Manuscrito de um sacristão

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MANUSCRITO DE UM SACHRISTÃO


I

........... Ao dar com o padre Theophilo fallando a uma senhora, ambos sentadinhos no banco da egreja, e a egreja deserta, confesso que fiquei espantado. Note-se que conversavam em voz tão baixa e discreta, que eu, por mais que afiasse o ouvido e me demorasse a apagar as velas do altar, não podia apanhar nada, nada, nada. Não tive remedio senão adivinhar alguma cousa. Que eu sou um sacristão philosopho. Ninguem me julgue pela sobrepeliz rota e amarrotada nem pelo uso clandestino das galhetas. Sou um philosopho sacristão. Tive estudos ecclesiasticos, que interrompi por causa de uma doença e que inteiramente deixei por outro motivo, uma paixão violenta, que me trouxe á miseria. Como o seminario deixa sempre um certo vinco, fizme sacristão aos trinta annos, para ganhar a vida. Venhamos, porém, ao nosso padre e á nossa dama.


II

Antes de ir adiante, direi que eram primos. Soube depois que eram primos, nascidos em Vassouras. Os pais d'ella mudaram-se para a côrte, tendo Eulalia (é o seu nome) sete annos. Theophilo veiu depois. Na familia era uso antigo que um dos rapazes fosse padre. Vivia ainda na Bahia um tio, d'elle, conego. Cabendo-lhe n'esta geração envergar a batina, veiu para o seminario de S. José, no anno de mil oitocentos e cincoenta e tantos, e foi ahi que o conheci. Comprehende-se o sentimento de discrição que me leva a deixar a data no ar.


III

No seminario, dizia-nos o lente de rhetorica:--A theologia é a cabeça do genero human o, o latim a perna esquerda, e a rhetorica a perna direita.

Justamente da perna direita é que o Theophilo coxeava. Sabia muito as outras cousas: theologia, philosophia, latim, historia sagrada; mas a rhetorica é que lhe não entrava no cerebro. Elle, para desculpar-se, dizia que a palavra divina não precisava de adornos. Tinha então vinte ou vinte e dous annos de edade, e era lindo como S. João.

Já n'esse tempo era um mystico; achava em todas as cousas uma significação recondita. A vida era uma eterna missa, em que o mundo servia de altar, a alma de sacerdote e o corpo de acolyto; nada respondia á realidade exterior. Vivia ancioso de tomar ordens para sahir a prégar grandes cousas, espertar as almas, chamar os corações á Egreja, e renovar o genero humano. Entre todos os apostolos, amava principalmente S. Paulo.

Não sei se o leitor é da minha opinião; eu cuido que se póde avaliar um homem pelas suas sympathias historicas; tu serás mais ou menos da familia dos personagens que amares devéras. Applico assim aquella lei de Helvetius: «o grau de espirito que nos deleita dá a medida exacta do grau de espirito que possuimos». No nosso caso, ao menos, a regra não falhou. Theophilo amava S. Paulo, adorava-o, estudava-o dia e noite, parecia viver d'aquelle converso que ia de cidade em cidade, á custa de um officio mecanico, espalhando a boa nova aos homens. Nem tinha sómente esse modelo, tinha mais dous: Hildebrando e Loyola. D'aqui podeis concluir que nasceu com a fibra da peleja e do apostolado. Era um faminto de ideal e creação, olhando todas as cousas correntes por cima da cabeça do seculo. Na opinião de um conego, que lá ia ao seminario, o amor dos dous modelos ultimos temperava o que pudesse haver perigoso em relação ao primeiro.

--Não vá o senhor cair no excesso e no exclusivo, disse-lhe um dia com brandura; não pareça que, exaltando sómente a Paulo, intenta diminuir Pedro. A egreja, que os commemora ao lado um do outro, metteu-os ambos no Credo; mas veneremos Paulo e obedeçamos a Pedro. _Super hanc petram..._

Os seminaristas gostavam do Theophilo, principalmente tres, um Vasconcellos, um Soares e um Velloso, todos excellentes rhetoricos. Eram tambem bons rapazes, alegres por natureza, graves por necessidade e ambiciosos. Vasconcellos jurava que seria bispo; Soares contentava-se com algum grande cargo; Velloso cobiçava as meias roxas de conego e um pulpito. Theophilo tentou repartir com elles o pão mystico dos seus sonhos, mas reconheceu depressa que era manjar leve ou pesado de mais, e passou a devoral-o sosinho. Até aqui o padre; vamos agora á dama.


