Lucíola/XI
Encontram-se nas florestas do Brasil árvores preciosas, que, feridas, vertem em lágrimas o bálsamo que encerram.
Assim era, quando uma palavra involuntária da minha parte ofendia-lhe a suscetibilidade e banhava-lhe o rosto do pranto, que Lúcia me revelava toda a riqueza da sua alma.
As nossas relações duravam havia um mês; apenas algumas ligeiras nuvens, das que achamalotam o azul da atmosfera nas tardes calmosas, toldaram por vezes o nosso céu risonho. Mas, como brisa suave, o hálito de Lúcia as delgaçava logo, e elas se desvaneciam com um sorriso doce e carinhoso. Era eu que desastradamente acumulava sobre o nosso horizonte esses vapores do meu mau humor; e era ela que os expelia, não perdoando, mas pedindo perdão da ofensa que recebera.
A questão econômica, questão delicada em que se chocavam o seu nobre desinteresse e a minha dignidade, havia sido felizmente resolvida.
Tinha visto Lúcia esconder num vaso do toucador a chave da gaveta onde guardava o seu dinheiro. Cometi a indiscrição de abrir uma vez por semana essa gaveta, e deitar a soma que comportava com a minha fortuna e com o luxo em que ela vivia.
A primeira vez que isso sucedeu, foi na manhã seguinte à visita de Sé; todo o dia se passou sem a menor alteração, o que me tranqüilizou, porque estava firmemente resolvido a não ceder. Já por diversas vezes Lúcia tinha aberto a gaveta; era natural que houvesse percebido; e contudo não me dissera uma palavra.
A tarde porém pareceu-me ouvir ao longe rugir a tempestade.
— Mandei comprar um camarote!
— Se querias ir ao teatro, por que recusaste o que te ofereci ?
— Estou tão rica hoje! Não sei o que hei de fazer do dinheiro, respondeu sorrindo.
Veio nesse sorriso um espinho que entrou-me n'alma; olhei-a fixamente, porém já o seu rosto estava calmo e sereno. A consciência que eu tinha, de não ser bastante rico para essa mulher, pungia-me tanto e a cada momento, que à menor palavra dúbia, ao menor gesto equívoco, os meus brios se revoltavam. Farejava uma ironia até no seu próprio desinteresse, que podia ser inspirado pelo conhecimento de minha pobreza.
Mas essa foi a última ocasião em que Lúcia deu azo à minha desconfiança; desde então quando eu ia à gaveta do toucador, por mais que o disfarçasse, ela adivinhava imediatamente, não sei por que secreta revelação; e mal eu me sentava ao seu lado dizia-me com uma mansuetude e uma gratidão sublime, apertando a minha mão ao seio:
— Obrigada!
Como explicar essa rápida e extraordinária mudança? A mulher que dois dias antes se indignava com um oferecimento delicadamente feito, agora não só recebia o serviço oferecido, mas o agradecia com tanta efusão e reconhecimento! Teria nesse momento grande e urgente necessidade de dinheiro, ou a sua primeira recusa não fora sincera?
Compreenda, se pode; quanto a mim, expliquei as repugnâncias de Lúcia por um resto de pudor; e regozijei-me com as suas novas disposições, que vinham poupar-nos futuros dissabores.
Desde que os meus escrúpulos desapareciam com a posição que tomara, não havia motivo para deixar de beber a longo trago na taça do prazer, que Lúcia me apresentava sorrindo. Passava todo o meu tempo em sua casa e ao seu lado; conversávamos, ríamos, colhíamos as flores que a mocidade espargia em nosso caminho; e assim corriam as horas tecidas a fio de ouro e púrpura.
Às vezes lia para ela ouvir algum romance, ou a Bíblia, que era o seu livro favorito. Lúcia conservava de tempos passados o hábito da leitura e do estudo; raro era o dia em que não se distraía uma hora pelo menos com o primeiro livro que lhe caía nas mãos. Dessas leituras rápidas e sem método provinha a profusão de noções variadas e imperfeitos que ela adquirira e se revelavam na sua conversação. As segundas e quintas-feiras eu saía; mas apenas tinha comprado algumas galantarias que lhe destinava, já os pés me pruriam para tomar o caminho de sua casa. Depois de três ou quatro horas inutilmente desperdiçadas, voltava ao meu berço de rosas; e por mais cedo que chegasse, sempre chegava tarde para ela, e para mim.
Lúcia tinha a poesia da voluptuosidade.
«Fazer nascer um desejo, nutri-lo, desenvolvê-lo, engrandecê-lo, irritá-lo, afinal satisfazê-lo, diz Balzac, é um poema completo.:> Ela compunha esses poemas divinos com um beijo, um olhar, um sorriso, um gesto. Que de harmonias sublimes não arrancava da lira do amor com aquelas notas de sua chave voluptuosa! E a sua beleza admirável, como a sua graça infinita, davam sempre àqueles hinos do prazer uns retoques originais.
