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Macunaíma/1928/XVIII

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XVIII

URSA MAIOR

 

Macunaíma se arrastou até a tapera sem gente agora. Estava muito contrariado porquê não compreendia o silêncio. Ficara defunto sem chôro, no abandono completo. Os manos tinham ido-se embora transformados na cabeça esquerda do urubú-ruxama e nem siquer a gente encontrava cunhãs por ali. O silêncio principiava cochilando a beira-rio do Uraricoera. Que enfaro! E principalmente, ah!... que preguiça!...

Macunaíma foi obrigado a abandonar a tapera cuja última parede trançada com palha de catolé estava caindo. Mas o impaludismo não lhe dava coragem nem pra construir um papirí. Trouxera a rede pro alto dum teso onde tinha uma pedra com dinheiro enterrado por debaixo. Amarrou a rede nos dois cajueiros frondejando e não saiu mais dela por muitos dias dormindo caceteado e comendo cajús. Que solidão! O próprio sequito sarapintado se dissolvera. Não vê que um ajurú-catinga passara muito afobado por ali. Os papagaios perguntaram pro parente onde que ia.

— Madurou milho na terra dos ingleses, vou pra lá!

Então todos os papagaios foram comer milho na terra dos ingleses. Porêm primeiro viraram periquitos porquê assim, comiam e os periquitos levavam a fama. Só ficara um aruaí muito falador. Macunaíma se consolou pensamenteando: “O mal ganhado, diabo leva... paciencia”. Passava os dias enfarado e se distraia fazendo o passaro repetir na fala da tribu os casos que tinham sucedido pro heroi desde infancia. Aaah... Macunaíma bocejava escorrendo cajú, muito mole na rede, com as mãos pra trás fazendo cabeceiro, o casal de legornes empoleirado nos pés e o papagaio na barriga. Vinha a noite. Aromado pelas frutas do cajueiro o heroi ferrava no sono bem. Quando a arraiada vinha o papagaio tirava o bico da asa e tomava o café da manhã devorando as aranhas que de-noite fiavam as teias dos ramos pro corpo do heroi. Depois falava:

— Macunaíma!

O dorminhoco nem se mexia.

— Macunaíma! ôh Macunaíma!

— Deixa a gente dormir, aruaí...

— Acorda, heroi! É de-dia!

— Ah... que preguiça!...

— Pouca saúde e muita saúva,

Os males do Brasil são!...

Macunaíma dava uma grande gargalhada e coçava a cabeça cheia de pixilinga que é piolho-de-galinha. Então o papagaio repetia o caso aprendido na véspera e Macunaíma se orgulhava de tantas glórias passadas. Dava entusiasmo nele e se punha contando pro aruaí outro caso mais pansudo. E assim todos os dias.

Quando a Papaceia que é a estrêla Vesper aparecia falando prás coisas irem dormir, o papagaio zangava por causa da história parando no meio. Uma feita êle insultou a estrela Papaceia. Então Macunaíma contou:

— Não insulta ela não, aruaí! Taína-Cã é bom. Taína-Cã que é a estrêla Papaceia tem pena da Terra e manda Emoron-Pódole dar o sossêgo do sono dêste mundo pra todas essas coisas que podem ter sossêgo porquê não possuem pensamento que nem nós. Taína-Cã é individuo tambem... Relumeava lá no campo vasto do céu e a filha mais velha do morubixaba Zozoiaça da tribu carajá, solteirona chamada Imaerô falou assim:

— Pai, Taína-Cã relumeia tão bonito que eu quero me amulherar com êle.

Zozoiaça riu bem por causa que não podia dar Taína-Cã de casamento prá filha velha não. Vai, de-noite veio descendo o rio uma piroga de prata, um remeiro saltou dela, bateu no poial e falou pra Imaerô:

— Eu sou Taína-Cã. Escutei vosso pedido e vim numa piroga de prata. Casa comigo por favor!

— Sim, ela fez contentissima.

Deu a rede pro noivo e foi dormir com a mana mais nova se chamando Denaquê.

No outro dia quando Taína-Cã pulou da rede todos se sarapantaram. Era um coroca enrugado enrugado, tremelicando tanto feito a luz da estrêla Papaceia. Vai, Imaerô falou:

— Cai fora, coroca! Vê lá si vou casar com velho! Pra mim ha-de ser um moço mui brabo mucudo e de nação carajá!

Taína-Cã ficou jururú jururú e principiou imaginando na injustiça dos homens. Porêm a filha mais nova do morubixaba Zozoiaça teve pena do coroca e falou:

— Eu caso com você.

