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Livro de uma Sogra/XVIII

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Com orgulho e com prazer declaro que a vida conjugal de minha filha ia por diante, desenrolando-se feliz. Meu genro continuava a morar sozinho em Botafogo e nós duas no bairro de Laranjeiras. Ao fim de vinte meses de casados, Leandro era para a sua adorada Palmira o mesmo amante dos primeiros dias.

Mas é que nunca se aproximou dela nos períodos em que a Bíblia manda que homem se afaste da mulher — por imunda; nem jamais demorada promiscuidade deu-lhes margem e vagar a que se estudassem em silêncio, no enojo de bocejados lazeres, ao lado um do outro na mesma cama, quando o corpo cansado de amar, deixa que só o pensamento trabalhe por sua conta própria, enquanto ele repousa. Nunca enfim tiveram ocasião de enfastiar-se juntos, consorcialmente, porque o tempo de que dispunham nas suas desejadas entrevistas era pouco para os interesses de seu amor e para o muito que cada um, de parte a parte, tinha para dizer ao companheiro, com respeito à felicidade de ambos.

Eram felizes. Contudo, mais de uma vez, tentou Leandro imbecilmente revoltar-se contra mim, queixando-se com amargura da suposta falsa posição que eu lhe impusera ao lado da esposa. Chamei-o à razão e ao bom desempenho da sua palavra de honra, sem lhe dar todavia segura explicação do meu modo de proceder, porque me não convinha ainda que ele alcançasse por inteiro o secreto espírito das minhas intenções. Palmira também, a princípio, não parecia muito disposta a conformar-se com o meu regime estabelecido, mas tal carinho pus no que lhe disse, e tal eloqüência emprestou a meu amor de mãe as minhas palavras, que se ela em verdade não se deu por convencida, pelo menos entregou-me os pulsos resignada.

Não me desgostava ouvir-lhe as queixas; sinal era de que amava fisicamente o marido, virtude esta que se vai fazendo rara em nossos dias.

— Olha, minha filha, disse-lhe uma vez, enquanto costurávamos à mesma mesa — o que não poderás negar são as vantagens, que tens sobre as outras esposas, com este sistema de vida conjugal que te arranjei... O casamento, longe de roubar-te aos prazeres que dantes desfrutavas na sociedade, veio trazer-te novos, sem falar no inestimável gozo de satisfação do amor instintivo que ainda não conhecias. Continuas a ter hoje, em minha companhia, os teus bailes, os teus passeios e os teus teatros, como no tempo de solteira; teu marido, sempre enamorado te ti, nunca falta aos pontos onde saiba que estejas. Entre os homens que te galanteiam é sempre ele o mais solícito em merecer-te as graças, em requestar-te, em perseguir-te como verdadeiro apaixonado.

Ora, quero que me digas quantas senhoras casadas encontras tu por aí nestas condições a respeito dos competentes maridos?...

— Nenhuma...

— Pudessem eles e nunca em público compareceriam ao lugar onde elas se acham, ainda mesmo quando as amem.

E isso por quê? porque sabe cada qual de antemão que, ao recolher-se à casa, há de invariavelmente encontrar a mulher à sua espera, e que terá a sua companhia por toda a noite, e por todo o dia seguinte, e pelos outros depois, e por todos os que seguirem, e enfim, por toda a vida! "Estamos unidos para sempre!" suspira o desgraçado.

E vê, minha filha, repara quanto esta frase é terrivelmente assustadora! repara como é ela em tudo oposta a essa outra frase, que teu marido repete todas as vezes que tão amargamente se queixa de mim: "Nunca estou com minha mulher todo o tempo que desejo!" sem se lembrar, o ingrato! que nisso consiste justamente o segredo da felicidade de vocês dois! Vamos, confessa qual das duas esposas é a mais feliz — aquela, cujo marido se preocupa com a irremediável eternidade da sua união; ou tu, minha tolinha, cujo marido lamenta a cada instante que as horas passadas contigo nunca são tantas e tão longas quanto ele desejava?...

— Mas, observou Palmira — eu amo tanto meu marido!... Não me cansaria em estar ao lado dele...

— É o que te parece agora, como a todo o sujeito, atormentado pelo apetite, parece que se não cansaria de comer! Estivessem vocês sempre e sempre juntos, e haverias de dar razão às minhas palavras...

— Ora, mamãe, não há de ser tanto assim... murmurou ela.

— E, se não podes responder por ti, quanto mais por ele!...

— Oh! Ele me ama deveras! Disso tenho eu certeza!

— E eu também. E justamente para que essa bela chama não se extinga, dou-me ao cuidado de reformar-lhe o combustível!