Entretanto devo dizer-lhe: nunca mais admirei essa mimosa criatura no esplendor da sua beleza. A cortesã que se despira friamente aos olhos de um desconhecido, em plena luz do dia ou na brilhante claridade de um salão, não se entregava mais senão coberta de seus ligeiros véus: não havia súplicas, nem rogos que os fizessem cair. As vezes e quantas, ela chegava-se para mim corando, e começava a olhar-me com os seus grandes olhos negros, tão afogados em languidez, que eu percebia imediatamente o turbilhão de desejos que se agitava naquele seio ofegante. E quando a tomava nos meus braços, debatia-se esgarçando com prazer as rendas e a escumilha, até que, rendida na luta que provocava, caia trêmula e palpitante no meu peito.
Apesar de minhas instâncias, Lúcia recusava ir ao teatro, sair a passeio, ou gozar de algum dos poucos divertimentos que lhe oferecia esta insípida cidade.
— Não sei quanto tempo durará a minha felicidade; e não quero esperdiçá-la.
— Eu te acompanharei!
— Nem eu devo aceitar esse sacrifício que o comprometeria; nem que o aceitasse, me podia divertir. Não estaríamos sós!
Eis a situação em que nos achávamos quando uma manhã, passando pelo hotel, achei uma carta de convite para uma partida. O Sr. R..., a quem fui recomendado por amigos de minha província, pedia-me encarecidamente que ao menos no dia dos anos de sua senhora lhe desse o prazer de ver-me em sua casa. Realmente estava em falta para com a família, que apenas visitara com um cartão, e à qual devia muitas finezas! Era ocasião de reparar a minha descortesia.
Mostrei a carta a Lúcia:
— Deve ir, respondeu adivinhando o meu pensamento!
— Entretanto tu renuncias aos teus divertimentos por minha causa. Por que não farei o mesmo?
— Essa partida não é só um divertimento para o senhor, é também um dever.
— Assim queres que vá me divertir sem ti?
— Não o posso acompanhar! disse ela com uma expressão que significava-um abismo nos separa.
Fui à partida, que esteve brilhante. Lá a encontrei, à senhora, e à sua filha, anjo que ainda não tinha batido as asas brancas, deixando viúvas a velhice e a infância de quem tanto amara neste mundo. Havia moças lindas e elegantes, que tornavam a dança verdadeiro prazer, e não sacrifício penoso, como sucede na maior parte desses saraus, em que o convidado é apenas um instrumento de quadrilha, compasso coreográfico, que se transforma na hora da ceia em máquina gastronômica.
A Sr.ª R..., com uma amabilidade que eu decerto não merecia, esmerou-se em tornar agradáveis as horas que passei em sua casa: apresentou-me a quanto havia ali de distinto pela beleza, pela inteligência e pela virtude; e com o tato fino da mulher de salão poupava-me as banalidades cerimoniosas das apresentações, fazendo-me entrar logo na conversação que animava com a sua graça e os seus repentes felizes. A filha, gentil moça de 17 anos, fez-me a honra de uma contradança e de algumas voltas de valsa.
Confesso que fiquei fazendo melhor idéia das reuniões dançantes da sociedade fluminense
Pouco tempo antes de retirar-me, vi Sá que me acenava de uma janela da sala de jogo, onde se abrigara para fumar. Logo ao entrar tinha-lhe falado; mas evitara a sua conversa, com receio de que me fizesse perguntas sobre Lúcia; sentia remorder-me a consciência; e pouco disposto a aceitar os seus conselhos, previa que eles me haviam de irritar tanto mais, quanto seriam prudentes e razoáveis.
— Desculpa-me: vou dançar.
— A quadrilha ainda se demora, bem sabes; mas queres
— Que idéia!
— Queres escapar-te, sim. Cuidas que sou desses homens que perseguem os seus amigos de conselhos que nada lhes custam, porque nem sequer dão o exemplo; e com isso julgam-se quites de todos os deveres da amizade! Estás enganado, Paulo. Disse-te uma vez a minha opinião sobre as tuas relações com Lúcia; fiz o que me cumpria: o resto te pertence.
— Estava tão longe de pensar nisso agora! Como tens achado a partida? Há muito tempo não me divirto tanto!... Rostos encantadores, toilettes de gosto, excelente serviço; nada falta!
— Deixa estes elogios aos folhetinistas em cata de novidades. Compreendes que não te chamei para ouvir o teu juízo sobre a reunião do Sr. R...
— E para que me chamaste então?
— Para pedir-te um conselho.
— A mim?
— De que te admiras? Porque não os dou, segue-se que não posso pedi-los? Ao contrário!
— Vejamos que negócio importante é esse que exige o meu voto ?
— Julgas que um amigo deva referir ao outro tudo o que se diz a seu respeito? Vamos; a tua opinião franca!
— Julgo que é o maior serviço que possa prestar a amizade.
— Bem. Ouve então o que dizem de ti.
— Para quê? Não dou peso à maledicência, Sá.
— Pode ser que tenhas razão; mas ouve primeiro; depois riremos dessas parvoíces. Há aqui no Rio de Janeiro certa classe de gente que se ocupa mais com a vida dos outros, do que com a sua própria; e em parte dou-lhes razão; de que viveriam eles sem isso, quando têm a alma oca e vazia? Essa gente já sabe quem tu és, que fortuna tens, quanto ganhas, onde moras e como vives.