Taína-Cã brilhou de gôso. Ficaram ajustados. Denaquê preparando o enxoval cantava noite e dia:

— Amanhã por estas horas, furrum-fum-fum...

Zozoiaça respondia:

— Eu tambem com vossa mãi, furrum-fum-fum...

Depois que se acabaram os dedos das vossas mãos, papagaio, que são de espera pra noivo, na rede trançada por Denaquê se brincou dança de amor, furrum-fum-fum.

Nem bem o dia estava rompendo a barra, Taína-Cã pulou da rede e falou prá companheira:

— Vou derrubar mato pra fazer roçado. Agora você fica no mocambo e nunca não vai na roça me espiar.

— Sim, ela fez.

E ficou na rede, matutando gosada naquele velhinho esquisito que dera pra ela a noite mais gostosa de amor que a gente imagina.

Taína-Cã derrubou mato, botou fogo em todos os macurús de formiga e preparou a terra. Naquele tempo inda a nação carajá não conhecia as plantas boas. Era só peixe e bicho que carajá comia.

Na outra madrugada Taína-Cã falou prá companheira que ia buscar sementes pra semear e repetiu a proibição. Denaquê ficou deitada na rede inda um bocado, matutando nas gostosuras valentes das noites de amor que o bom do coroca dava pra ela. E foi fiar.

Taína-Cã deu uma chegada até o corgo Berô, fez oração e botando uma perna em cada barreira do corgo esperou assuntando a agua. D’aí a pouco vieram vindo no pêlo da aguinha as sementes do milho cururuca, o fumo, a maniveira, todas essas plantas boas. Taína-Cã apanhou o que passava e foi no roçado plantar. Estava trabucando na Sol quando Denaquê apareceu. Era por causa que ela de sodosa quis ver o companheiro dando gostosuras tão valentes pra ela nas noites de amor. Denaquê deu um grito de alegria. Taína-Cã não era coroca não! Taína-Cã era mas um rapaz muito brabo mucudo e de nação carajá. Fizeram um macio de fumo e de maniva e brincaram pulado na Sol.

Quando voltaram pro mocambo muito se rindo um pro outro, Imaerô ficou tiririca. Gritou:

— Taína-Cã é meu! Foi pra mim que êle veio do céu!

— Sai azar! que Taína-Cã falou. Quando eu quis você não quis, pois agora brinque-se!

E trepou na rede com Denaquê. Imaerô desinfeliz suspirou assim:

— Deixe estar jacaré, que a lagoa ha-de secar!...

E saiu gritando pelo mato. Virou na ave araponga que grita amarelo de inveja no quirirí do mato diurno.

Desde então por causa da bondade de Taína-Cã é que carajá come mandioca e milho e possui fumo pra se animar.

Tem mais não.”

O papagaio dormia.

Uma feita janeiro chegado Macunaíma acordou tarde com o pio agourento do tincuã. No entanto era dia feito e a cerração já entrara pro buraco... O heroi tremeu e apalpou o feitiço que trazia no pescoço, um ossinho de piá morto pagão. Procurou o aruaí, desaparecera. Só o galo com a galinha brigando por causa duma aranha derradeira. Fazia um calorão parado tão imenso que se escutava o sininho de vidro dos gafanhotos. Vei, a Sol, escorregava pelo corpo de Macunaíma, fazendo cosquinhas, virada em mão de moça. Era malvadeza da vingarenta só por causa do heroi não ter se amulherado com uma das filhas da luz. A mão de moça vinha e escorregava tão de manso tão! no corpo... Que vontade nos musculos pela primeira vez espetados depois de tanto tempo! Macunaíma se lembrou que fazia muito não brincava. Agua fria diz que é bom pra espantar as vontades... O heroi escorregou da rede, tirou a penugem de teia vestindo todo o corpo dele e descendo até o vale de Lagrimas foi tomar banho num sacado perto que os repiquetes do tempo-das-aguas tinham virado num lagoão.

Macunaíma depôs com delicadeza os legornes na praia e se chegou prá agua. A lagoa estava toda coberta de oiro e prata e descobriu o rosto deixando ver o que tinha no fundo. E Macunaíma enxergou lá no fundo uma cunhã lindissima, alvinha e padeceu de mais vontade. E a cunhã lindissima era a Uiara.

Vinha chegando assim como quem não quer, com muitas danças, piscava pro heroi, parecia que dizia — “Cai fora, seu nhonhô moço!” e fastava com muitas danças assim como quem não quer. Deu uma vontade no heroi tão imensa que alargou o corpo dele e a boca humideceu:

— Maní!...

