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Lupe/VII

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A socia do club exoterico
VII


Miss Jackson, a velha americana a cujas manias cabalisticas Lupe alludira, constituia igualmente uma curiosidade de bórdo, embora de genero diverso.

Eclipsava-a o prestigio dominador de Miss Hedges. Mas era, sem duvida, digna de attenção e interesse, superiormente versada n’essa classe de conhecimentos ou desconhecimentos que se intitulam sciencias occultas. Consiste o fim de taes sciencias, conforme Miss Jackson, em estudar as relações do visivel com o invisivel, perscrutando a significação recondita do universo.

Praticar com ella importava aprender algo de novo, lobrigar veredas attractivas e pouco trilhadas do raciocinio e da imaginação. Genuina fanatica de suas crendices, como as ha aos milhares nos Estados Unidos e na Inglaterra (exemplos: — o Exercito de Salvação, a Sociedade de Temperança e mil seitas biblicas e theosophas, qual mais disparatada) agitava-a a febre do proselytismo. Não perdia occasião de promover a propaganda das suas suppostas verdades.

Encontrando em mim attento ouvinte, dilettante que sou de todas as excentricidades, Miss Jackson abarrotava-me de occultismo nas horas deixadas disponiveis por Lupe.

Tomava esta a velha americana por objectivo predilecto de gracejos e travessuras.

Escondia-lhe os livros e os oculos, pedia-lhe noticias de defuntos celebres, chamava-lhe feiticeira, mandava por intermedio d’ella recados ao demonio. E Miss Jackson aturava as brincadeiras com inalteravel bom humor, levantando os hombros, sem demonstração alguma de enfado.

Prolixos os seus discursos, recheados de formulas asceticas e confusas. No conjuncto, porém, apanhavam-se n’elles noções aproveitaveis.

Conhecia as artes de adivinhação: chiromancia, cartomancia, astrologia, necromancia, physionognomia, — apparelhos de perfectibilidade, — sustentava, — presentemente embryonarios, mas susceptiveis de desenvolvimento infinito. D’ella ouvi pela primeira vez referencias á transmissão do pensamento á distancia (telepathia) e á levitação, — faculdade de fluctuarem no ether os mais pesados corpos, infringindo a lei newtoniana da gravitação.

Mostrava-se admiradora apaixonada de duas mulheres: Madame Lenormant e Madame Blavatzky, as mentalidades culminantes da historia contemporanea, — affirmava.

A primeira, celebre adivinha do fim do seculo passado e começo do actual, consultada por Marat, Saint-Just, Robespierre e Josephina Beauharnais, dos quaes predisse o destino, prophetisando as phases da revolução franceza e os cyclos da epopeia napoleonica. Presa e processada por vezes, jámais se enganou nos seus vaticinios e exerceu genuino predominio sobre não poucos representantes illustres de tres gerações.

Madame Blavatzky, uma russa recentemente fallecida, tornou-se celebre pelas suas viagens á India e ao Thibet. Autora de uma volumosa obra em dous tomos Isis Unveiled, — na qual desvendou, segundo asseveram seus adeptos, os sublimes arcanos das religiões orientaes.

Coadjuvada pelo coronel americano Henry Olcott, Madame Blavatzky fundou em Nova-York (1875) a primeira sociedade exoterica do occidente, da qual Miss Jackson fazia parte e por cuja conta viajava. Um dos escôpos primordiaes d’essa associação está em alliar o christianismo ao budhismo. De semelhante connubio provirá a posse dos supremos dogmas, a omnisciencia, o exercicio pleno da força psychica, a fraternisação universal, a explicação das leis incognitas da natureza, o desenvolvimento de faculdades latentes no homem.

Sob a influencia ainda de Madame Blavatzky, installou-se em Paris outra sociedade exoterica, patrocinada pela duqueza de Pomar, viuva de lord Caithness. D’ahi, irradiou o movimento por todo o mundo occidental. Enumeram-se hoje esparsos pela terra numerosos nucleos congeneres, debaixo da direcção central dos magnos sacerdotes do Thibet.