IV

Agora a dama. No momento em que os vi fallar baixinho na egreja, Eulalia contava trinta e oito annos de edade. Juro-lhes que era ainda bonita. Não era pobre; os pais deixaram-lhe alguma cousa. Nem casada; recusou cinco ou seis pretendentes.

Este ponto nunca foi entendido pelas amigas. Nenhuma d'ellas era capaz de repellir um noivo. Creio até que não pediam outra cousa, quando resavam antes de entrar na cama, e ao domingo, á missa, no momento de levantar a Deus. Porque é que Eulalia recusava-os todos? Vou dizer desde já o que soube depois. Suppuzeram-lhe, a principio, um simples desdem,--nariz torcido, dizia uma d'ellas;--mas, no fim da terceira recusa, inclinaram-se a crer que havia namoro encoberto, e esta explicação prevalec eu. A propria mãi de Eulalia não aceitou outra. Não lhe importaram as primeiras recusas; mas, repetindo-se, ella começou a assustar-se. Um dia, voltando de um casamento, perguntou á filha, no carro em que vinham, se não se lembrava que tinha de ficar só.

--Ficar só?

--Sim, um dia hei de morrer. Por ora tudo são flores; cá estou para governar a casa; e você é só ler, scismar, tocar e brincar; mas eu tenho de morrer, Eulalia, e você tem de ficar só...

Eulalia apertou-lhe muito a mão, sem poder dizer palavra. Nunca pensára na morte da mãi; perdel-a era perder metade de si mesma. Na expansão de momento, a mãi atreveu-se a perguntar-lhe se amava alguem e não era correspondida; Eulalia respondeu que não. Não sympathisara com os candidatos. A boa velha abanou a cabeça; fallou dos vinte sete annos da filha, procurou atterral-a com os trinta, disse-lhe que, se nem todos os noivos a mereciam egualmente, alguns eram dignos de ser aceitos, e que importava a falta de amor? O amor conjugal podia ser assim mesmo; podia nascer depois, como um fructo da convivencia. Conhecera pessoas que se casaram por simples interesse de familia e acabaram amando-se muito. Esperar uma grande paixão para casar era arriscar-se a morrer esperando.

--Pois sim, mamãi, deixe estar...

E, reclinando a cabeça, fechou um pouco os olhos para espiar alguem, para ver o namorado encoberto, que não era só encoberto, mas tambem e principalmente impalpavel. Concordo que isto agora é obscuro; não tenho duvida em dizer que entramos em pleno sonho.

Eulalia era uma exquisita, para usarmos a linguagem da mãi, ou romanesca, para empregarmos a definição das amigas. Tinha, em verdade, uma singular organisação. Saiu ao pai. O pai nascera com o amor do enigmatico, do arriscado e do obscuro; morreu quando apparelhava uma expedição para ir á Bahia descobrir a «cidade abandonada». Eulalia recebeu essa herança moral, modificada ou aggravada pela natureza feminil. N'ella dominava principalmente a contemplação. Era na cabeça que ella descobria as cidades abandonadas. Tinha os olhos dispostos de maneira que não podiam apanhar integralmente os contornos da vida. Começou idealisando as cousas, e, se não acabou negando-as, é certo que o sentimento da realidade esgarçou-se-lhe até chegar á transparencia fina em que o tecido parece confundir-se com o ar.

Aos dezoito annos, recusou o primeiro casamento. A razão é que esperava outro, um marido extraordinario, que ella viu e conversou, em sonho ou allucinação, a mais radiosa figura do universo, a mais sublime e rara, uma creatura em que não havia falha ou quebra, verdadeira grammatica sem irregularidades, pura lingua sem solecismos.

