Livro de uma Sogra/XV
Já próximos do casamento, consultei Leandro a respeito do seu futuro e aconselhei-o que deixasse o emprego público pelo comércio. Eu me comprometia a ajudá-lo e me encarregaria de encaminhar as coisas, no caso que ele aceitasse o meu alvitre. César, que dispunha de boas relações na praça, tomou a seu cargo descobrir um sócio que conviesse ao rapaz. Eu entraria com a metade do capital, escondida atrás da firma de meu genro; a outra metade sairia do dote de Palmira.
O generoso médico, para quem minha família não tinha segredos, tomava crescente interesse pelos noivos. Seria ele um dos padrinhos de Palmira. Entusiasmava-o aquele casamento, assim levado a efeito contra todas as danosas praxes convencionais; prefigurava-se-lhe o meu original proceder alta lição doméstica, e dizia que a minha firmeza, em realizar o difícil plano concebido, dava uma bela cópia da energia do meu caráter, e havia de produzir obra de grande alcance sobre a futura orientação da vida conjugal. Fazia-me vaidosa o bom amigo! E começou a empenhar-se por Leandro com tão boa vontade, que o rapaz podia dizer encontrar nele um pai melhor que o verdadeiro. Foi César, enfim, quem moralmente o preparou para representar, junto de Palmira, o papel que eu lhe havia designado; sem essa inteligente e perseverante ajuda, não sei se teria conseguido chegar, vitoriosa, ao fim da minha empresa.
Leandro pediu a sua exoneração do emprego público na mesma semana do casamento.
Este foi num sábado, às cinco horas da manhã, sem pompas e sem ruídos; era nada mais que o meio de coonestar o namoro com minha filha. O seu estado de noivos continuava por bem dizer como dantes; simplesmente, já desposados, gozavam de mais liberdade entre si, e poderiam, à sorrelfa, ir mais longe nos seus galanteios. Quis, intencionalmente, criar-lhes um transitivo período de beijos furtados e desejos mal contidos. Isso era necessário. Seria preferível essa iniciação da sexualidade a deixá-los, conforme o costume, promiscuamente encerrados numa alcova, durante muitos dias seguidos.
É torpe lançar na mesma cama, sem transição, um rapaz e uma donzela, que horas antes se tratavam ainda com certa cerimônia e só se amavam por palavras, olhares e sorrisos. O salto é muito brusco; há de fatalmente perturbá-los. Reinará sempre mais vexame do que felicidade entre o casal que se vê duramente entalado na decantada lua-de-mel.
Não penso, todavia, como o Conde de Tolstoi, que o noviciado do amor seja análogo ao noviciado do vício de fumar, e produza no iniciante as mesmas náuseas e os mesmos incômodos; males terríveis, que os pacientes, não obstante, disfarçam em ambos os casos, sem coragem para dizer francamente que a lua-de-mel é uma repugnante tortura, e que o fumar não merece as honras de um belo prazer. Não! o amor é natural, e por isso não deve causar náuseas, no começo, como no fim. A lua-de-mel, consoante nossas práticas, é que não é natural, e deve constranger tanto a noiva como o noivo. Ela fica mortalmente ferida no seu ingênito decoro de mulher, e no seu congenial pudor de donzela; e ele, naturalmente ainda mais tímido que a sua companheira de suplício, pois todo o homem, em questões de amor, é sempre mais tímido que qualquer mulher, sofre revoltado pelo grosseiro e agressivo papel de verdugo, que tem de representar contra uma virgem, pela qual, no seu enlevo de amante, daria a vida se fosse reclamada.
Além disso, nas cruentas vicissitudes do iniciamento conjugal, revelam-se na esposa naturais manifestações que, por decoro, devem ser escondidas aos olhos de todo e qualquer homem, ainda mesmo que seja este o próprio consorte.