Alguns d’esses pontifices maximos da grey conhecem o segredo da livre aggremiação e desaggremiação das moleculas corporaes e são contemporaneos de Christo. A visionaria slava pretende haver escripto o seu referido livro suggestionada por elles. Nos Estados Unidos funccionam 25 sociedades exotericas, 10 na Inglaterra, 7 em Ceylão, 3 em França e varias na Russia, Allemanha, Austria e Hollanda. Contam as suas Corfú, Odessa, Cabo, St. Thomas, Australia. A de Adyar, perto de Madrasta na India, onde ellas abundam, dispôe de sumptuosa bibliotheca technica. Homens notaveis pertencem a esses gremios. Excluindo os antigos (Dante, Shakspeare, Gœthe, Miguel Angelo, Leonardo da Vinci, Bacon, passam por ter professado o exoterismo) apontam-se contemporaneamente, além de outros, o celebre physico inglez Crookes, o philosopho allemão Hartman, Gladstone, Charcot e Edison como adhesos ás praticas exotericas. Este ultimo parece dever a ellas o seu portentoso genio inventivo. Os opulentos rajahs da India subsidiam largamente as ditas sociedades que manejam amplos recursos materiaes. Não se é nomeado membro d’ellas senão mediante prova de difficultosos requisitos.

Dimanam da sciencia exoterica os poderes magicos dos fakirs que permanecem annos a fio enterrados até ao pescoço, deixam-se morder impunemente por animaes venenosissimos, engólem toxicos violentos, apertam de encontro ao pescoço laminas aguçadas, digerem vidro moido, atravessam illesos chammas abrasadoras e sepultam-se vivos, sahindo, ao cabo de seis mezes, de debaixo do sólo, no qual germinaram plantas por cima d’elles, bons e fortes, exactamente no estado em que foram inhumados, — factos estes de authenticidade garantida por testemunhas fidedignas. Taes actos physiologicos milagrosos são simples emanações de incognitos principios que o exoterismo se propõe elucidar.

Entre as faculdades incubadas do espirito humano susceptiveis de se alargarem, destaca, conforme a doutrina de Miss Jackson, a do presentimento. O vago instincto que temos de certos acontecimentos vindouros ou occorridos em pontos longinquos, póde transformar-se n’uma funcção activa e normal, rica de proficuos resultados. Presentemente, o homem, em dadas condições, sente a previsão indistincta de alguns successos. Uma especie de voz interior o adverte de perigo imminente, da morte distante de amado ser. Partilham essa obscura intuição varios animaes: pombos que abandonam com antecedencia o telhado do predio onde vai morrer alguem, ratos que fogem da embarcação ameaçada de sossobrar. Semelhante aptidão avultará em extensão e potencia se o homem se applicar a cultival-a. A humanidade jámais deixou de acreditar na veracidade dos presagios. Formigam nas chronicas exemplos de coincidencias, apprehensões, vaticinios assombrosos. Raro o individuo que não cite um em sua vida. Grandes homens de todas as éras e raças prestaram fé a phenomenos d’essa especie. No povo mais positivo e forte da historia, o romano, os presagios influiam sobre as deliberações das assembléas e orientação do governo. Os augures preponderavam na politica. E como medravam na cidade eterna as superstições! Dias faustos e infaustos, vôos de passaros, encontros fortuitos, accidentes minimos, encerravam para os dominadores do globo sentido enigmatico que importava respeitar. Uma topada na porta de casa, ao sahir, a ruptura repentina do laço do sapato, prender-se n’um movel a roupa de quem se queria levantar, estremecimentos de palpebras, significavam para os romanos, — como modernamente treze convivas á mesa, vestir a camisa pelo avesso, entornar oleo no assoalho, accender simultaneamente tres luzes, quebrar um espelho, uivos de cão a deshóras, — significavam prenuncios aziagos de graves desprazeres, despertando austeras cogitações.

