Macunaíma/1928/II
MAIORIDADE
Jiguê era muito bobo e no outro dia apareceu puxando pela mão uma cunhã. Era a companheira nova dele e chamava Iriqui. Ela trazia sempre um ratão vivo escondido na maçaroca dos cabelos e faceirava muito. Pintava a cara com araraúba e jenipapo e todas as manhãs passava coquinho de açaí nos beiços que ficavam totalmente roxos. Depois esfregava limão-de-caiena por cima e os beiços viravam totalmente encarnados. Então Iriqui se envolvia num manto de algodão listrado com preto de acariúba e verde de tatajuba e aromava os cabelos com essência de umiri, era linda.
Ora depois de todos comerem a anta de Macunaíma a fome bateu no mocambo. Caça, ninguém não pegava caça mais, nem algum tatu-galinha aparecia! e por causa de Maanape ter matado um boto pra comerem, o sapo cunauaru chamado Maraguigana pai do boto ficou enfezado. Mandou a enchente e o milharal apodreceu. Comeram tudo, até a crueira dura se acabou e o fogaréu de noite e dia não moqueava nada não, era só pra remediar a friagem que caiu. Não havia pra gente assar nele nem uma isca de jabá.
Então Macunaíma quis se divertir um pouco. Falou pros manos que inda tinha muita piaba muito jeju muito matrinxão e jatuaranas, todos esses peixes do rio, fossem bater timbó! Maanape disse:
— Não se encontra mais timbó.
Macunaíma disfarçando secundou:
— Junto daquela grota onde tem dinheiro enterrado enxerguei um despotismo de timbó.
— Então venha com a gente pra mostrar onde que é.
Foram. A margem estava traiçoeira e nem se achava bem o que era terra o que era rio entre as mamoranas copadas. Maanape e Jiguê procuravam procuravam enlameados até os dentes, degringolando juque! nos barreiros ocultos pela inundação. E pulapulavam se livrando dos buracos, aos berros, com as mãos pra trás por causa dos candirus safadinhos querendo entrar por eles. Macunaíma ria por dentro vendo as micagens dos manos campeando timbó. Fingia campear também mas não dava passo não, bem enxutinho no firme. Quando os manos passavam perto dele, se agachava e gemia de fadiga.
— Deixe de trabucar assim, piá!
Então Macunaíma sentou numa barranca do rio e batendo com os pés n’água espantou os mosquitos. E eram muitos mosquitos piuns maruins arurus tatuquiras muriçocas meruanhas mariguis borrachudos varejas, toda essa mosquitada.
Quando foi de-tardezinha os manos vieram buscar Macunaíma tiriricas por não terem topado com nenhum pé de timbó. O herói teve medo e disfarçou:
— Acharam?
— Que achamos nada!
— Pois foi aqui mesmo que enxerguei timbó. Timbó já foi gente um dia que nem nós... Presenciou que andavam campeando ele e soverteu. Timbó foi gente um dia que nem nós...
Os manos se admiraram da inteligência do menino e voltaram os três pra maloca.
Macunaíma estava muito contrariado por causa da fome. No outro dia falou pra velha:
— Mãe, quem que leva nossa casa pra outra banda do rio lá no teso, quem que leva? Fecha os olhos um bocadinho, velha, e pergunta assim.
A velha fez. Macunaíma pediu para ela ficar mais tempo com os olhos fechados e carregou tejupar marombas flechas picuás sapicuás corotes urupemas redes, todos esses trens pra um aberto do mato lá no teso do outro lado do rio. Quando a velha abriu os olhos estava tudo lá e tinha caça peixes, bananeiras dando, tinha comida por demais. Então foi cortar banana.
— Inda que mal lhe pergunte, mãe, por que a senhora arranca tanta pacova assim!
— Levar pra vosso mano Jiguê com a linda Iriqui e pra vosso mano Maanape que estão padecendo fome.
Macunaíma ficou muito contrariado. Maginou maginou e disse pra velha:
— Mãe, quem que leva nossa casa pra outra banda do rio no banhado, quem que leva? Pergunta assim!
