Livro de uma Sogra/V

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Jurara pois a mim mesma, e à memória de meu marido, que minha filha seria feliz. Mas como realizar esse ideal?

Eis a questão. Vejamos:

Dar-lhe um marido, quando chegasse à idade do amor?...

Mas, se o meu, que fora tão bom, tão leal, e tão justo, não conseguira proporcionar-me a felicidade?

Dar-lhe um amante?

Mas, sobre ser, debaixo do ponto de vista social, imoralíssimo o fato, em que poderiam afinal consistir as vantagens de um amante sobre um marido?

Não seria o amante nada mais do que um marido ilegítimo, que trouxesse à mulher todas as desvantagens domésticas do casamento e nenhuma das suas vantagens sociais?

Para o homem, sim, a amante parece incontestavelmente preferível à esposa, porque a mulher de posição só aceita um homem para seu concubinário quando o ama fervorosamente; ao passo que pode tomar marido, ou só porque os seus interesses de vida social assim o exijam, ou só porque a sua vida particular não tenha outro meio de manter-se.

O marido é sempre para a mulher uma garantia do presente e uma garantia do futuro; o amante é nada mais do que um incidente arriscado. O marido é uma conquista social; o amante é um sacrifício feito ao amor. A mulher que não tem posição social, conquista-a com o casamento; e aquela que já tinha, perde-a tomando um amante. Por conseguinte o casamento eleva e o concubinato rebaixa.

No casamento o escravizado é o marido; no outro caso a escravizada é a mulher. O casamento é o sacrifício de um homem em proveito da sociedade; o concubinato é o sacrifício de uma mulher feito a um homem. A mulher casada vê no "seu" marido uma propriedade sua; e, para manter a felicidade burguesa do seu lar e para não perturbar a suposta tranqüilidade da sua vida conjugal, quer que ele, ao entrar casado na câmara nupcial, despeje para sempre o coração de todos os seus sonhos de glória; quer que ele abdique, em proveito do seu novo estado, de todas as suas ambições brilhantes, de todo o seu ideal de conquistas na vida pública. E desse dia em diante, tudo que nele for pessoal e de alcance exterior encontrará nela um inimigo terrível. No triunfo individual dele ela verá uma perene ameaça aos seus direitos de proprietária conjugal. A felicidade particular dele, posto que de caráter moral, será por ela considerada um roubo, um atentado cometido contra a solidariedade do casal. Que ele seja um "Bom marido" é o essencial, é quanto basta; é tudo o que ela exige dele e é só o que ela consente que ele ambicione.

E para ser um "Bom marido" convém que ele seja caseiro, metódico, pacato, previdente; que disponha de recursos para manter a família, e não tenha a menor ambição de nome. O que por aí se chama "Bom marido" é um ser genérico e coletivo, que, por si só, particularmente, nada representa, e que não pode ser aproveitado, na cadeia dos interesses gerais da vida humana, senão como simples e obscuro elemento de procriação. Um bom marido é útil somente porque produz filhos.

Para ser um bom marido não pode o indivíduo ser um "homem de ação", como não pode ser um "contemplativo". Não pode ser um conquistador, um revolucionário ou um grande empreendedor, como não pode ser um poeta, um artista ou um sábio. E como são essas as duas únicas ordens em que se divide a humanidade produtora, da soma de cujo esforço de ação ou de pensamento tira a evolução histórica a sua grande força de impulso e de aperfeiçoamento geral, segue-se que o "Bom marido", na comunhão da vida inteligente e na obra do progresso do mundo, não tem lugar como homem, mas só como animal, e seu esforço só poderá ser aproveitado como passivo instrumento da vontade alheia.