E Miss Jackson empenhava-se por me convencer da base racional de tudo isso, affirmando que nos máos olhados, talismans, quebrantos, preconceitos e abusões populares, communs, em verdade, ao orbe inteiro, deparam-se ao investigador elementos efficazes para a sciencia do futuro, — essa sciencia complexa e omnipotente que proporcionará facil communicação entre os habitantes dos myriades de planetas que fervilham no céo, abolirá a morte, dominará o tempo e o espaço, approximará as creaturas do fóco infinito, remontado cada vez mais alto pelas descobertas e conquistas do esforço intellectual, e, por isso mesmo, cada vez mais engrandecido, a causa das causas, — Deus.

Miss Jackson, demais, era exaltada vegetaliana, seguindo á risca as prescripções alimenticias da religião fundada por Sakya-Muni 500 annos antes de Christo e adoptada actualmente por mais de 500 milhões de almas.

Abstinha-se de toda e qualquer nutrição que houvesse soffrido morte. Bastavam-lhe legumes, fructas, lacticinios, pão. Proscrevia igualmente bebidas alcoolicas. Imagine-se a verdadeira provação que curtia á bordo com similhante regimen.

Enunciando argumentos, vulgarisados por Chaboseau (Ensaio sobre a philosophia budhica, capitulo XX) — e pelo Dr. Bonnejoy, (O Vegetalismo) — ella condemnava energicamente a zoophagia, prohibida pelo fundador do budhismo.

O vegetal, doutrinava a sectaria, possue todas as substancias indispensaveis á manutenção da vida, não se dando isso com a carne. Só as gramineas suppririam todas as necessidades da alimentação humana. De nenhuma carne se poderá dizer o mesmo. A nossa especie pela conformação dos dentes, estomago, figado, e tubo intestinal, deve ser essencialmente frugivora, digerindo e assimilando os alimentos vegetaes muito mais natural e completamente que os animaes. A zoophagia determina ou desenvolve a trichinose, o escorbuto, a tenia, as affecções verminosas, a nephrite, emquanto o vegetalismo é remedio efficaz contra a gota, o rheumatismo, a paralysia, as molestias cutaneas, auxilia a cura rapida de feridas, obsta ás más consequencias de operações cirurgicas e extermina o vicio do alcoolismo. Accresce que a carne, pelo sangue venoso deixado nos vasos capillares, os elementos anatomicos em via de decomposição, no momento da morte, os parasitas que escapam inevitavelmente ao mais severo exame, constitue nucleo constante de perigos para a saúde humana, e que a mor parte dos animaes entregues ao consumo publico estão doentes por infecção (typho, tuberculose, etc.) e por alimentação insufficiente, defeituosa ou excessiva. Vêde que são herbivoros os quadrupedes mais fortes, mais intrepidos, mais pacientes, mais uteis: — o cavallo, o boi, o camello, o elephante. Vegetalianos os povos mais energicos, laboriosos e infatigaveis. Assim o chinez, o escossez, o irlandez, o romano da éra republicana, o spartano. Na Grecia, os athletas eximiam-se systhematicamente ao uso da carne. Ponderai que um terreno consagrado á cultura de cereaes e fructas dá subsistencia e trabalho a um numero de homens muito mais consideravel que se fôra destinado á criação de animaes. Os camponezes possuem vigor physico extraordinario e disfructam inalteravel saúde, quasi não comendo carne.

Os asiaticos robustos, resistentes, adaptaveis aos mais insalubres climas, apenas se sustentam de arroz. Além d’isso, os animaes são nossos irmãos. Não nos assiste o direito de os trucidar para subsistirmos, quando poupando-os podemos viver melhor. D’essa arte o entenderam e praticaram os espiritos superiores da humanidade. Pythagoras, Socrates, Platão, Plutarcho, Seneca, os primeiros padres da Egreja, grandes santos, como Santo Agostinho e Santo Ambrosio, jámais mancharam seus labios com a carne e o sangue de um animal assassinado. Modernamente, o vegetalismo caminha a passos accelerados na conquista do mundo. Vegetalianos convencidos, sabios, artistas, poetas; — Michelet, Lamartine, Herbert Spencer, Ricardo Wagner, Elisée Reclus.

