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Mater (Cruz e Sousa)

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N'aquella hora tremenda, grande hora solemne na qual se ia iniciar outra nova vida, foi para mim uma sensibilidade, original, um soffrimento nunca sentido, que me desprendia da terra, que me exhilava do mundo, tal era o choque violento dos meus nervos nesse momento, tal a delicada e curiosa impressão da minh'alma n'esse transe supremo.

Ella, abalada por gemidos, na dôr que a di. lacerava, quasi desfallecia, com a mais rara expressão mysteriosa nos grandes olhos, os labios lividos, o semblante de uma contemplatividade de martyrio, transfigurada já pela angustia sagrada d'quella hora, no instante augusto da Maternidade.

Todo o meu ser, arrebatado por essa immensa tragedia de sacrifícios, de abnegação christã, de heroi-mos incomparáveis, soffria com o estranho ser da Mater toda a amargura infinita do magestoso apparato da Vida prestes a surgir do cháos, da chamma palpitante, prestes a irromper da treva...

Como que outra natureza, uma paixão viva e forte, um carinho maior me inundava, subia ver tiginosamente pelo meu ser, me incendiava n'uma onda flammante de luz virginal, de claridade vibrante, que me trazia ao organismo alvoroçado rejuvenescimentos inauditos, mocidade viril, poderosa, alastrando em seiva fremente de sensações, nervosamente, nervosamente impulsionando o sangue.

Ás vezes ficava como que n'um vacuo, só, n'uma sinistra amplidão vasia de affectos, sob o electrismo de correntes inviziveis que me prendiam, me arrastavam ao pensamento da Morte, ao auge do dilaceramento, da affliccão, do delirio despedaçador da lembrança de vel-a morta, sem estremecimentos de vitalidade; sem que as suas mãos cheias de affago, as suas mãos clementes, bemaventuradas, misericordiosas, perdoadôras, sagradas, relicariamente sagradas, me acariciassem mais; sem que os seus braços longos, lentos, languidos, me acorrentassem de tépidos abraços; sem que o contacto dos meus beijos apaixonadamente profundos a acordasse, — fria, insensível, horrivel, gelada ao meu clamor de adeus, ao meu grito tenebroso, tremendo, de leão despedaçado, ferido pela flecha envenenada de uma dôr omnipotente, rojado de bruços, baqueando em soluços sobre a terra maldita e barbara! De subito, porém, as lancinantes incertezas, as brumosas noites pesadas de tanta agonia, de tanto pavor de morte, desfaziam-se, desappareciam completamente como os tênues vapores de um lethargo...

E uma claridade ineffavel de madrugadas de ouro, alvorescida das aves brancas de um paiz sideral, apagava em mim a dor fria, exacerbante, desses pensamentos impacientes e torvos; dava-me o vigoroso alento, a grande esperança de que ella sobreviveria, de que ella sentiria, com Orgulho sagrado, nesse primeiro movimento da Maternidade, correr nas veias todo o impulso delicioso e nobre, toda a delicada aptidão ingenita poderosa, profunda, para amamentar, fazer florir e cantar no hostiario sacrosanto dos seus seios, aquella doce e vicejante existencia que na sua attribulada existencia se gerara.

E toda a antiga e virtual castidade, a adolescencia promissora, prenunciai, o mago segredo pubere da sua passada virgindade se transfigurariam na opulencia, no fausto de sensibilidade, de nervosidade, da compléxa paixão materna.

Mas o momento da angustia suprema se approximava, fazia-se uma pausa religiosa nesse monologo mental que me agitava em febre, na concentração aflictiva dos meus pensamentos — agora mudos, no reverente silencio, na anciedade calada de quem espera...

Era chegado o momento, grande, grave e bello momento entre todos, em que a mulher, perdendo a volubilidade, a gracilidade diaphana e o alado encanto de virgem, se transfigura e recebe uma auréola, um serio resplendor de nobre martyrio, de sympathico consolo, envolve-se n'uma sombra e n'um silencio de piedade e de sacrificio, n'um Angelus abençoado de amor.