Por isso um bom marido deve ser única e exclusivamente um bom marido, e nisso limitar toda a sua aspiração. Um bom marido não deve ter pátria, nem idéias. A sua pátria é a casa, e o programa de todo o seu pensamento é o seguinte: Ter ou obter meios para a regulada subsistência da família; não perturbar nunca a paz burguesa do lar; atrair à casa, de vez em quando amigos sérios e respeitadores dos princípios estabelecidos; promover partidas de dança, em que a mulher se divirta, em que as filhas, se já estiverem desenvolvidas, possam namorar para obter o marido; não faltar nunca ao lado da esposa com o provimento sexual de que ela, conforme o seu temperamento, careça para o seu bem-estar e perfeita sinergia do organismo; e nunca, nunca, dar ou promover escândalos, sejam estes de ordem política, artística, amorosa, doméstica, ou sejam de simples e inocente folguedo.

Para o satisfatório desempenho desta última parte do programa, deve o bom marido abster-se de escrever, com assinatura, artigos em jornais e livros principalmente; não deve ler senão as obras que possa dar também a ler à sua família; não deve expor, ao público e à venda qualquer produção artística de sua lavra, mas reservá-la para ornamento da sua sala de visitas ou de jantar; no seu modo de vestir nunca trazer a roupa muito à moda, nem muito fora da moda; deve, enfim, nisto, como em tudo absolutamente, escolher sempre o meio termo, o regular, o médio, porque a mediocridade deve ser o seu nível. Razão esta para que evite, escrupulosamente, aperfeiçoar-se em qualquer ramo de conhecimento científico ou artístico, que da perfeição pode, mesmo sem querer, cair no sucesso e aplauso público o que lhe não convém de modo algum, por ser escandaloso. Todo o sucesso é um escândalo, e o bom marido deve temer o escândalo antes de tudo.

E mais: o bom marido deve recolher-se à casa sempre cedo; não sair para o passeio ou para o teatro sem levar a família; evitar a convivência mundana com todo o indivíduo que for popular e apontado a dedo. Não lhe convém igualmente, e nem por sombra, a menor relação de amizade com agitadores de idéias e com os artistas reformadores. O seu círculo, além da família, só pode estender-se um bocadinho às circunspectas classes conservadoras; o seu nome não deve figurar nunca senão em listas oficiais e graves. O bom marido deve ser, nos seus atos e nas suas funções, inalterável como uma pêndula: — Da casa para o trabalho e do trabalho para casa. Qualquer desvio do movimento estabelecido pode alterar a marcha do relógio, que é o lar.

Logicamente, quem deveria perder o nome com o casamento e adotar o do cônjuge era o homem e não a mulher, porque se o casamento for o que se chama "regular" e o marido sair "um bom marido", é ele quem desaparece engolido pela família; ao passo que ela, até aí escondida atrás dos parentes, sem ter mesmo até então o direito de pensar, casando-se, surge desassombradamente à tona social e forma à direita do esposo um novo elo na grande cadeia.

E não há mulher que não deseje que seu marido seja um "Bom marido". No seu indefectível egoísmo, os interesses privados do lar impõem-se antes de tudo. Não admitirá ela nunca que seu marido pertença a qualquer outra coisa ou idéia que não seja o próprio casamento.

Algumas não amam o esposo, mas nem por isso deixam de pesquisar-lhe a vida inteira, até aos mais pequeninos atos da existência. Esse vivo e feminil empenho de perquisição não vem do interesse carinhoso que ele inspira à mulher, mas do gozo de desfrutar um direito, o direito de zelar e governar o que lhe pertence, o que é só dela e de mais ninguém; pois que, na maior parte dos casos, a mulher não faz questão de que o marido seja este ou aquele, desde que o sujeito preencha os já citados requisitos de bom marido.