Macunaíma queria a dona. Botava o dedão nagua e num atimo a lagoa tornava a cobrir o rosto com as teias de ouro e prata. Macunaíma sentia o frio da agua, retirava o dedão.

Foi assim muitas vezes. Se aproximava o pino do dia e Vei estava zangadissima. Torcia pra Macunaíma cair nos braços traiçoeiros da moça do lagoão e o heroi tinha medo do frio. Vei sabia que a moça não era moça não, era a Uiara. E a Uiara vinha chegando outra feita com muitas danças. Que boniteza que ela era!... Morena e coradinha que nem a cara do dia e feito o dia que vive cercado de noite, ela enrolava a cara nos cabelos curtos negros negros como as asas da graúna. Tinha no perfil duro um narizinho tão mimoso que nem servia pra respirar. Porêm como ela só se mostrava de frente e fastava sem virar Macunaíma não via o buraco no cangote por onde a perfida respirava. E o heroi indeciso, vai-não-vai. Sol teve raiva. Pegou num rabo-de-tatú de calorão e guascou o lombo do heroi. A dona ali, diz-que abrindo os braços mostrando a graça fechando os olhos molenga. Macunaíma sentiu fogo no espinhaço, estremeceu, fez pontaria, se jogou feito em cima dela, juque! Vei chorou de vitória. As lagrimas cairam na lagoa num chuveiro de ouro e de ouro. Era o pino do dia.

Quando Macunaíma voltou na praia se percebia que brigara muito lá no fundo. Ficou de bruços um tempão com a vida dependurada nos respiros fatigados. Estava sangrando com mordidas pelo corpo todo, sem perna direita, sem os dedões sem os cocos-da-Baía, sem orelhas sem nariz sem nenhum dos seus tezouros. Afinal poude se erguer. Quando deu tento das perdas teve odio de Vei. A galinha cacarejava deixando um ovo na praia. Macunaíma pegou nele e chimpou-o no carão feliz da Sol. O ovo esborrachou bem nas bochechas dela que sujou-se de amarelo pra todo o sempre. Entardecia.

Macunaíma sentou numa lapa que já fôra jabotí nos tempos de dantes e andou contando os tezouros perdidos embaixo dagua. E eram muitos, era uma perna os dedões, eram os cocos-da-Baía, eram as orelhas os dois brincos feitos com a máquina pathek e a máquina smith-wesson, o nariz, todos êsses tezouros... O heroi pulou dando um grito que encurtou o tamanho do dia. As piranhas tinham comido também o beiço dele e a muiraquitã! Ficou feito louco.

Arrancou uma montanha de timbó de assacú de tinguí de cunambí, todas essas plantas e envenenou pra sempre o lagoão. Todos os peixes morreram e ficaram boiando com a barriga pra cima, barrigas azuis barrigas amarelas barrigas rosadas, todas as barrigas sarapintando a face da lagoa. Era de-tardinha.

Então Macunaíma destripou todos êsses peixes, todas as piranhas e todos os botos, caqueando a muiraquitã nas barrigadas. Foi uma sangueira mãi escorrendo sobre a terra e tudo ficou tinto de sangue. Era a boca-da-noite.

Macunaíma campeava campeava. Achou os dois brincos achou os dedões achou as orelhas os nuquiirís o nariz, todos êsses tezouros e prendeu todos nos lugares deles com sapé e cola de peixe. Porêm a perna e a muiraquitã não achou não. Tinham sido engulidos pelo Monstro Ururau que não morre com timbó nem pau. O sangue coalhara negro cobrindo a praia e o lagoão. E era de-noite.

Macunaíma campeava campeava. Soltava gritos de lamentação encurtando com a bulha o tamanho da bicharada. Nada. O heroi varava o campo, saltando na perna só. Gritava:

— Lembrança! Lembrança da minha marvada! não vejo nem ela nem você nem nada!

E pulava mais. As lagrimas pingavam dos olhinhos azuis dele sobre as florzinhas brancas do campo. As florzinhas tingiram de azul e foram os miosotis. O herói não podia mais, parou. Cruzou os braços num desêspero tão heroico que tudo se alargou no espaço pra conter o silêncio daquele penar. Só um mosquitinho raquitiquinho infernisava inda mais a disgra do heroi, zumbindo fininho: “Vim di Minas... vim di Minas...”.

