda ele em remessa de prisioneiros feitos depois do assalto. Nem um só destes apareceu em parte alguma! Todos tiveram sorte igual à de Beatinho.

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Os que conceberam, iniciaram e levaram ao fim a campanha de Canudos conseguiram apenas os seguintes tristes e lamentáveis resultados:

Exterminar em um país, que tem pago a peso de oiro a emigração européia, uma povoação de cinco mil e duzentas casas habitadas por brasileiros, que se entregavam à indústria agrícola e pastoril;

Sacrificar ingloriamente mais de cinco mil homens – a flor de nosso exército – e distintíssimos oficiais;

Obrigar o tesouro nacional a despender milhares de contos e impor aos cofres estaduais ônus, que eles não podiam suportar;

O dinheiro saído dos cofres públicos porém não serviu para abrigar a soldadesca contra a miséria e a fome, mas para enriquecer os mercadores oficiais e não oficiais.

Grandes políticos! Imortais estadistas, que plantam tais sementes e colhem frutos tais!

Merecem com razão ser elevados à suprema magistratura da República!

A carta – Favilla – deixa fora de dúvidas que todos os horrores praticados foram por ordem do quartel-general, e não obra da soldadesca no furor da luta.

Soldados e oficiais, ainda hoje assombrados, falam das cenas pungentes, que presenciaram nessa campanha sem nome possível.

O heroísmo, que desenvolveram os perseguidos, só encontra símile no assalto de Sagunto sob o comando de Aníbal, ou na tomada de Jerusalém pelos romanos às ordens de Tito.

Não temos tintas, que possam traçar este quadro lúgubre de nossa história.

Limitar-nos-emos a dizer: o último dia de Canudos só pode ser comparado ao último dia de Cartago.

Canudos era a povoação mais numerosa talvez da Bahia depois da capital.

Pelo número das casas contadas depois do assalto e arrasamento, não será exagerado dizer-se que o número de seus habitantes atingia a quase 25 mil almas.

Nesse vasto recinto de sertanejos ignorantes e rudes não havia uma só casa de mulher pública.

Em nosso clima e com os nossos costumes é um fato quase inacreditável. Havia ali escola pública e tal ou qual policiamento. Os delitos correcionais Antonio Conselheiro os punia lá a seu modo.

Os crimes graves ele os entregava às autoridades da comarca.

O Estado da Bahia acha-se em plena bancarrota. O funcionalismo público, os serviços mais urgentes por pagar; o tesouro exausto, o crédito esgotado e extinto.

E como se tudo isso fosse ainda pouco, descemos ao mais triste estado, a que podem chegar as associações humanas – à abjeção de glorificar os crimes e os criminosos.

Os banquetes, bailes, festas e saraus farão calar perpetuamente a consciência nacional?

Rosas, Celman, Santos, Gusman Blanco não são legendas. Verres não é uma criação da imaginação de Cícero: foram desgraças, que feriram outras nações.

Para os forjicadores de atas falsas já sobram os títulos, que justificam ambições, que porventura ainda não ousem exibir-se à luz do dia.

Estará reservada à República vergonha igual?

Ao bico de pena na sua faina fatal de tudo demolir, homens e instituições, tudo é possível! É o inimigo mais terrível entre os que ameaçam a República.

O honrado presidente da União tem olhos, deve ver; tem ouvidos; cumpre-lhe ouvir. “Latet anguis et herbis”. Olhe com cuidado para a Bahia e S. Paulo e tenha na memória o verso de Virgílio. “Timeo Danaos et dona ferentes”

O Sr. Campos Salles está vendo em que estado o seu antecessor lhe deixou o país. Caveat.

O ilustre paulista é um espírito culto e não pode nem deve ignorar que as instituições perecem e morrem de dous modos: pelas suas próprias imperfeições e pela dos homens, que as põem em prática e aos quais o depósito delas é confiado.

Os brasileiros não temem ver no governo homens de farda. Os militares não nos inspiram repugnância. Deodoro e Floriano não adoravam o bezerro de ouro.