E o que recebe o pobre do bom marido em troca de tudo o que dá à esposa? Só recebe uma recompensa — a felicidade de ser pai. Só esta resiste; tudo mais que ele, de longe, nas ilusões do desejo, supunha constituir um mundo de venturas, desfaz-se em tédio e obrigações maçantes. A mulher deixa em breve de ser a esposa para ser "A minha companheira — a minha velha — a madama". Deixam ambos de ser marido e mulher para serem "Feijão com carne-seca", como eles lá dizem, os imbecis! O lar deixa de ser o ninho da paz e do descanso para ser "a obrigação da casa". E em obrigação, e obrigação acabrunhadora, transforma-se toda a vida do homem, desde a mesa da comida até à cama, só lhe ficando intacta a consolação de ser pai.

Com a amante sucede precisamente o contrário. O homem a quem ela se entregou impôs-se ao seu coração por uma irresistível fatalidade do amor. Essa ligação não entrava no programa da sua vida, como o casamento entrava no da vida da outra; essa ligação veio como conseqüência inevitável de uma fascinação imprevista. Em vez de investigar se o homem a quem se "deu" tinha as qualidades e requisitos necessários para tomar mulher, o que ela quis saber, só, foi se ele a amava tanto quanto era amado por ela; e, justamente ao inverso do que faz a mulher na ocasião de arranjar marido, em vez de dizer:

"Aceito este ou aquele contanto que dê de si um bom marido", o que a amante pensou foi o seguinte: "só este me convém e quero, só este me pode servir para amante, ainda mesmo que ele não disponha das necessárias qualidades para ser um bom amante". E ela assim pensa e faz, porque ama, e como o seu amor visa certo e determinado indivíduo, só esse, tenha ele as qualidades ou defeitos que tiver, poderá ser o seu homem.

E, como, unindo-se a esse homem, ela em vez de subir, apeou-se da sua posição social, todo o seu empenho, depois de unidos, se transforma em desejar vê-lo crescer e elevar-se no conceito público, porque, quanto maior for ele, tanto mais desculpável será a queda da mulher que lhe pertence.

Ainda ao contrário do que sucede no casamento, aqui a tranqüilidade e a íntima bem-aventurança do lar são sacrificadas aos interesses exteriores do amante, se este tiver ambições de caráter público, quer como artista, quer como homem de ação. A paz doméstica, os gozos do amor, tudo isso é rapidamente atirado para o lado se a honra ou o interesse abstrato da glória reclamam o sacrifício do homem amado.

Quando, nos grandes momentos decisivos para a vida pública de um homem, tenha este, sem hesitação, de arriscar tudo num lance resoluto, num rasgo de coragem, e, ou galgar de assalto a vitória completa, ou cair vencido para sempre; se ele é casado, a mulher agarra-o com ambas as mãos, grita, chora, enlaça-o nas suas saias e não o deixa sair de junto dela, reclamando egoisticamente que o infeliz é seu marido e que ela não pode consentir que ele se exponha, porque seria expor também a segurança do seu lar e da sua família; e, se o homem for casado, enquanto a esposa faz aquilo, o que faz o amante?

A amante, esquecendo a sua felicidade privada pelas conveniências públicas do seu amado, e tendo pouco de si mesma que arriscar, porque tudo por ele próprio já arriscou e não temendo cair em posição falsa, porque falsa já é a sua posição, é a primeira a empurrá-lo para o seu posto de honra e instigar-lhe os brios, gritando-lhe que não perca um instante e cumpra resoluto o seu dever, sejam quais forem as conseqüências.

Ele pode morrer! — Embora! Mas é preciso que vá, que se não desonre, porque, se assim acontecer ela terá perdido de um modo mais triste ainda a sua felicidade de mulher, porque terá perdido a sua ilusão de amor, porque terá perdido moralmente o seu amante.

Que vá! Que vá! Antes morto que desonrado!

E nisto consiste a grande vantagem que leva o concubinato sobre o casamento. Se eu, em vez de uma filha, tivesse um filho, não hesitaria em aconselhar-lhe que preferisse tomar uma concubina a tomar uma esposa.

Mas, na inversão do caso; quer dizer: sob o ponto de vista do interesse da mulher, o amante será preferível ao marido?

Vejamos: