Livro de uma Sogra/XIII

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— Antes de falar, minha senhora, no delicado objeto que aqui me traz... principiou Leandro, com a voz um pouco alterada, preciso da prévia garantia do seu perdão, sem o que não terei ânimo de cometer semelhante atrevimento...

Autorizei-o a que falasse e prometi a minha indulgência.

— Imagine, minha generosa senhora, continuou ele, imagine como devo tremer em sua presença... Juro-lhe que, se o meu amor não me merecesse todos os sacrifícios e não me tivesse roubado a razão, não cometeria eu a loucura, a temeridade, o crime talvez, que estou agora perpetrando...

— Continue, acudi, sem modificar a minha fisionomia.

— Imagine, minha senhora: eu, que nada sou; um pobre diabo sem passado e sem futuro, filho de uma união irregular, atrevo-me a vir pedir-lhe me conceda tudo o que há de melhor no mundo; tudo o que há de mais puro, de mais belo, de mais ideal! Imagine que eu, um desgraçado, tenho o desvairamento de pedir-lhe a mão de...

Hesitou, abaixando os olhos. Compreendi que, a menor palavra de recusa, o pranto rebentaria deles com violência.

— O senhor está autorizado por minha filha a fazer-me semelhante pedido? perguntei-lhe depois de uma pausa, em que ouvia a larga respiração dele.

— Sim, minha senhora.

— E, no caso que obtenha o meu consentimento, estará o senhor disposto a fazê-la feliz, como eu o entendo?

— Juro! exclamou o rapaz.

— Não! não jure ainda, sem primeiro responder-me, se já sabe como é que tem de a fazer feliz...

— Minha senhora, volveu Leandro, reanimado por estas palavras e aproximando a sua cadeira para mais perto da minha, ainda há pouco não pude entrar em pormenores, nem disse quase nada do que trago a intenção de dizer... V. Ex.ª compreenderá sem dúvida o meu estado de comoção...

— Sim. Fale.

— Minha senhora, eu adoro sua filha, e sei, e sinto, e afianço, que nunca mais amarei assim outra pessoa em toda a minha vida! Juro que...

— Não! — interrompi — não prometa coisa nenhuma! Fale só do presente; deixa lá o futuro que a Deus pertence! Quem pode nesta vida determinar com segurança alguma coisa futura?... Pois se pelo passado, que já está vivido, nem sempre podemos responder, porque ele às vezes nos foge da memória, como quer o senhor legislar sobre o porvir, ainda todo incerto? Fale-me do presente!

— Tem razão, minha senhora, e consinta que eu prossiga: Amo loucamente a senhora sua filha e só com ela posso compreender uma união eterna... Mas, V. Ex.as são ricas e eu sou pobre... ganho pouco; esse pouco, porém, chega com economia para duas pessoas resignadas... Entretanto, se ela própria me não tivesse jurado aceitar com satisfação o sacrifício de partilhar de minha pobreza, não faria a V. Ex.ª, nem por pensamento, o temerário pedido que acabo de fazer. Desejo que V. Ex.ª me conceda sua filha, sem outro dote além das virtudes que a enobrecem e além dos seus encantos pessoais...

Eu sorri. Não sei se era sincero o que ele dizia. Talvez fosse, porque a mocidade é quase sempre generosa e o primeiro amor é leal e adora o sacrifício. Mas a idéia de consentir que minha filha partilhasse do magro ordenado de um amanuense de secretaria, pareceu-me infinitamente extravagante.

Já se vê que entrava no meu sorriso um pouco de vaidade; qual é, porém, o nosso ato social em que a vaidade não entre em grande ou pequena dose?

— Senhor José Leandro de Oviedo, declarei-lhe formalmente — o dote de minha filha pertence a minha filha. Dele partilhará a pessoa que se casar com ela; e se dela tiver filhos, herdará de mim, como a esposa, o que eu por minha vez herdei de meus pais, de meu sogro e de meu marido. Isso é questão assentada e nem é disso que convém tratar aqui. Entendo que tanto pode dignamente um pobre moço casar com uma moça rica, como um rico dar a mão de esposo a uma pobre, desde que essa união seja inspirada no interesse do amor e não no interesse do dinheiro. As idéias a isso contrárias são cópia de mal-entendido orgulho do homem. Entendem eles que uma mulher deve aceitar tudo das mãos do marido, e que este no entanto fica humilhado recebendo iguais benefícios da mão da consorte. Não é má essa moral! Que o homem faça do casamento um meio de enriquecer, acho indigno, como igualmente acho se o fizer a mulher; se o consórcio, porém, não for obra do dote e sim do amor, nada mais curial que os dois dividam amigavelmente entre si o que um deles possua, e que vivam felizes. Mas, graças a Deus, tanto minha filha como eu, somos bastante ricas para nos não preocuparmos em saber se o noivo dela traz ou não traz bens de fortuna; mesmo porque o casamento de Palmira não será um casamento vulgar, e coisas muito mais sérias que o dinheiro têm de ser discutidas nessa ocasião, aqui entre nós dois. Ponhamos pois de parte a questão pecuniária. Não se persuada, todavia, o senhor de que, por não trazer dote, esteja dispensado de dotá-la. A retribuição que exijo é de outra espécie, mas não é por isso menos valiosa que o dote dela...