O que a nação não quer são bandidos de casaca.

O característico da gente de Canudos (dizem oficiais e soldados) era não tocar no alheio; matavam os adversários, apossavam-se das armas e munições, que encontravam; mas dinheiro, jóias, ou quaisquer outros objetos de valor ficavam com o morto.

Também não perseguiam os vencidos além da área, que consideravam propriedade sua.

Aquela povoação proporcionava ao Estado pingue fonte de receita do imposto de exportação sobre peles.

O incêndio e o fogo fizeram o que o canhão e o fuzil não conseguiram: não ficou pedra sobre pedra: não houve onde guardar prisioneiros! E tudo isto no século 19º, em um país católico, só para satisfação de interesses partidários e ódios violentos!!!

Aqueles infelizes foram varridos da face da terra; mas legaram ao baiano inerte e resignado um grande exemplo, que talvez ainda aproveite no futuro.

Nem sempre o mal levará de rojo o bem.

O termo vulgar de jagunços serviu para designar em geral os moradores de Canudos: eles nada tinham dessas entidades, que assim são denominadas nos nossos sertões.

O correspondente da Gazeta de Notícias os qualifica de bandidos. A história dirá mais tarde com a imparcialidade e justiça que são o seu apanágio, quais os bandidos – se os degoladores, ou os degolados; se os incendiários, ou os incendiados.

Se os homens, que ainda não venderam a consciência, não procurarem desembaraçar a verdade da teia de mentiras, em que se esforçam por envolvê-la os dominadores, que vão passando, de que elementos se socorrerá de futuro o historiador pátrio para medir, caracterizar e apurar o que se está dando no Brasil?

Canudos está servindo de pedestal à glorificação de uma homem, que não passa de um infeliz tenebroso ante as consciências cristãs. “Nihil sub sole novum.” No tempo e no espaço tudo se repete.

Nero, prepara e ordena a morte de sua própria mãe. Tácito, depois de narrar minuciosamente em seu estilo incisivo e nervoso as peripécias deste crime hediondo, acrescenta:

“E todavia por uma baixeza inconcebível dos grandes decretaram-se, à porfia, preces públicas em todos os templos: jogos anuais nas festas de Minerva; época em que a simulada conspiração fora descoberta: uma estátua de ouro à deusa no Senado, e ao lado desta, outra ao príncipe: o dia do nascimento de Agripina foi incluído entre os dias nefastos.”

Com pouca demora, o pro-cônsul da Gália, em nome da província, que governava, deputava J.

Afrânio com uma carta ao Imperador suplicando-lhe que “suportasse com coragem a sua imensa felicidade.”

Quando mais tarde o monstro coroado, depois de haver infligido à nobre, virtuosa e infeliz Otávia todos os tormentos que podem amargurar um coração de mulher e de esposa, mandou barbaramente decapitá-la, afirma o inimitável analista: “decretaram-se oferendas para todos os templos: o que propositalmente refiro, (acrescenta) a fim de que lendo-se em minha obra, ou em outros escritos, a história desses tempos, saiba-se previamente que todos os exílios, todos os assassinatos ordenados pelo príncipe foram seguidos de outras tantas ações de graças aos deuses; e aquilo que era então o sinal outrora anunciava as nossas prosperidades, infalível de calamidades públicas.”

A capital federal e S. Paulo cercaram de homenagens a mais chata e funesta mediocridade, que tem passado pelas regiões do poder. É que a consciência nacional está tomada de torpor e marasmo. Com o despertar da alma popular virá a justiça.

Canudos, na vida da República, foi rico manancial de onde os exploradores sem entranhas hauriram proventos e grandezas, com que não contavam. Eles aí andam fartos e contentes: acabarão tranquilos?

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Antonio Conselheiro era um desequilibrado, um fanático, dizem; mas não servia aos partidos: nós o temos na conta de um crente, cujo espírito vivia em um sonho perene entre os labores da terra e as esperanças de céu: trabalhava, orava e predicava.