Palmira soltou uma risada e não insistiu no assunto. Mas, à noite desse mesmo dia, a questão voltou com mais força. Meu genro, quando veio para jantar, trazendo, como de costume, flores para a mulher e uma pequena lembrança literária para mim (creio que dessa vez foi um livro de Olavo Bilac), percebeu logo, pela conversa travada entre nós duas, que ele essa noite iria para Botafogo, pois havia já três seguidas que ficava com Palmira.

Não protestou logo, apenas franziu o nariz. À sobremesa, porém, começou a lamentar-se sozinho em casa — e que, com fraqueza, antes não tivesse casado — e que era preferível não amar a esposa com ele a amava — e não sei que muitas outras frases deste gênero.

Fingi não perceber a sua rabugice e, para mudar de conversa, falei-lhe de interesses comerciais, atirando-lhe perguntas sobre perguntas sobre perguntas, a que tinha ele de responder a todas. Mas Leandro, que se conservava ao lado da mulher, não descia da sua preocupação e, por meias palavras em segredo e gestos dissimulados, instigava Palmira a protestar contra meu arbítrio. Palmira, a furto, olhava-me suplicante.

Findo o jantar fomos jogar o pôquer, e ele durante o jogo parecia cada vez mais contrariado. Ao chá mostrou-se ainda carinhoso com minha filha, não obstante ir visivelmente se agravando o seu mau humor à medida que se aproximava a hora da separação. E depois do chá deixou-se ficar conversando, sem se resolver a tomar o chapéu e a bengala.

Levantei-me e chamei o criado para dizer-lhe que se preparasse para apagar as luzes e fechar a casa, porque o senhor Leandro ia sair. Palmira então veio ter comigo, com o ar embaraçado, as mãos um tanto frias; deu-me um beijo, e pediu-me, hesitante, comovida, e em segredo, que eu consentisse, ao marido passar com ela ainda aquela noite.

Durante isto, meu genro, sem abalar donde estava, sacudia com impaciência a perna que tinha dobrada sobre a outra. E olhava-me à esconsa.

— Não! não! respondi à minha filha.

— Mamãe!...

— Ele já cá ficou três noites seguidas... É preciso que se vá embora.

Palmira ia insistir a fazer-me novas carícias, mas o marido interrompeu-a secamente, erguendo-se.

— Não insistas! disse. Para quê?... Deixa lá tua mãe! Ela não quer! Acabou-se!

Não dei palavra. E ele acrescentou, sem se poder conter: — Ora! afinal isto é humilhante e ridículo para mim! Não sei agora que me parece ser preciso andar eu solicitando, como um grande favor, uma coisa que no fim de contas é do meu direito!

Era a primeira vez que meu genro me falava com semelhante aspereza. Até aí sempre me guardara respeito, fugindo até a discutir comigo. Produziram-me pois má impressão o tom e a forma do seu protesto; mas, no íntimo dos meus interesses maternais, ria de gozo por ver aquele desespero com que o pobre rapaz disputava mais uma noite ao lado da esposa, e a comoção e ardor com que esta o acompanhava nesse empenho.

Definitivamente o suspirado milagre do amor matrimonial tinha-o eu realizado em benefício de minha filha!

Mas Leandro prosseguiu entredentes:

— Afinal, por menos que se pareçam as sogras, hão de ser sempre sogras!

— Que quer meu genro dizer com isso?... perguntei, agora ressentida, a despeito de tudo.

Aquela terrível palavra "Sogra", tão mal reputada e tão corrompida pelo mau gosto dos zombeteiros da imprensa, lançada assim à queima-roupa, produziu-me o efeito do mais feio insulto.

Ele respostou:

— Ora, que quero dizer!... Quero dizer que a senhora minha sogra abusa do pacto feito entre nós quando me casei! E abusa da sua posição de minha benfeitora, contrariando-me e torturando-me só pelo gostinho de ser sogra!

Palmira interveio a favor dele, mas em tom modesto.

— Leandro tem razão, mamãe! Que mal faz que ele fique hoje comigo? Ele é meu marido!...

— E a senhora que gosta tanto de citar a Bíblia, reforçou meu genro, devia saber que ela manda à mulher deixar pai e mãe para seguir o marido.

— É, mamãe! A Bíblia manda!... confirmou minha filha com uma carinha brejeira. Lembre-se de que Deus disse a Eva para obedecer a Adão e acompanhá-lo por todo lugar onde ele fosse!

— Mas, observei-lhe, Eva não tinha mãe, a seu lado, que, se a tivesse, não daria ouvidos à serpente...

