Lucrécias/IV - Os meus olhos em leilão
Eu, Beta e Joaninha
Eu
Compra-me estes olhos, Beta,
Vou vendê-los em leilão;
Deita o lance, ó Joaninha,
Quanto por eles me dão?
Beta (com desdém)
Quanto a mim, Deus me perdoe,
Nem de graça me convém;
Quando o próprio dono os vende,
Vejam que préstimo têm...
Fazem-lhe conta, priminha?
Aproveite a ocasião...
Joaninha (com arrufo)
Pois eu lá precisei nunca
De olhos de segunda mão?!
Eu
Cuidam que vendo estes olhos,
Ou que de graça os daria...
Beta (com desprezo)
Quem é que precisa deles?
Joaninha (com escárnio)
Quem é que lhos compraria?
Eu (parodiando)
Quem é que precisa deles?
Quem é que m’os compraria?
Quem souber que a sorte grande
Lhes saiu na loteria...
Beta (rindo)
A sorte grande!... priminha...
Joaninha (rindo também)
A sorte grande! ora qual...
Eu
Olha este bilhete, Beta;
Joaninha, toma o jornal.
Beta (lendo o nº do bilhete)
Cinco mil... e trin...ta e qua...tro... aqui ‘stão...
Vinte contos.
Joaninha (conferindo o jornal)
E trinta... e Qua... tro... aqui... ‘stão...
Vinte contos.
Beta (dramática)
Vinte contos!...
Joaninha (trágica)
É quase um milhão!...
Beta (com pasmo)
Vinte contos!... que riqueza!...
Joaninha (dando um passo para mim)
Co’os lindos olhos que tem...
Beta (adiante de Joaninha)
Se eu tivesse uns olhos desses...
Joaninha
Eu se os tivesse também...
Beta (com ternura)
Uns olhos tão expressivos...
Joaninha (com meiguice)
Que falam ao coração...
Beta (tomando-me a mão direita)
Que têm raios...
Joaninha (tomando-me a mão esquerda)
Que têm brilho...
Eu (com diplomacia)
E agora quase um milhão...
Beta (con amore)
Deixa que eu ame os seus olhos?
Joaninha (solto voce)
Deixe que eu lhes beba a luz?
Eu (profundamente comovido)
Deixo... sim...mas, o bilhete...
Ambas
O bilhete?...
Eu
É falso...
Ambas
Cruz!...
(E ambas deram-me às costas, deixando-me na posição mais cômica de minha vida)