Era chegado o momento em que aquellas formas se espiritualisavam, se etherisavam, tomavam asas de sonho, inflammadas por um novo e alto sentimento, tão tocante e tão augusto, que parecia afinado e fecundado nos céus pela graça divina e peregrina dos anjos. É quando a mulher parece disprender-se, libertar-se suave e secretamente da argilla que a gerou e crear para si, solemnemente, uma esphéra perfeita e eleita de abnegação infinita e de resignação sublime. Quando os seus seios magnificentes, nos renascimentos da Belleza, symbolos delicados da maternal Ternura, florescem á vida dos pequenos seres que nascem, n'uma alvorada carinhosa e tépida de agasalho, amamentando-os com o nectar delicioso do leite.

Nessa hora extrema em que parece desprenderem-se da mulher, desatarem-se, evaporarem-se véos translucidos de virgindade, para surgir, como de um caule mysterioso, a meiga e magica flor da Maternidade.

Todo aquelle organismo fecundado estremecia, estremecia, nesse inicial e materno estremecimento virgem, vagamente lembrando as fugitivas vibrações nervosas de sonora harpa nova, de ouro puro, original e intacta, pela primeira vez vibrada com excepcional emoção por dedos inviolados e ageis...

E, em pouco, então, como n'um sumptuoso levante de purpuras, atravez de gemidos pungentes, de gritos e anciãs delirantes, a cabeça docemente pendida numa contemplativa amargura, os olhos adormentados pelas brumas crepusculares e lacrimosas de um presentimento vago, magoada e esmaecida toda a suave graça femenina, na extrema convulsão do corpo d'ella, todo aquelle surprehendente phenomeno foi como que accordando, alvorescendo, surgindo das névoas mádidas e somnolentas, lethargicas, de pesadello... E a flôr maravilhosa e rubra da materia, gerada na immensa dôr, abrio, emfim, em prodigios, pomposamente.

N'uma apotheose de sangue, respirando o sangue impetuoso, abundante, que jorrava em auroras, em primaveras vermelhas de viço germinal, raiara como clarão accêso de Vida, n'um grito intimo, latente, do seu tenro organismo elementar ainda — um grito talvez relvagem, um grito talvez barbaro, um grito talvez absurdo, arremessado para além, ao Desconhecido do mundo em cujos dédalos intrincados esse delicado ser acabára de penetrar agora por entre ensanomentamentos.

Parecia que de uma zona phantastica, dessa India ouro e verde, opulenta, feerica, como caprichoso thesouro de Lendas e de Bailadas, alvorára o Encanto, creára azas e viéra, com o pollen radiante da fecundação, insuflar a vertigem, dar o fremente sopro creador á cabeça, aos olhos, á bocca, aos braços, ao tronco, a todo o corpo n'um movimento quebrado, voluptuoso, languido, de germens que se concretisam, que se condensam e vão adquerindo aos poucos, com infinitas delica. desas e ineffabilidades, todas as fórmas perfeitas, todas as linhas ducteis, todas as curvas e flexibilidades sensiveis, todas as fugitivas expressões correctas e harmoniosas.

Alli estava aquelle vivo e eloquente rebento, illuminado pelos idealismos da minh'alma, vivendo dos florescimentos olympicos, da alacridade cantante, do ruido em festa, da immaculada frescura da minha livre e forte alegria antiga de adolescente.

Alli estava, para o meu amor sereno, para o consolo meditativo das minhas grandes horas de anceio, para o recolhimento ascetérico da minha fé esthesiaca, a Imagem palpitante, gárrula, trefega, da Infancia já passada.

Alli estava agora a vida desabrochante, o encanto alegre, aflorado, ridente — hymno viçoso e verde e virgem e evocativo e suggestivo de uma ventura morta, saudade intensa, chammejante, como que espiritualisada no Filho, rememorando, evocando, n'uma expressão elegiaca, todos esses longinquos, remotos e significativos deslumbramentos, canticos, miragens, soes e estrellas da primeira idade tão enternescivelmente assignalada.

Era como que a retrospectividade luminosa de um tempo, que subia, em incensos, de um fundo ennevoado: terra sagrada e extincta, saudosa e verdejante Palestina que eu entrevia longe, nas brumas vagas da memoria, d'entre hosannas e sycomoros; — pagina recordativa que as estrellas e os arômas docemente fecundaram de amor e de sonhos.