Perdão, interrompe-me uma senhora, esse noivo não é obra exclusiva de Eulalia, é o marido de todas as virgens de dezesete annos. Perdão, digo-lhe eu, ha uma differença entre Eulalia e as outras, é que as outras trocam finalmente o original esperado por uma copia gravada, antes ou depois da lettra, e ás vezes por uma simples photographia ou lithographia, ao passo que Eulalia continuou a esperar o painel authentico. Vinham as gravuras, vinham as lithographias, algumas muito bem acabadas, obra de artista e grande artista, mas para ella traziam o defeito de ser copias. Tinha fome e sêde de originalidade. A vida commum parecia-lhe uma copia eterna. As pessoas do seu conhecimento caprichavam em repetir as idéas umas das outras, com eguaes palavras, e ás vezes sem differente inflexão, á semelhança do vestuario que usavam, e que era do mesmo gosto e feitio. Se ella visse alvejar na rua um turbante mourisco ou fluctuar um pennacho, póde ser que perdoasse o resto; mas nada, cousa nenhuma, uma constante uniformidade de idéas e colletes. Não era outro o peccado mortal das cousas. Mas, como tinha a faculdade de viver tudo o que sonhava, continuou a esperar uma vida nova e um marido unico.

Em quanto esperava, as outras iam casando. Assim perdeu ella as tres principaes amigas: Julia Costinha, Josepha e Marianna. Viu-as todas casadas, viu-as mãis, a principio de um filho, depois de dous, de quatro e de cinco. Visitava-as, assistia ao viver dellas, sereno e alegre, mediocre, vulgar, sem sonhos nem quedas, mais ou menos feliz. Assim se passaram os annos; assim chegou aos trinta, aos trinta e tres, aos trinta e cinco, e finalmente aos trinta e oito em que a vemos na egreja, conversando com o padre Theophilo.


V

N'aquelle dia mandara dizer uma missa por alma da mãe, que morrera um anno antes. Não convidou ningue m: foi ouvil-a sosinha. Ouviu-a, resou, depois sentou-se no banco.

Eu, depois de ajudar á missa, voltei para a sacristia, e vi alli o padre Theophilo, que viera da roça duas semanas antes e andava á cata de alguma missa para comer. Parece que elle ouviu do outro sacristão ou do mesmo padre officiante o nome da pessoa suffragada; viu que era o da tia e correu á egreja, onde ainda achou a prima no banco. Sentou-se ao pé d'ella, esquecido do logar e das posições, e fallaram naturalmente de si mesmos. Não se viam desde longos annos. Theophilo visitára-as logo depois de ordenado padre; mas saiu para o interior e nunca mais soube d'ellas, nem ellas d'elle.

Já disse que não pude ouvir nada. Estiveram assim perto de meia hora. O coadjutor veiu espiar, deu com elles e ficou justamente escandalisado. A noticia do caso chegou, dous dias depois, ao bispo. Theophilo recebeu uma advertencia amiga, subiu á Conceição e explicou tudo: era uma prima, a quem não via desde muito. O padre coadjutor, quando soube da explicação, exclamou com muito criterio que o ser parenta não lhe trocava o sexo nem suppria o escandalo.

Entretanto, como eu tinha sido companheiro do Theophilo no seminario e gostava d'elle, defendi-o com muito calor e fiz chegar o meu testemunho ao palacio da Conceição. Elle ficou-me grato por isso, e d'ahi veiu a intimidade de nossas relações. Como os dous primos podiam vêr-se em casa, Theophilo passou a visital-a, e ella a recebel-o com muito prazer. No fim de oito dias, recebeu-me tambem; ao cabo de duas semanas era eu um dos seus familiares.

Dous patricios que se encontram em plaga estrangeira e podem finalmente trocar as palavras mamadas na infancia não sentem maior alvoroço do que estes dous primos, que eram mais que primos: moralmente eram gemeos. Elle contou-lhe a vida e, como os acontecimentos acarretassem os sentimentos, ella olhou para dentro da alma do primo e achou que era a sua mesma alma e que, em substancia, a vida de ambos era a mesma. A differença é que uma esperou quieta o que o outro andou buscando por montes e valles; no mais, egual equivoco, egual conflicto com a realidade, identico dialogo de arabe e japonez.

--Tudo o que me cerca é trivial e chocho, dizia-lhe elle.