É preciso, em hora da moral e do respeito à natureza, que a consumação do amor, venha, não ex-abrupto, mas como o fatal e último elo de uma deliciosa e progressiva cadeia de ternuras; é preciso que ela seja a extrema nota de um crescendo de beijos; é preciso que esse momento supremo chegue naturalmente, chamado por todo o corpo, reclamado por todos os sentidos, e não decretado friamente por uma lei sacramental, numa situação adrede preparada pela família dos noivos. Para que tão transcendente destino fisiológico se cumpra, sem detrimento do pejo feminil e da dignidade virginal, é indispensável que os dois agentes não tenham, no ato, absoluta consciência, nem a menor preocupação de o consumarem; é preciso que seu arroubo amoroso haja chegado à loucura, depois de vibrada toda a escala de carícias, e lhes roube, nesse súbito instante delicioso, a luz do julgamento e da razão; e que os dois, na insânia do seu desejo, sem juízo para refletir, sem olhos para ver, esquecidos de tudo e cada um de si mesmo, se confundam num só desvairamento de volúpia, e só acordem do seu transporte, e só dêem acordo do seu espírito, depois da ampla consumação carnal.
A crise amorosa, levada pelas carícias ao auge do desejo, atinge às proporções do delírio; e esse delírio, essa momentânea inconsciência dos atos praticados, é o véu providencial com que a natureza esconde, castamente, no supremo instante da vitória da carne, a nudez do homem aos olhos da mulher, a nudez da mulher aos olhos homem.
Sem esse véu, que os envolve e os oculta à vergonha um do outro, o primeiro amor de uma donzela fica tão prostituído como esses frios amores que os libertinos compram no regaço das perdidas. Ao contrário de que disse S. Mateus, do versículo 28 do seu livro, e com o que Tolstoi fecha o seu duro libelo niilista contra a propagação da espécie, todo o contato carnal, que não vier precedido de um desejo invencível, é imoral e vicioso. E, pois, todo o enlace de sexo, produzido exclusivamente pela fatalidade dos instintos, sem intervenção absoluta da vontade moral, não é obra da criatura, e sim da natureza, ou de Deus, e como tal deve ser respeitável e sagrado, seja ele na vida dos homens, ou na vida dos brutos, ou na vida das plantas; ou, quem sabe? na vida dos astros!
Haverá coisa mais repugnante e mais estúpida do que esse velho costume de preparar a cama dos noivos? e cobri-la de flores, e cercá-la de obscenos cuidados? E mais: depois de um baile, depois de escandalosas fórmulas e cerimônias, em que entram véus brancos e grinaldas de flores simbólicas e depois da vexatória exposição das duas vítimas a todos os olhares e íntimos juízos dos convidados, conduzir a pobre noiva, toda paramentada, para o quarto que lhe destinam, para o toro do defloramento, no meio de um cerimonial de palavras e gestos, trocados entre madrinhas e padrinhos; e depois — abandoná-la ao noivo, de quem se presume não haja nunca recebido uma carícia sensual; e deixá-los a sós, presos na mesma alcova, forçosamente distraídos do seu desejo, a olharem-se um para o outro, sem ter nenhum o que dizer, que não seja afetado e banal; ela a tremer, intimidada pelo desconhecido e pelo terror do que a espera; ele constrangido e aflito, por sentir-se fora de seus hábitos regulares e longe do seu bem-estar, e tendo de despir-se ali mesmo, defronte de uma virgem, e deitar-se com ela na mesma cama, e, afinal, tomá-la convencionalmente nos braços, enquanto a paciente, com toda a lucidez do seu espírito, entanguida e sarapantada de susto, em vez de pensamentos de amor, em vez do apócrifo "Enfin seuls", só rumina e babuja entredentes esta frase ridícula e medrosa: "É agora!"
Então, haverá coisa mais repulsiva e mais bárbara do que isto?
Ainda hoje me doem amargamente no coração as angústias que sofri na minha primeira noite de casamento, e juro, não obstante, que amava muito meu marido, e que, muito e muito, o desejei antes, nos meus enganosos sonhos de felicidade. Mas, quando me vi a sós com ele, fechada no mesmo quarto, o meu desejo único foi fugir e pedir socorro.
Toda aquela indecorosa encenação de amor; todo aquele cerimonial de que cercaram o meu tálamo; todo aquele desusado e insociável luxo de que sobrecarregaram o aposento, iluminado por uma lâmpada de vidro azul; e o luxo afetado e espetaculoso da cama, e o luxo intencional de rendas e fitas na camisa que me vestiram, e os calculados perfumes que me puseram no corpo; tudo isso, tudo me sobressaltava e me fazia nervosa. Demais, o ar de Virgílio também me constrangia: ele não tinha nessa ocasião as suas maneiras simples, o seu ar franco e simpático de bom rapaz; estava até esquerdo, desajeitado, procurando disfarçar o seu invencível embaraço.