E eu ficava por muito tempo a olhai-o, a olhal-o, a revêr-me na frescura candida d'aquella carne, a aspirar com avidez o perfume violento d'aquella flôr viva, considerando, meditando sobre todos os seus traços, sobre a expressão curiosa, de pequenina mumia, do seu corpo velludoso, como que embalsamado no óleo virtuoso de preciosas hérvas verdes e virgens.

Alli estava, emfim, quem me tornava de ora em diante soturno, calado, no extase mudo da contemplação, como sob o impressionante poder cabalistico, sob a eloquencia vidente de hyerogliphos mágicos...

E, assim mentalmente considerando, eu sentia o mais reverente, o mais profundo, o mais concentrado respeito, o affecto mais vibrantemente tocante, aureolado de lagrimas, pelo templo ma-gestoso e santo d'aquelle bello ventre, onde emfim se officiára a primeira Missa de Propagação perpetua.

Todas as perfeições espirituaes do ser que se liberta da materialidade vil, todos os anceios supremos pelas formas intangiveis das transcendentes sensibilidades, me transfiguravam, contemplando em silencio aquelle ventre precioso e bom, onde tomára corpo, se consolidara em organismo o gérmen quente e intenso da Paixão.

Contemplando em silencio aquelle ventre venerando e divino — Vas honorabile! — de onde o sentimento épico e mystico das sempiternas Abnegações ondulou como aroma eterno e celeste; ventre gerador e poderoso que se purificara e sagrara triuniphantemente com os sacrificantes milagres da Fecundação; Olympo glorioso que abrira os pórticos fabulosos á dominativa emoção, á phantasia heroica, á graça d'azas seraphicas, do Genio consolador, estóico e elyseo das amparadôra, misericordiosas Mães!

Ó Ventre obscuro e carinhoso, soberbo e nobre pela egrégia funcção de gerar! Ventre de affectivas sublimidades, d'onde cantou e florescêo á luz a dolente victoria de uma existência, a encarnação soberana, a fugitiva tulipa negra para idealisar singularmente os Infinitos nostálgicos da minha Crença! Ó Ventre amado! Como foram extremamente puros e penetrantes e frementes os beijos de apaixonada volupia e reverencia sacrosanta que eu depuz sobre o teu ébano!

Em torno, no ambiente carregado da intensidade de toda essa maravilhosa sensação, errava o segredo rhythmal de Litanias, de préces que Visões resavam baixo, por Céos ineffaveis, n'um abrir e fechar d'azas archangélicas, d'azas limpidas, d'azas e azas rumorejantes, aflantes, cujo suave e ciciante ruido eu na Imaginação escutava enlevado...

E a doce Mater, mais calma, n'uma uncção de bemaventurança, n'uma auréola déifica, serenada já da dor profunda da Maternidade, parecia penetrada de um sentimento celeste, de fluidos virtuaes do grande Amor, de resignada piedade, — agua lustral, da maternal paixão, que a lavava do mal do torturante peccado, purificando a sua alma simples, illuminando-a toda com o altivo esplendor de uma força heroica.

Lembrava uma d'essas excelsas Divindades espirituaes, a Entidade das Abstracções dos reclusos mysticos, Apparição immortal, cuja face, no resplendor translucido d'aquelle soffrimento regenerante, tinha para mim o encanto mais alto, a ternura mais bella, a abnegação mais serena.

Sentia-me diante de completa Religião nova que evangelisava a Crença n'aquella Mãe e n'aquelle Filho, — inteira Religião nova, cujos rituaes e cultos eternos eram para mim agora esses dous seres extremadamente amados, cujo sangue irradiava no meu sangue, cuja vida penetrava na minha vida, inoculando-a de um jubilo e de uma graça prophética — graça de Anjos e Astros em claridades, musicas e canticos, por fios subtis de multiplas cordas d'harpas, d'harpas e harpas, d'entre os Azues e as Constellações...

Ao mesmo tempo sentia então que profundos e penetrantes frémitos me abalavam, me convulsionavam todo, como se se operasse no meu organismo transformações recônditas, gerando uma outra alma, trazendo-me sede insaciavel da Vida, o ressurgimento de esthesia particular e rara.