A velha fez. Macunaíma pediu pra ela ficar com os olhos fechados e levou todos os carregos, tudo, pro lugar em que estavam de já-hoje no mondongo inundado. Quando a velha abriu os olhos tudo estava no lugar de dantes, vizinhando com os tejupares de mano Maanape e de mano Jiguê com a linda Iriqui. E todos ficaram roncando de fome outra vez.
Então a velha teve uma raiva malvada. Carregou o herói na cintura e partiu. Atravessou o mato e chegou no capoeirão chamado Cafundó do Judas. Andou légua e meia nele, nem se enxergava mato mais, era um coberto plano apenas movimentado com o pulinho dos cajueiros. Nem guaxe animava a solidão. A velha botou o curumim no campo onde ele podia crescer mais não e falou:
— Agora vossa mãe vai embora. Tu ficas perdido no coberto e podes crescer mais não.
E desapareceu. Macunaíma assuntou o deserto e sentiu que ia chorar. Mas não tinha ninguém por ali, não chorou não. Criou coragem e botou pé na estrada, tremelicando com as perninhas de arco. Vagamundou de déu em déu semana, até que topou com o Currupira moqueando carne, acompanhado do cachorro dele Papamel. E o Currupira vive no grelo do tucunzeiro e pede fumo pra gente. Macunaíma falou:
— Meu avô, dá caça pra mim comer?
— Sim, Currupira fez.
Cortou carne da perna moqueou e deu pro menino, perguntando:
— O que você está fazendo na capoeira, rapaiz!
— Passeando.
— Não diga!
— Pois é, passeando...
Então contou o castigo da mãe por causa dele ter sido malévolo pros manos. E contando o transporte da casa de novo pra deixa onde não tinha caça deu uma grande gargalhada. O Currupira olhou pra ele e resmungou:
— Tu não é mais curumi, rapaiz, tu não é mais curumi não... Gente grande que faiz isso...
Macunaíma agradeceu e pediu pro Currupira ensinar o caminho pro mocambo dos Tapanhumas. O Currupira estava querendo mas era comer o herói, ensinou falso:
— Tu vai por aqui, menino-home, vai por aqui, passa pela frente daquele pau, quebra a mão esquerda, vira e volta por debaixo dos meus uaiariquinizês.
Macunaíma foi fazer a volta porém chegado na frente do pau, coçou a perninha e murmurou:
— Ai! que preguiça!...
e seguiu direito.
O Currupira esperou bastante porém curumim não chegava... Pois então o monstro amontou no viado, que é o cavalo dele, fincou o pé redondo na virilha do corredor e lá se foi gritando:
— Carne de minha perna! carne de minha perna!
Lá de dentro da barriga do herói a carne respondeu:
— Que foi?
Macunaíma apertou o passo e entrou correndo na caatinga porém o Currupira corria mais que ele e o menino isso vinha que vinha acochado pelo outro.
— Carne de minha perna! carne de minha perna!
A carne secundava:
— Que foi?
O piá estava desesperado. Era dia do casamento da raposa e a velha Vei, a Sol, relampeava nas gotinhas da chuva debulhando luz feito milho. Macunaíma chegou perto duma poça, bebeu água de lama e vomitou a carne.
— Carne de minha perna! carne de minha perna! que o Currupira vinha gritando.
— Que foi? secundou a carne já na poça.
Macunaíma ganhou os bredos pro outro lado e escapou.
Légua e meia adiante por detrás dum formigueiro escutou uma voz cantando assim:
“Acuti pitá canhém...” lentamente.
Foi lá e topou com a cotia farinhando mandioca num tipiti de jacitara.
— Minha vó, dá aipim pra mim comer?
— Sim, cotia fez. Deu aipim pro menino, perguntando:
— Que que você está fazendo na caatinga, meu neto?
— Passeando.
— Ah o quê!
— Passeando, então!
Contou como enganara o Currupira e deu uma grande gargalhada. A cotia olhou pra ele e resmungou:
— Culumi faz isso não, meu neto, culumi faz isso não... Vou te igualar o corpo com o bestunto.