— V. Ex.ª tenha a bondade de dizer o que exige de mim. Seja o que for, estou pronto a cumprir! E o que não faria eu para alcançar tão grande e sublime prêmio?!

— Pois responda às perguntas que lhe vou fazer...

— Estou inteiramente às suas ordens, minha senhora.

— O senhor ama minha filha tanto quanto diz?

— Juro que a amo tanto quanto é possível!

— E será capaz de um grande sacrifício para obtê-la em casamento?

— Desde que não seja um sacrifício de honra... estou disposto a tudo!

— Não, não é um sacrifício de honra, e antes de prosseguir, declaro-lhe que minha filha é pura, perfeitamente pura!

— Posso então jurar que, seja qual for o sacrifício, eu o farei, minha senhora!

— E como me provará o senhor que é um homem de honra, para que sua palavra me sirva de garantia?

— Pode V. Ex.ª indagar a meu respeito de todas as pessoas que me conhecem. Até hoje tenho sido um homem honrado: nunca faltei à minha palavra, nem cometi ação que pudesse desdourar o meu caráter...

— E como garantir a sua palavra?

— Posso assinar um documento, um título de honra. Aceito as condições que V. Ex.ª exigir...

— Pois então o senhor assinará uma declaração, formal e precisa, dirigida à polícia, dizendo que a ninguém devem atribuir a autoria da sua morte, porque foi o senhor mesmo quem pôs termo aos seus dias. E empenhará comigo a sua palavra de honra em como a ninguém revelará a existência desse documento; documento que será reformado de três em três meses. Aceita?

— E é esse o sacrifício que V. Ex.ª exige de mim?... perguntou Leandro, a sorrir.

— Não, respondi eu, muito séria — isso é apenas a garantia da sua palavra e da minha impunidade, caso tenha eu algum dia de eliminá-lo para sempre de minha família. Esse documento só servirá na hipótese de que o senhor falte ao cumprimento de sua palavra, porque então, juro-lhe que o farei matar...

— Ah!

— Sem dúvida. E ainda está em tempo de voltar atrás. O senhor ainda se não comprometeu comigo a coisa alguma.

— Recuar? Acha V. Ex.ª que eu possa recuar, desistir da única felicidade que ambiciono neste mundo?!

— Pense bem, antes de responder...

— Não há que pensar! Uma recusa em nada me adiantaria; V. Ex.ª dispõe já de minha vida; tem-na fechada na mão! Tanto vale dar-me a morte, negando-me sua filha, como me fazendo assassinar.

— O senhor só será assassinado se não cumprir com a sua palavra...

— Tenha a bondade de dizer o que exige de mim...

— É pouco. O senhor, depois de casado com minha filha, não coabitará com ela; o senhor morará só, numa boa casa, bem servida e bem mobiliada, que porei às suas ordens; ao passo que Palmira continuará a residir em minha companhia e só estará com o marido o tempo e as vezes que eu consentir. Serve-lhe?

— Mas eu terei então de viver separado de minha esposa?!

— Separado totalmente, não. O senhor poderá vê-la e estar com ela freqüentemente, não digo todos os dias, mas quase todos. Prometo mesmo que minha filha passará ao lado do marido um ou mais dias; levo até a condescendência a tolerar que fiquem juntos uma ou outra noite. Mas, desde que eu a reclame ou vá buscá-la, o senhor não poderá opor-se a que ela venha para a minha companhia.

— V. Ex.ª está gracejando com certeza... ou suporá que a minha intenção é privá-la de ver a senhora sua filha todas as vezes que quiser? Mas, se assim for, valha-me Deus! não vejo razão para não morarmos juntos!...

— Não! não! Não estou gracejando, nem admitirei, nunca, que o senhor more conosco. Nunca! E só consinto no casamento, sob as condições expostas. Se elas lhe convêm, o senhor passará o documento, e minha filha será sua esposa...

— Mas, permita, minha senhora, que...

— É inútil, senhor, toda e qualquer reclamação. Repito que só consentirei no casamento de minha filha com o senhor, ou seja com quem for, nas condições apresentadas. Se quer algum tempo para refletir, pode retirar-se; dou-lhe quinze dias.

Leandro, que agora parecia ouvir minhas palavras como ouve um condenado a sentença de morte, apertava os lábios, franzia as sobrancelhas e cerrava os punhos, mal contendo a sua agonia. Afinal, disse com o ar submisso e a voz resignada:

— Para que refletir, minha senhora?... Estou disposto e estou pronto para tudo. Aceito o compromisso!

— Pois aí, na saleta ao lado, declarei, erguendo-me da cadeira — encontrará o senhor papel e tinta; passe o documento pela minuta que lhe vou dar. Já a tenho escrita. Com licença.

E saí da sala, para ir buscar a minuta à gaveta da minha secretária, e principalmente para respirar, no alívio daquela solução.

Ah! felizmente estava passado o grande escolho!

De volta fui ter com Palmira. À minha primeira palavra, ela declarou, enrubescendo e sorrindo, que ouvira toda a minha conversa com Leandro.

— Bisbilhoteira!... E o que tens a observar?... perguntei-lhe.

— Eu?... Mamãe bem sabe que sempre acho bem feito tudo o que a senhora fizer...

Dei-lhe um beijo na testa e voltei ao salão, depois de fazer-lhe sinal que podia vir também.