Força estranha, que eu até ahi não conhecia, circulava com vehemencia nos meus nêrvos, dava-lhes tensibilidade e vibratibilidade mais leve, mais fina; e, grandes azas diaphanas de Aspiração e Sonho, alavam-me ás supremas serenidades da Piedade e do Amor.

O desejo que me clamava dentro do peito, em claras trompas guerreiras, n'uma onda sonóra e impetuosa, era o de ir além, fóra, longe do tédio das cidades murmurejantes, longe das curiosidades indiscretas dos indifferentes e frivolos, das sentimentalidades apparatosas, dos enternecimentos calculados, decorativos e classicos, das expansões d'estylo, ornamentaes como corpos em tatouage, de tudo o que grulha e reina na boçalidade magestatiea da espécie humana.

O meu desejo indómito era de ir além, fóra das brutas portas de pedra da Região dos Egoismos, gritar, gritar, clamar, livremente, á natureza virgem, aos campos, ás florestas, aos mares, ás ullulantes tempestades, aos soes em febre, ás noites triumphaes, coroadas d′estrellas, aos ventos coroados de pezadellos, que esse Filho extravagantemente amado nascera, que surgira emfim do mysterio somnambulo da Maternidade...

A anciedade que me agitava, levantando dentro de mim o desconhecido, convulsionando este organismo n′um incêndio de sensação, era de deprécar ao Indefinido das Cousas, ao Abstracto das Formas, ao Intangível do Espirito, á Eloquencia dos Presagios, para que me disséssem o que ia ser d′esse fragil obscuro, d′essa timida flor da Desgraça, o que ia ser d′aquelles membros tenros, débeis; que estupendos augurios dormiriam no brilho fugitivo d′aquelles olhos inconscientes, perdidos no vago de um fluido sentimento, sob o fundo fatal das impuresas da Carne, das inquietações do Peccado — gérmens latentes ainda, apesar do desdobramento millenario das eras, da absoluta e primitiva Culpa humana.

Anciava que me disséssem que mágicos philtros de gnômos da Noite o predestinariam; que frémitos de desejo convulsionariam essa bocca ainda tão impolluta, sã, ainda sem laivos visguentos; que luxuria intensa e nova inflammaria, accenderia scentelhas nessa bocca humida, fresca, viçosa, apenas entreaberta já num indefinido anhélo, sedenta, inquiéta, impasciente, ávida já da instinctiva volupia do leite...

Todo o evocativo estremecimento das saudades, das esperanças, das alegrias, das lagrimas, me invadia a alma n'um sonho exquisito, exotico, oriental, por entre os nardos quentes, perturbadores e magnéticos, da Abyssinia e da Arabia Ideal de todos os meus pensamentos fugidios, circulando, gyrando, torvelinhando, como sylphos procreadores, em torno áquella meiga e venerada cabeça.

Eu ficára absôrto, contemplativo ante as suggestões delicadas que o supremo phenomeno trazia, nessa manifestação singular de curiosidades, de preciosas revelações ingenitas e caprichos ignotos da Natureza, sentindo que o Filho poderosamente me fascinava, que a mais irresistivel attração me chamava para elle, attração vital, immediata, eterna, do sangue communicativo e fraterno que clama pelo sangue, fraterno.

Ella, affectiva a Sacrificada, Mater, dolorosamente ahi ficaria na terra, gravitando nos centros nervosos da Vida, — Sombra divina e errante! — para o futuro, para a obscuridade, para a velhice, para o silencio e esquecimento dos tempos...

Elle, Filho, surgindo das nebulosidades da Materia, caminhando, caminhando a Via-Sacra das horas e dos dias pelas êrmas e infinitas encruzilhadas dos Destinos, iria então, resignado ou desesperado, para o Vilipendio ou para as mediocres conquistas do Mundo, atravez dos conclamadores Anathemas, atravez dos lancinamentos inconcebiveis, atravez das taciturnidades melancólicas, atravez de tudo, tudo, tudo o que chóra d′alto, profunda e apocalypticamente, o Requiem solemne, a soberana magestade, tremenda, tragica, da imponderavel Dor!...