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Luís Soares/I

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Trocar o dia pela noite, dizia Luiz Soares, é restaurar o imperio da natureza corrigindo a obra da sociedade. O calor do sol está dizendo aos homens que vão descansar e dormir, ao passo que a frescura relativa da noite é a verdadeira estação em que se deve viver. Livre em todas as minhas acções, não quero sujeitar-me á lei absurda que a sociedade me impõe: velarei de noite, dormirei de dia.

Contrariamente a varios ministerios, Soares cumpria este programma com um escrupulo digno de uma grande consciencia. A aurora para elle era o crepusculo, o crepusculo era a aurora. Dormia doze horas consecutivas durante o dia, quer dizer das seis da manhã ás seis da tarde. Almoçava ás sete e jantava ás duas da madrugada. Não ceiava. A sua ceia limitava-se a uma chicara de chocolate que o criado lhe dava ás cinco horas da manhã quando elle entrava para casa. Soares engulia o chocolate, fumava dous charutos, fazia alguns trocadilhos com o criado, lia uma pagina de algum romance, e deitava-se.

Não lia jornaes. Achava que um jornal era a cousa mais inutil d’este mundo, depois da camara dos deputados, das obras dos poetas e das missas. Não quer isto dizer que Soares fosse athêo em religião, politica e poesia. Não. Soares era apenas indifferente. Olhava para todas as grandes cousas com a mesma cara com que via uma mulher feia. Podia vir a ser um grande perverso; até então era apenas uma grande inutilidade.

Graças a uma boa fortuna que lhe deixára o pai, Soares podia gozar a vida que levava, esquivando-se a todo o genero de trabalho e entregue sómente aos instinctos da sua natureza e aos caprichos do seu coração. Coração é talvez de mais. Era duvidoso que Soares o tivesse. Elle mesmo o dizia. Quando alguma dama lhe pedia que elle a amasse, Soares respondia:

— Minha rica pequena, eu nasci com a grande vantagem de não ter cousa nenhuma dentro do peito nem dentro da cabeça. Isso que chamão juizo e sentimento são para mim verdadeiros mysterios. Não os compreendo porque os não sinto.

Soares accrescentava que a fortuna suplantára a natureza deitando-lhe no berço em que nasceu uma boa somma de contos de réis. Mas esquecia que a fortuna, apezar de generosa, é exigente, e quer da parte dos seus afilhados algum esforço proprio. A fortuna não é Danaide. Quando vê que um tonel esgota a agua que se lhe põe dentro vai levar os seus cantaros a outra parte. Soares não pensava n’isto. Cuidava que os seus bens erão renascentes como as cabeças da hydra antiga. Gastava ás mãos largas; e os contos de réis, tão difficilmente accumulados por seu pai, escapavão-se-lhe das mãos como passaros sequiosos por gozarem do ar livre.

Achou-se, portanto, pobre quando menos o esperava. Um dia de manhã, quer dizer ás ave-marias, os olhos de Soares vírão escriptas as palavras fatidicas do festim babylonico. Era uma carta que o criado lhe entregára dizendo que o banqueiro de Soares a havia deixado á meia-noite. O criado falava como o amo vivia: ao meio-dia chamava meia-noite.

— Já te disse, respondeu Soares, que eu só recebo cartas dos meus amigos, ou então...

— De alguma rapariga, bem sei. É por isso que lhe não tenho dado as cartas que o banqueiro tem trazido ha um mez. Hoje, porém, o homem disse que era indispensavel que lhe eu désse esta.

Soares sentou-se na cama, e perguntou ao criado meio alegre e meio zangado:

— Então tu és criado dele ou meu?

— Meu amo, o banqueiro disse que se trata de um grande perigo.

— Que perigo?

— Não sei.

— Deixa ver a carta.

O criado entregou-lhe a carta.

Soares abrio-a e leu-a duas vezes. Dizia a carta que o rapaz não possuía mais que seis contos de réis. Para Soares seis contos de réis erão menos que seis vintens.

Pela primeira vez na sua vida Soares sentio uma grande commoção. A idéa de não ter dinheiro nunca lhe havia acudido ao espirito; não imaginava que um dia se achasse na posição de qualquer outro homem que precisava de trabalhar.

Almoçou sem vontade e sahio. Foi ao Alcazar. Os amigos achárão-o triste; perguntárão-lhe se era alguma mágoa de amor. Soares respondeu que estava doente. As Lais da localidade achárão que era de bom gosto ficarem tristes também. A consternação foi geral.

Um dos seus amigos, José Pires, propôz um passeio a Botafogo para distrahir as melancolias de Soares. O rapaz aceitou. Mas o passeio a Botafogo era tão commum que não podia distrahil-o. Lembrárão-se de ir ao Corcovado, idéa que foi aceita e executada immediatamente.