Conhecia-o bem a alma, que tracejou a tragédia pavorosa, que todos nós conhecemos; nem por isto, o infeliz foi poupado, porque através dele havia um ideal de sangue, que o ódio farejava.

Pouco resta da antiga e patriótica altivez baiana. O dono e senhor do Estado suga-lhe o sangue, corrompe-lhe a alma, passeia, diverte-se e “sobe à imortalidade” no dizer dos mercenários, que o acompanham.

Consciência privilegiada, que vive num sonho, que não tem dia!

Refere Chateaubriand que depois da publicação do panfleto – Killing no murder – ninguém mais viu Cromwell sorrir; ele julgava-se abandonado pelo espírito da revolução, donde tinha-lhe vindo a grandeza. Esta revolução, que ele tomara por guia, não o queria mais por senhor; sua missão estava finda; sua nação e seu século dele não mais careciam: o tempo não pára para admirar a glória; serve-se dela e passa além.”

Cromwell sabia o que valia; amava o ideal, que foi a suprema preocupação de sua vida; e por isto sentiu e entristeceu-se quando a Inglaterra recusou-lhe o seu amor: era uma águia e não um corvo.

Que homem nobre e justo confundirá o Protetor com o Tartufo? O grande, o imortal estadista, que o servilismo, a fraqueza, o interesse e a corrupção eleitoral elevaram, somente deixará de rir, quando seus pés e mãos só encontrarem o vácuo.

As mediocridades cúpidas e maléficas só logram subir e comandar, quando à força de ardis e trapaças se constituem intérpretes e garantia dos que juntam ao servilismo a avidez do regalo corpóreo. Quanto mais rasteiro é o chefe, mais títulos conta, mais conveniência oferece aos rafeiros que o cortejam.

Do reinado sereno da liberdade e da ordem passamos para o labirinto, onde estamos a doudejar. Provações tamanhas só as sofrem os povos que as merecem.

Quando estiver paga a dívida de expiação, a alma popular despertará, sacudida pela mão de Deus: os fracos tornar-se-ão fortes; os escravos erguer-se-ão à altura dos senhores; o causador da miséria e do aviltamento da Bahia receberá o salário que lhe cabe.

Então, é bem possível que o espectro de Canudos, gotejando sangue, leve-o a por os olhos no céu suplicando-lhe o perdão de todos os males, que espalhou na terra que ele devia amar e respeitar.

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É quase inacreditável o que se passa na Bahia. A fome, a seca, a peste e a guerra completaram a obra da perversidade humana.

Entre o Estado e os que o governam, a antítese é perfeita: estes — opulentos; aquele — arruinado.

Outrora os homens públicos não se preocupavam de aumentar suas rendas e cabedais. O desideratum de todos era a pátria grande, próspera, feliz e respeitada. Hoje este vocábulo para muitos não tem significação: estes, como todos os que perdem o senso moral, já não têm outro objetivo senão enriquecer: afastados da sociedade sã e da religião, o ouro tornou-se o soberano de suas almas.

Os que ainda não perderam as noções da dignidade política sentem indefinível angústia ante a subversão completa da ordem moral, que vai por aí além.

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Corrompere et corrumpi — tem sido o programa do governo da Bahia; é de tal ordem que, não há muito, um antigo e acreditado órgão do jornalismo baiano, fora inteiramente da arena partidária, inseria em suas colunas editoriais as seguintes linhas, que bem revelam o que vai pelas regiões oficiais:

“Pobres ratos, resignai-vos! Antes os homens vos criminem propagadores da peste do que como propagadores da ladroeira. Ele perseguem-vos desde os séculos passados e chegaram até a comparar os gatunos e exploradores com todos vós! Se roubais uma migalha, é porque tendes fome, no entanto eles roubam fortunas, porque têm ambição, que é a fome canina do espírito. Vós temeis os gatos e fugis quando ouvis um miado, indo esconder-vos nos forros das casas, onde ficais mudos e quietos, sem guinchos nem correrias, durante meses. Eles não receiam cousa alguma; pelo contrário, se alguém os acusa, é enxotado logo como se fosse o culpado. Vós passais a existência em sobressaltos, famintos, perseguidos; e eles vivem nédios e contentes, e satisfeitos com a sorte.