Então Macunaíma não achou mais graça nesta terra. Capêi bem nova relumeava lá na gupiara do céu. Macunaíma cismou inda meio indeciso, sem saber si ia morar no céu ou na ilha de Marajó. Um momento pensou mesmo em morar na cidade da Pedra com o energico Delmiro Gouveia, porêm lhe faltou ânimo. Pra viver lá, assim como tinha vivido era impossivel. Até era por causa disso mesmo que não achava mais graça na Terra... Tudo o que fôra a existência dele apesar de tantos casos tanta brincadeira tanta ilusão tanto sofrimento tanto heroismo, afinal não fora sinão um se deixar viver; e pra parar na cidade do Delmiro ou na ilha de Marajó que são desta terra carecia de ter um sentido. E êle não tinha coragem pra uma organização. Decidiu:

— Qual o quê!... Quando urubú está de caipora o de baixo caga no de cima, êste mundo não tem qeito mais e vou pro céu!

Ia pro céu viver com a marvada. Ia ser o brilho bonito mas inutil porêm de mais uma constelação. Não fazia mal que fosse brilho inutil não, pelo menos era o mesmo de todos êsses parentes, de todos os pais dos vivos da sua terra, mãis pais manos cunhãs cunhadas cunhatãs, todos êsses conhecidos que vivem agora do brilho inutil das estrêlas.

Plantou uma semente do cipó matamatá, filho-da-luna e enquanto o cipó crescia agarrou numa itá pontuda e escreveu na lage que já fôra jabotí num tempo muito de dantes:

NÃO VIM NO MUNDO PARA SER PEDRA

A planta já tinha crescido e se agarrava numa ponta de Capêi. O heroi capenga enfiou a gaiola dos legornes no braço e foi subindo pro céu. Cantava triste:

— “Vamos dar a despedida,
— Taperá,
Talequal o passarinho,

— Taperá,
Bateu asa foi-se embora,
— Taperá,
Deixou a pena no ninho.
— Taperá...”

Lá chegado bateu na maloca de Capêi. A Lua desceu no terreiro e perguntou:

— Quê que quer, sací?

— Abênção minha madrinha, me dá pão com farinha?

Então Capêi reparou que não era sací não, era Macunaíma o heroi. Mas não quis dar pensão pra êle, se lembrando do fedor antigo do heroi. Macunaíma enfezou. Deu uma porção de munhecaços na cara da Lua. Por isso que ela tem aquelas manchas escuras na cara.

Então Macunaíma foi bater na casa de Caiuanogue, a estrêla-da-manhã. Caiuanogue apareceu na janelinha pra ver quem era e confundida pelo negrume da noite e a capenguice do heroi, perguntou:

— Que é que quer, sací?

Mas logo pôs reparo que era Macunaíma o heroi e nem esperou resposta se lembrando que êle cheirava muito fedido.

— Vá tomar banho! falou fechando a janelinha.

Macunaíma tornou a enfezar e gritou:

— Vem prá rua, cafageste!

Caiuanogue raspou um susto enorme e ficou tremendo espiando pelo buraco da fechadura. Por isso que a bonita da estrelinha é tão pecurrucha e tremelica tanto.

Então Macunaíma foi bater na casa de Pauí-Pódole, o Pai do Mutum. Pauí-Pódole gostava muito dele porquê Macunaíma o defendera daquele mulato da maior mulataria na festa do Cruzeiro. Mas exclamou:

— Ah, heroi, tarde piaste! Era uma honra grande pra mim receber no meu mosqueiro um descendente de jabotí, raça primeira de todas... No princípio era só o Jabotí Grande que existia na vida... Foi êle que no silêncio da noite tirou da barriga um individuo e sua cunhã. Estes foram os primeiros fulanos vivos e as primeiras gentes da vossa tribu... Depois, que os outros vieram. Chegaste tarde, heroi! Já somos em doze e com você a gente ficava treze na mesa. Sinto muito mas chorar não posso!

— Que pena, sinh’Helena! que o heroi exclamou.

Então Pauí-Pódole teve dó de Macunaíma. Fez uma feitiçaria. Agarrou tres pausinhos jogou pro alto fez encruzilhada e virou Macunaíma com todo o estenderete dele, galo galinha gaiola revolver relogio, numa constelação nova. É a constelação da Ursa Maior.

Dizem que um professor naturalmente alemão andou falando por aí por causa da perna só da Ursa Maior que ela é o sací... Não é não! Sací inda para neste mundo espalhando fogueira e trançando crina de bagual... A Ursa Maior é Macunaíma. É mesmo o herói capenga que de tanto penar na terra sem saúde e com muita saúva, se aborreceu de tudo, foi-se embora e banza solitário no campo vasto do céu.