— É fácil saber; não tenho que ocultar, mercê de Deus.
— Estou convencido que poderias habitar a casa de vidro de Catão; mas infelizmente não a habitas; e portanto o mundo não vê justamente o que a tua modéstia esconde por detrás das paredes, isto é, o lado nobre e honroso da tua vida. O resto está patente.
— Mas ainda uma vez, Sá, o que pretendes com isso? Que me importa o que pensam a meu respeito? Não tenho reputação a perder.
— Mas tens reputação a ganhar. És amante de Lúcia, há um mês; e eu te conheço, sei que estás te sacrificando. Entretanto, como Lúcia não aparece mais no teatro, não roda no carro mais rico, e já não esmaga as outras com o seu luxo; como a Rua do Ouvidor não lhe envia diariamente o vestido de melhor gosto, a jóia mais custosa, e as últimas novidades da moda; sabes o que se pensa e o que se diz? Que estás sacrificando Lúcia. . . que estás vivendo à sua custa!
O primeiro ímpeto de minha indignação caiu sobre Sá, em quem se encarnava o insulto vago e anônimo; cometia um excesso, se o seu olhar franco e leal não me fizesse entrar em mim.
— Então! Não te ris dessa estúpida calúnia?... Tomas isto ao sério?
— Dize-me o nome de um só dos infames que se ocupam com a minha vida. O teu dever, já que assim o chamaste, o exige, e eu te peço!
— O nome?... É o mundo, a gente, a sociedade! Vai tomar-lhe satisfações.
— Mas tu ouviste de um homem?
— Que ouviu de outro e outro. Procura numa árvore a folha que gerou e nutriu a vespa que te morde?
Sá tinha razão. Senti a impotência do homem contra a calúnia impalpável que esvoaça e zune e ferroa como a vespa, e escapa nas asas à raiva e desespero da vitima É a fábula do leão e do mosquito. Mas o que então se passou em mim lhe parecerá incrível: a minha cólera precisava desabafar-se contra alguém, e na impossibilidade de dar um corpo àquela injúria atroz, levei a ingratidão até encarná-la em Lúcia, causa inocente do que sucedia.
Ela tinha razão quando temia que as nossas relações fossem conhecidas, e quando fazia tudo por escondê-las, como se escondem à sombra as flores delicadas que o vento fresco ou o sol ardente crestam e matam.
Sai bem decidido a pôr um termo à situação vergonhosa e humilhante em que me achava colocado. As palavras de Sá me queimavam os ouvidos. Eu vivendo à custa de Lúcia, eu que esbanjava a minha pequena fortuna por ela! Mas as calúnias tinham razão em um ponto; não exibia a minha amante como um traste de luxo, ou um manequim da moda; roubava o bem que lhes pertencia, visto que não era milionário para ter o direito de possuí-lo exclusivamente.
Não me dei ao trabalho de procurar o meu tílburi e parti a pé; precisava agitar-me.
Um vulto de mulher passou rapidamente. Ao voltar a esquina, encontrei-o parado. Chegou-se a mim e ergueu o véu. Reconheci Lúcia.
— Divertiu-se muito? perguntou-me com interesse.
— Oh, muito; nem fazes idéia!
— Eu vi! disse timidamente.
Não compreendi.
O que viste?
Vi-o dançar, passear na sala com as moças; acompanhei-o de longe toda a noite. Estava defronte, escondida por detrás das cortinas.
Havia em face da casa do Sr. R... um miserável botequim, onde ela alugara um quarto a fim de passar a noite vendo-me. Era sublime de delicadeza, e contudo esta prova de afeição, que em outra circunstância me comoveria, pareceu-me uma perseguição insuportável, e esteve quase fazendo transbordar a minha cólera concentrada.
— Não gosto nada destas extravagâncias, que dão em resultado comprometer-me.
— Ninguém me conhece ali; e não podem adivinhar o que me trouxe. Agora mesmo, se a rua não estivesse deserta, me animaria a falar-lhe? Fique certo de uma coisa: não há nada neste mundo que eu deseje tanto como vê-lo; e me privaria desse prazer se ele pudesse trazer-lhe um dissabor.
— Com que fim vieste a essa casa? Não posso sair uma noite sem que me veja espiado! Hás de confessar que não é muito agradável; se pensas que é este o meio de me prender, estás completamente enganada. Aprecio muito a minha liberdade; deves te lembrar que entre nós não existem compromissos.
— Nem um decerto!
— Portanto não temos que espiar-nos um ao outro.
— Perdoe-me: fiz mal, não o farei nunca mais. Calei-me.
— Diga-me ao menos que não está agastado!
— Boa-noite!
Lúcia precipitou-se para impedir-me o passo; vi um instante brilhar na sombra o seu olhar cintilante, mas logo deixou pender os braços, curvando a cabeça:-O coração me adivinhava! O Sá!... Continuei o meu caminho. Era a primeira noite, depois de um mês, que passava no hotel, e longe de Lúcia; como me achei só no deserto da nova existência que ia começar!