É o regimen economico e intellectual por excellencia. Nas cidades inglezas e americanas de importancia encontram-se ás dezenas restaurants vegetalianos, largamente frequentados. Se a sociedade inteira se convertesse ao vegetalismo, resolveria a questão social, pois a vida material tornar-se-hia baratissima, facil a todos, e desappareceriam, consequentemente, a miseria, a fome, a distincção principal entre pobres e ricos.

Sim! banamos a carne. Da morte não pódem resultar vida e saúde. Deixemos de ingerir postas de cadaveres. Lucraremos com essa abstenção immensamente. A exclusiva alimentação vegetal imprime ás physionomias e á compostura dos corpos elegancia, delicadeza, agilidade e vigor. Torna fina a pelle e limpidos os olhos; apura os sentidos; flexibilisa, esclarece, e dilata a intelligencia e a memoria; predispõe para o trabalho; purifica os costumes; suavisa e eleva o caracter...

Emquanto Miss Jackson me desfechava esta tirada, Lupe approximava-se sorrateiramente, e por detraz da oradora, arremedava-a com visagens e tregeitos de indiscriptivel comico. Custava-me suster o riso.

— Muito bem, Miss Jackson, muito bem! — bradou por fim. Acaba de proferir uma arenga digna do ágora atheniense, revelando admiravel espirito de classe. Esqueceu-lhe entretanto, concretisar a theoria em exemplos impressionadores. E a evidencia de seus principios, oh! dama sapiente, resalta da sua propria pessôa. Examinai incredulos, as excellencias do vegetalismo e batei contrictos no peito. Contemplai este regio porte, esta cutis de lyrio, estes dentes de perola, estes cabellos magestaticos... Á semelhança de Venus surgindo de entre as espumas, foi das folhas dos pomares e das hortas, do meio das couves e alfaces, que emergio este primor...

E apontava para os tristes bandós grisalhos, a bocca desdentada e escura, a face encarquilhada, o todo rachitico e feio da velha occultista.

Esta, pela primeira vez, pareceu agastar-se com o gracejo, realmente um tanto pesado. Na entonação mystica dos seus momentos eloquentes, replicou:

— Talvez ignore, Miss Hedges, que n’um dos antigos templos aztécas da sua patria, rutilava gravado em lettras de ouro este distico: Vem proxima a hora em que se patenteiará o fado sombrio, grande destruidor. Medite n’essas palavras, menina, e tambem nas do divino Shakspeare: ha mais cousas no céo e sobre a terra do que se imagina nos sonhos da philosophia. Oxalá jamais a abandone a disposição de rir. Mas a vida é séria, mysteriosa e grave. Cumpre attender mais ao invisivel do que ao visivel. Eis aqui a senhora e este gentleman. (E designou-me com o dedo secco). Nasceram em regiões separadas por milhares de leguas. Nunca presumiram que se encontrariam. Em breves dias, seguirá cada qual o seu rumo, convencidos de que jamais se hão de rever. E quem sabe se já não se conheceram em encarnações anteriores?... Póde muito bem dar-se que haja ainda cruzamento dos respectivos destinos n’este planeta ou algures, n’uma intersecção dramatica, influindo o de um decisivamente sobre o do outro. Viram talvez a luz sobre estrellas predestinadas a fatidica conjuncção. Fatal o horoscopio de cada um! Constringe-nos a tyrannia immanente do arcano. Tudo enigma no cosmos. Enigmas ambulantes nós proprios, a nos debatermos no pelago incognoscivel. Ai dos que renunciam a tentar decifrações! Suicidas moraes, condemnados a retrogradar na escala dos seres!... Indignos da parcella do eterno lume que lhes tocou!

Lupe, a principio, escutou prazenteira, arregalando os olhos e abrindo a bocca n’uma admiração burlesca engraçadissima.

Mas, subitamente, ficou meditativa. Disfarçou um suspiro; e foi com a voz velada de melancholia, realçada por fingido sorriso ironico, que me perguntou, quando Miss Jackson sahio:

— Então, dom brazileiro, acredita porventura que as nossas sinas venham ainda a mesclar-se n’este planeta ou n’um outro?!...