Então pegou na gamela cheia de caldo envenenado de aipim e jogou a lavagem no piá. Macunaíma fastou sarapantado mas só conseguiu livrar a cabeça, todo o resto do corpo se molhou. O herói deu um espirro e botou corpo. Foi desempenando crescendo fortificando e ficou do tamanho dum homem taludo. Porém a cabeça não molhada ficou pra sempre rombuda e com carinha enjoativa de piá.
Macunaíma agradeceu o feito e frechou cantando pro mocambo nativo. A noite vinha besourenta enfiando as formigas na terra e tirando os mosquitos d’água. Fazia um calor de ninho no ar. A velha tapanhumas escutou a voz do filho no longe cinzado e se espantou. Macunaíma apareceu de cara amarrada e falou pra ela:
— Mãe, sonhei que caiu meu dente.
— Isso é morte de parente, comentou a velha.
— Bem que sei. A senhora vive mais uma Sol só. Isso mesmo porque me pariu.
No outro dia os manos foram pescar e caçar, a velha foi no roçado e Macunaíma ficou só com a companheira de Jiguê. Então ele virou na formiga quenquém e mordeu Iriqui pra fazer festa nela. Mas a moça atirou a quenquém longe. Então Macunaíma virou num pé de urucum. A linda Iriqui riu, colheu as sementes se faceirou toda pintando a cara e os distintivos. Ficou lindíssima. Então Macunaíma, de gostoso, virou gente outra feita e morou com a companheira de Jiguê.
Quando os manos voltaram da caça Jiguê percebeu a troca logo, porém Maanape falou pra ele que agora Macunaíma estava homem pra sempre e troncudo. Maanape era feiticeiro. Jiguê viu que a maloca estava cheia de alimentos, tinha pacova tinha milho tinha macaxeira, tinha aluá e caxiri, tinha maparás e camorins pescados, maracujá-michira ata abio sapota sapotilha, tinha paçoca de viado e carne fresca de cutiara, todos esses comes e bebes bons... Jiguê conferiu que não pagava a pena brigar com o mano e deixou a linda Iriqui pra ele. Deu um suspiro catou os carrapatos e dormiu folgado na rede.
No outro dia Macunaíma depois de brincar cedinho com a linda Iriqui, saiu pra dar uma voltinha. Atravessou o reino encantado da Pedra Bonita em Pernambuco e quando estava chegando na cidade de Santarém topou com uma viada parida.
— Essa eu caço! ele fez. E perseguiu a viada. Esta escapuliu fácil mas o herói pôde pegar o filhinho dela que nem não andava quase, se escondeu por detrás duma carapanaúba e cotucando o viadinho fez ele berrar. A viada ficou feito louca, esbugalhou os olhos parou turtuveou e veio vindo veio vindo parou ali mesmo defronte chorando de amor. Então o herói flechou a viada parida. Ela caiu esperneou um bocado e ficou rija estirada no chão. O herói cantou vitória. Chegou perto da viada olhou que mais olhou e deu um grito, desmaiando. Tinha sido uma peça do Anhanga... Não era viada não, era mas a própria mãe tapanhumas que Macunaíma flechara e estava morta ali, toda arranhada com os espinhos das titaras e mandacarus do mato.
Quando o herói voltou da sapituca foi chamar os manos e os três chorando muito passaram a noite de guarda bebendo oloniti e comendo carimã com peixe. Madrugadinha pousaram o corpo da velha numa rede e foram enterra-la por debaixo duma pedra no lugar chamado Pai da Tocandeira. Maanape que era um catimbozeiro de marca maior, foi que gravou o epitafio. E era assim:
Jejuaram o tempo que o preceito mandava e Macunaíma gastou o tempo do jejum se lamentando heroicamente. A barriga da morta foi inchando foi inchando e no fim das chuvas tinha virado num cerro macio. Então Macunaíma deu a mão pra Iriquí, Iriquí deu a mão pra Maanape, Maanape deu a mão pra Jigue e os quatro partiram por esse mundo.