Mas que ha hi que possa distrahir um rapaz nas condições de Soares? A viagem ao Corcovado apenas lhe produzio uma grande fadiga, aliás útil, porque, na volta, dormio o rapaz a somno solto.

Quando acordou mandou dizer ao Pires que viesse fallar-lhe immediatamente. D’ahi a uma hora parava um carro á porta: era o Pires que chegava, mas acompanhado de uma rapariga morena que respondia ao nome de Victoria. Entrárão os dous pela sala de Soares com a franqueza e o estrepito naturaes entre pessoas de familia.

— Não está doente? perguntou Victoria ao dono da casa.

— Não, respondeu este; mas por que veio você?

— É boa! disse José Pires; veio porque é a minha chicara inseparavel... Querias fallar-me em particular?

— Queria.

— Pois fallemos ahi em qualquer canto; Victoria fica na sala vendo os albuns.

— Nada, interrompeu a moça; nesse caso vou-me embora. É melhor; só imponho uma condição: é que ambos hão de ir depois lá para casa; temos ceiata.

— Valeu! disse Pires.

Victoria sahio; os dous rapazes ficárão sós.

Pires era o typo do bisbilhoteiro e leviano. Em lhe cheirando novidade preparava-se para instruir-se de tudo. Lisonjeava-o a confiança de Soares, e adivinhava que o rapaz ia communicar-lhe alguma cousa importante. Para isso assumio um ar condigno com a situação. Sentou-se commodamente em uma cadeira de braços; pôz o castão da bengala na boca e começou o ataque com estas palavras:

— Estamos sós; que me queres?

Soares confiou-lhe tudo; leu-lhe a carta do banqueiro; mostrou-lhe em toda a nudez a sua miseria. Disse-lhe que n’aquella situação não via solução possivel, e confessou ingenuamente que a idéa do suicidio o havia alimentado durante longas horas.

— Um suicidio! exclamou Pires; estás doudo.

— Doudo! respondeu Soares; entretanto não vejo outra sahida n’este becco. Demais, é apenas meio suicidio, porque a pobreza já é meia morte.

— Convenho que a pobreza não é cousa agradavel, e até acho...

Pires interrompeu-se; uma idéa subita atravessára-lhe o espirito: a idéa de que Soares acabasse a conferencia por pedir-lhe dinheiro. Pires tinha um preceito na sua vida; era não emprestar dinheiro aos amigos. Não se empresta sangue, dizia elle.

Soares não reparou na phrase cortada do amigo, e disse:

— Viver pobre depois de ter sido rico... é impossivel.

— N’esse caso que me queres tu? perguntou Pires, a quem pareceu que era bom atacar o touro de frente.

— Um conselho.

— Inutil conselho, pois que já tens uma idéa fixa.

— Talvez. Entretanto confesso que não se deixa a vida com facilidade, e má ou boa, sempre custa morrer. Por outro lado, ostentar a minha miseria diante das pessoas que me vírão rico é uma humilhação que eu não aceito. Que farias tu no meu lugar?

— Homem, respondeu Pires, ha muitos meios...

— Venha um.

— Primeiro meio. Vai para New-York e procura uma fortuna.

— Não me convem; n’esse caso fico no Rio de Janeiro.

— Segundo meio. Arranja um casamento rico.

— É bom de dizer. Onde está esse casamento?

— Procura. Não tens uma prima que gosta de ti?

— Creio que já não gosta; e demais não é rica; tem apenas trinta contos; despesa de um anno.

— É um bom principio de vida.

— Nada; outro meio.

— Terceiro meio, e o melhor. Vai á casa de teu tio, angaria-lhe a estima, dize que estás arrependido da vida passada, aceita um emprego, emfim vê se te constitues seu herdeiro universal.

Soares não respondeu; a idéa pareceu-lhe boa.

— Aposto que te agrada o terceiro meio? perguntou Pires rindo.

— Não é máo. Aceito; e bem sei que é difficil e demorado; mas eu não tenho muitos á escolha.

— Ainda bem, disse Pires levantando-se. Agora o que se quer é algum juizo. Ha de custar-te o sacrificio, mas lembra-te que é o meio unico de teres dentro de pouco tempo uma fortuna. Teu tio é um homem achacado de molestias; qualquer dia bate a bota. Aproveita o tempo. E agora vamos á ceia da Victoria.

— Não vou, disse Soares; quero acostumar-me desde já a viver vida nova.

— Bem; adeos.

— Olha; confiei-te isto a ti só; guarda-me segredo.

— Sou um tumulo, respondeu Pires descendo a ascada.

Mas no dia seguinte já os rapazes e raparigas sabião que Soares ia fazer-se anachoreta... por não ter dinheiro nenhum. O proprio Soares reconheceu isto no rosto dos amigos. Todos parecião dizer-lhe: É pena! que pandego vamos nós perder!

Pires nunca mais o visitou.