“Resignai-vos!

“Sois mais felizes que os vossos companheiros, que continuarão a ser vítimas do egoísmo dos homens.

“Deixai que vos ponham a vida a prêmio, porque para vós a morte será muito menos insuportável do que a injustiça de serdes comparados a certos homens, que vivem tranqüilos com a tranqüilidade roubada aos seus semelhantes e que, para cúmulo, são, às ocultas, chamados de ratos.

“Morrei satisfeitos, já que não podeis protestar contra o insulto de serdes comparados a certos homens, únicos ratos felizes que não morrem de fome, nem conhecem gato e ratoeira.”

E precário é também o estado da república, pois que no Paiz, jornal dirigido pelo senador Bocaiúva, deparamos com os seguintes dizeres:

“Se os republicanos, quer da terra, quer de mar, não se unirem, esquecendo rivalidades e ódios pessoais, esta República irá de queda em queda até cair, não na praça pública, como a monarquia, abandonada covardemente pelos seus sectários, mas num charco de ignomínias, de onde quem quiser tirá-la há de ter necessidade do forte desinfetante de uma sangrenta revolução, se não preferir vê-la nos braços de algum príncipe imposto por qualquer nação poderosa da Europa, ou então, a pior de todas a hipóteses, a divisão dela.”

O que acaba de passar-se em S. Paulo dá a medida de como certos republicanos entre nós compreendem o regímen republicano democrático e da desorientação política em que vivem.

Reúne-se um chato triunvirato, que pretende ser o diretor da política no futuro, declarando sem rebuço que na próxima futura legislatura federal eles se encarregam de fazer cento e quarenta e nove deputados, dos quais disporão a seu talante!

Eis a que no Brasil estão reduzidos o sistema representativo e o princípio da soberania nacional, base de todo o nosso edifício político.

Com Palinuros deste jaez, o naufrágio será infalível.

Lembre-se o honrado Sr. Dr. Campos Salles de que o primeiro dever de um homem de Estado é jamais subordinar às conveniências políticas, ou pessoais os direitos sagrados da justiça e da pátria.

Se o ilustre paulista ama deveras, como cremos, o novo regímen, caveat ne quid respublica detriment capiat.

É mister encarar de frente e corajosamente as dificuldades, que nos assoberbam.

No mundo civilizado talvez não haja país de organização política tão defeituosa, como o Brasil.

Estados, não autônomos, mas soberanos, dirigidos em sua maioria por indivíduos que os exploram e arruínam em proveito próprio e da camarilha, de que se cercam e que só se lembram da União, quando dela precisam para se manterem nas posições que assaltaram.

A unidade nacional desaparece.

São já perceptíveis os sintomas de desagregação do grande todo.

A cada passo ouve-se falar na pátria — paraense — pernambucana — paulista — rio-grandense, etc., etc.

Ouvimos que o Dr. Campos Salles, como bom brasileiro, proferira uma vez num círculo de amigos o seguinte conceito: “Amo e muito a República; mas entre esta com o desmembramento do país e a monarquia, conservando-o intacto e unido, não hesito: aceito a monarquia.”

Este modo de pensar honra-o e o eleva aos olhos de todos os brasileiros de coração e pois não hesitamos em dizer-lhe:

A República acha-se entre as pontas deste dilema: — ou uma constituinte com amplos poderes para rever e reformar toda a constituição de 24 de Fevereiro, com a restrição apenas de conservar a forma republicana federativa de governo, ou o desmoronamento completo e quiçá violento do regímen atual.

Não há meio termo.

Setembro de 1899.

WOLSEY

Notas

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  1. Toda essa gente foi degolada (Nota do autor).
  2. Honro a este coronel (Nota do autor).
  3. Pobre República! Que tem como primeiro herói um homem tal (Nota do autor).