A verdade é que nos sentíamos corridos e vexados, comparecendo assim, um defronte do outro, naquele isolamento de alcova, mais que os dois criminosos do paraíso, no momento do pecado capital. Prenderam-nos ali dentro, para quê? Para uma coisa inconfessável e ridícula, desde que não era naturalmente provocada pelos transportes da nossa mocidade, posta em jogo pelo amor. Não tínhamos palavras um para o outro. Virgílio, todavia, caiu-me aos pés, beijou-me as mãos e agradeceu-me com bonitos termos — aquela felicidade — que lhe era, afinal, concedida, depois de tanto desejada.
Aquela felicidade! mas eu sentia perfeitamente que tudo isso, afirmado por ele nessa ocasião, não era sincero; dizia-o para dizer alguma coisa, para dar qualquer solução àquela cena difícil; e o que eu lhe respondi foi tão falso como o que ele me mentiu. Se eu lhe pudesse falar com franqueza, se não fosse ofendê-lo confessar-lhe a verdade, dir-lhe-ia que, naquele momento, o meu desejo era só, e só, que ele se retirasse da minha presença; dir-lhe-ia que, naquele instante, tudo desejaria, menos fazer a consumação carnal do amor que eu lhe dedicava.
E percebi claramente que Virgílio ia lançar-se nos meus braços, não por impulso do seu amor, aliás forte e verdadeiro, mas porque era essa a sua obrigação de noivo; percebi claramente, e afianço, que, se ele pudesse saltar por cima dessa noite difícil, sem tocar-me no corpo, e acordar no dia seguinte já familiarizado comigo, e já desoprimido do constrangimento que a nós ambos vexava — aceitaria essa graça como um presente do céu. E, no entanto, ia se despindo, afetando um grande empenho em achar-se ao meu lado, na cama...
Pobre de nós! começamos a mentir um para o outro desde o primeiro dia do nosso consórcio.
E eu já não tremia; sentia-me agora revoltada, sentia raiva! contra quem, não sei; mas sentia ódio, sentia cólera. Não que me repugnasse a idéia do primeiro contato com um homem; não que tanto me apavorasse o segredo nupcial; mas porque não caminhara até ali arrebatada pelas garras do meu desejo; arrastada pelos impulsos do meu sexo, e porque tudo aquilo grosseiramente desrespeitava o meu direito de vontade, rebaixava o meu caráter e ofendia o meu pudor.
A minha noite de núpcias foi, pois, uma noite de sacrifícios, nem só para mim, como sem dúvida para meu marido. Não lhe compensara, decerto, tamanho constrangimento o complicado prazer, que porventura lhe proporcionou o nosso primeiro contato, no formal desempenho daquele grosseiro enlace.
Não tive o menor gozo; tudo me fez sofrer, sofrer deveras; não só no moral, como fisicamente, e muito. Sofri e padeci, porque, na preocupação sobressaltada de esperar aquela noite, e no constrangimento e no choque daquele primeiro encontro, assim tão cerimonioso, tão previsto e tão festejado, meu corpo, sem atingir o necessário grau de apetite sexual, privou-se da indispensável e benéfica lubrificação com que a natureza protetoramente habilita e prepara, em tais casos, os nossos delicados órgãos do amor. E essa falta transformou um ato, que devia ser bom e natural, em verdadeira violência. Fez-me doer; fez-me chorar.
Apesar de toda a minha ingenuidade de donzela, compreendi que não era aquilo, com certeza, o que a natureza queria desempenhar; não era aquilo que todo o meu corpo adivinhava depois da puberdade, reclamando-o com delícia, e enchendo-me os sonhos de amorosos enleios voluptuosos, em que o espírito se me aniquilava e só a matéria palpitava de gozo. Não! ali, naquela terrível noite, a minha razão não sucumbiu, nem os meus próprios sentidos tomaram parte na vergonhosa pugna; fiz-me paciente resignada, cônscia de estar cumprindo uma obrigação penosa, aflita por ver-me livre de semelhante sacrifício. Que fosse o verdugo meu marido, fosse Virgílio ou qualquer outro homem, ser-me-ia igual, porque não era o amor que lhe votava o que me retinha pregada àquela cruz, crucificada naquele pomposo leito de dores.