Com effeito, gastara o aço da mocidade em divulgar uma concepção que ninguem lhe entendeu. Emquanto os tres amigos mais chegados do seminario passavam adiante, trabalhando e servindo, afinados pela nota do seculo, Velloso conego e prégador, Soares com uma grande vigararia, Vasconcellos a caminho de bispar, elle Theophilo era o mesmo apostolo e mystico dos primeiros annos, em plena aurora christã e metaphysica. Vivia miseravelmente, costeando a fome, pão magro e batina surrada; tinha instantes e horas de tristeza e de abatimento: confessou-os á prima...

--Tambem o senhor? perguntou ella.

E as suas mãos apertaram-se com energia: entendiam-se. Não tendo achado um astro na loja de um relojoeiro, a culpa era do relojoeiro; tal era a logica de ambos. Olharam-se com a sympathia de naufragos,--naufragos e não desenganados--, porque não o eram. Crusoe, na ilha deserta, inventa e trabalha; elles não; lançados á ilha, estendiam os olhos para o mar illimitado, esperando a aguia que viria buscal-os com as suas grandes azas abertas. Uma era a eterna noiva sem noivo, outro o eterno propheta sem Israel; ambos punidos e obstinados.

Já disse que Eulalia era ainda bonita. Resta dizer que o padre Theophilo, com quarenta e dous annos tinha os cabellos grisalhos e as feições cançadas; as mãos não possuiam nem a maciez nem o aroma da sacristia, eram magras e callosas e cheiravam ao matto. Os olhos é que conservavam o fogo antigo era por alli que a mocidade interior fallava cá para fóra, e força é dizer que elles valiam só por si todo o resto.

As visitas amiudaram-se. Afinal iamos passar alli as tardes e as noites e jantar aos domingos. A convivencia produziu dous effeitos, e até tres. O primeiro foi que os dous primos, frequentando-se, deram força e vida um ao outro; relevem-me esta expressão familiar:--fizeram um _pique-nique_ de illusões. O segundo é que Eulalia, cançada de esperar um noivo humano, volveu os olhos para o noivo divino e, assim como ao primo viera a ambição de S. Paulo, veiu-lhe a ella a de Santa Thereza. O terceiro effeito é o que o leitor já adivinhou.

Já adivinhou. O terceiro foi o caminho de Damasco,--um caminho ás avessas, porque a voz não baixou do céu, mas subiu da terra; não chamava a prégar Deus, mas a prégar o homem. Sem metaphora, amavam-se. Outra differença é que a vocação aqui não foi subita como em relação ao apostolo das gentes; foi vagarosa, muito vagarosa, cochichada, insinuada, bafejada pelas azas da pomba mystica.

Note-se que a faina precedeu ao amor. Sussurrava-se desde muito que as visitas do padre eram menos de confessor que de peccador. Era mentira; eu juro que era mentira. Via-os, acompanhava-os, estudava esses dous temperamentos tão espirituaes, tão cheios de si mesmos, que nem sabiam da fama, nem cogitavam no perigo da apparencia. Um dia vi-lhes os primeiros signaes do amor. Será o que quizerem, uma paixão quarentona, rosa outoniça e pallida, mas era, existia, crescia, ia tomal-os inteiramente. Pensei em avisar o padre, não por mim, mas por elle mesmo; mas era difficil, e talvez perigoso. Demais, eu era e sou gastronomo e psychologo; avisal-o era botar fóra uma fina materia de estudo e perder os jantares dominicaes. A psychologia, ao menos, merecia um sacrificio: calei-me.

Calei-me á toa. O que eu não quiz dizer, publicou-o o coração de ambos. Se o leitor me leu de corrida, conclue por si mesmo a anecdota, conjugando os dous primos: mas, se me leu de vagar, adivinha o que succedeu. Os dous mysticos recuaram; não tiveram horror um do outro nem de si mesmos, porque essa sensação estava excluida de ambos, mas recuaram, agitados de medo e de desejo.

--Volto para a roça, disse-me o padre.

--Mas por que?

--Volto para o roça.

Voltou para a roça e nunca mais cá veiu. Ella, é claro que tinha achado o marido que esperava, mas saiu-lhe tão impossivel como a vida que sonhou. Eu, gastronomo e psychologo, continuei a ir jantar com Eulalia aos domingos. Considero que alguma cousa deve subsistir debaixo do sol, ou amor ou o jantar, se é certo, como quer Schiller, que o amor e a fome governam este mundo.


FIM DO MANUSCRITO DE UMSACRISTÃO