— Oh! exclamou Leandro agastado. Dir-se-ia que a senhora me chamou "Serpente!" Serpente! Tem graça!... Eu é que sou a serpente!... Pois, minha senhora, se aqui temos pomo de discórdia, não sou eu com certeza que o promovo. E, quanto ao fato de Eva não ter mãe, digo-lhe então, francamente que Adão, esse é que era deveras um felizardo, porque não tinha sogra! Ouviu, minha senhora? — Não tinha sogra.

E depois de passear agitado pela sala, respingou ainda, enquanto eu, assentada junto à mesa, percorria as páginas de uma ilustração:

— Serpente! Ora esta! — Serpente!

— Eu lhe não chamei de serpente, homem de Deus! disse afinal, fitando-o através das minhas lunetas. O senhor não tem razão! Creio que até agora ainda não exorbitei dos meus direitos ajustados antes do casamento! O senhor é que se está excedendo, meu genro!

E tornei ao jornal.

Ele serenou um pouco e prosseguiu depois, sem deixar de espacear pela sala:

— Mas enfim, queria que me dissessem que mal viria ao mundo, se eu ficasse hoje ao lado da Palmira!...

E parou defronte de mim, para me falar em voz mais baixa: — Quer que lhe diga então uma coisa, Sra. D. Olímpia? A senhora, com essas suas exigências, faz-me ter idéias que me repugnam! Eu amo muito minha mulher; sou homem, sinto-me comovido ao lado dela; desejo-a; (E creio que com isso não cometo um crime!) mas, depois de jantarmos juntos e juntos passarmos algumas horas tenho de retirar-me e meter-me sozinho em casa? Ora diga-me: parece-lhe que seria muito censurável, se eu, ao sair daqui, fosse procurar onde não tenho direito às consolações de que a senhora me priva ao lado da única mulher que legitimamente mas pode dar?...

— Leandro! Leandro, não digas isso! exclamou minha filha, correndo a lançar-se nos braços do marido. Ouça, mamãe! ouça o que ele está dizendo!...

— Não te podes queixar de mim, filhinha! respondeu meu genro, triunfante com o seu estratagema. Queixa-te de tua própria mãe!

— Não! protestou ela, passando-lhe os braços em volta do pescoço e beijando-o. Não quero que digas isso, mesmo sabendo que serias incapaz de semelhante deslealdade!

E correndo de novo para mim, já com as lágrimas a quebrarem-lhe a voz: — Vamos, mamãe, diga-lhe por amor de Deus que fique! Bem vê que estas coisas me põem nervosa! — E batendo com o pé: — Eu não consinto que Leandro vá hoje daqui sozinho! Se mamãe não o deixa ficar, sou eu que me vou com ele! Sozinho já o não deixo hoje!

— Pois fiquem juntos! fiquem! respondi finalmente, erguendo-me, disposta a retirar-me para o quarto. Vocês no fim de contas não passam de duas crianças, e fazem-me a mim também criança!

Palmira pôs-se a saltar, batendo palmas; e, assim aos saltos, veio até a mim, apanhou-me o rosto com ambas as mãos e cobriu-me de beijos estalados.

Leandro, cuja fisionomia fora a pouco e pouco se abrindo e alegrando, chegou-se também para despedir-se de mim.

Notei, no seu olhar, que ele me agradecia sinceramente aquela concessão.

— Vá! Vá! disse-lhe eu, batendo-lhe uma amigável palmada no ombro. Mas fica para outra vez prevenido desde já de que, quanto mais longe forem as suas ameaças, tanto pior para o senhor... Deus lhes dê muita boa noite!

Apertei-lhe a mão, beijei inda uma vez Palmira e retirei-me para o meu quarto.

Bem ouvi ainda resmungar meu genro com a mulher. Queixava-se de mim, naturalmente. Compreendi que nesse momento estava sendo amaldiçoada por ele, mas sentia-me radiante, porque tinha ampla convicção de que minha filha, apesar de casada havia já quase dois anos, ia ser feliz, muito feliz, nos braços do esposo.

Recolhida, depois da minha habitual oração, em que pedia a Deus continuasse a dar-nos, a ela a felicidade e a mim forças para poder zelar por esta, deitei-me e adormeci, com a alma nadando em júbilo.

Tinha eu conseguido boa parte do meu ideal. À custa daqueles dúbios enfados e arrufos passageiros, a grande ilusão do amor instinto, a deliciosa quimera da felicidade sexual, mantinha-se equilibrada, sem cair por terra como desalada mentira, nem perder-se no vago como desvairado sonho.

Mas, dentro em pouco, uma grande ocorrência vinha alterar nossa vida, tão custosamente bem feita, e revolucionar-nos a casa, abrindo entre minha filha e meu genro uma cena cruel, cena de lágrimas e soluços, agora verdadeiros, de verdadeirador.