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Memória sobre a ilha Terceira/V/II/III

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CAPÍTULO III Continuação do governo espanhol até à morte de D. Filipe I de Portugal Em 1591 foi substituído o mestre de campo D. Juan de Urbina, no governo dos Açores, por D. Antonio de la Puebla, antigo militar e homem experiente em negócios administrativos. Um dos primeiros atos do seu governo foi tratar da fortificação da ilha e do alojamento dos soldados, que continuavam espalhados pelas diferentes casas da cidade, fazendo ver a El-Rei, em carta de 10 de janeiro de 1593, a necessidade que havia em tal construção e a falta de meios em que estava para pagamento da tropa. Não pôde D. Filipe satisfazer de pronto o justo pedido de D. Antonio de la Puebla. E para evitar o lançamento de novos tributos, que podiam originar alguma rebelião do povo terceirense, resolveu requerer à Câmara da Vila da Praia um empréstimo de dez mil cruzados, e vinte mil às São Sebastião e de Angra, para sustento das companhias estacionadas em toda a ilha. Para a realização deste empréstimo, reuniram-se as Câmaras para cotizarem os seus munícipes, e foi com dificuldade que o governador conseguiu obter dinheiro, porque o povo estava bem sobrecarregado de impostos e era grande a esterilidade dos terrenos. Os vastos conhecimentos militares de D. Antonio de la Puebla mostram-lhe que a sua situação não podia durar muito, e resolveu remediá-la com a construção de uma fortaleza que lhe dispensasse um exército tão numeroso, contra o qual aumentavam as queixas dos terceirenses. Percorrendo a costa da ilha Terceira, pelo lado do sul, e examinando as fortificações que já existiam, reconheceu que seria o Monte Brasil o melhor


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ponto estratégico para uma fortaleza que, dominando a maior parte da costa, poria em boa defesa a cidade de Angra e povoações circunvizinhas, impedindo qualquer desembarque do inimigo. Feito o plano da nova fortaleza pelo engenheiro-mor João de Vilhena, mandado expressamente para este fim por D. Filipe, e depois de ter sido comprado o terreno pela quantia de noventa mil réis a Manuel do Rego, veio a Ordem de 29 de maio de 1591 para se dar princípio às obras, sendo lançada a primeira pedra no alicerce da bateria de Santa Catarina em 1593. Em cinco anos de trabalho se construiu a muralha que forma a fortaleza e que importou em um milhão e setecentos e setenta mil cruzados, concluindo-se mais tarde o seu interior. Para acorrer a estas despesas não bastaram os navios que durante o ano vinham de Portugal e Espanha carregados de cal, ferramentas e vários utensílios; foi preciso também recorrer aos rendimentos fiscais de todas as ilhas dos Açores, e que os réus sentenciados nos diversos tribunais açorianos fossem mandados para estes trabalhos, onde eram maltratados. Constituíram as galés para os vários condenados, podendo dizer-se, como um dos nossos cronistas daquela época, que as argamassas empregadas naquela fortaleza tinham sido regadas com muito sangue e lágrimas. Pouco depois de fundado este castelo, ao qual foi dado o nome de São Filipe do Monte Brasil, faleceu o mestre de campo D. Antonio de la Puebla, sucedendo-lhe no governo D. António Sentono, cavaleiro da Ordem de São João, e que tomou posse em 1594. Não foram tão felizes os terceirenses com este novo governador, de génio o altivo e irascível, intrometendo-se em todos os negócios administrativos e impondo-se nas deliberações das Câmaras. Assim, tendo havido em 1593 grande escassez de víveres, sendo por isso alcunhado «o ano da fome», e causando muitas vítimas, seguiram-se alguns anos de abundância, vendo-se obrigados os terceirenses a embarcar todo o trigo disponível para Portugal, por ordem de D. Filipe. Na reunião das Câmaras, a que assistiu o governador, deliberou-se taxar a venda do trigo a cento e vinte réis o alqueire. Não se conformou D. António Sentono com esta resolução e mandou fixar os pesos do pão e da carne como entendeu, para favorecer o sustento da soldadesca, prejudicando desta forma os interesses locais. Reclamaram as Câmaras deste procedimento tão insólito, partindo para Lisboa como procurador o cidadão Custódio Vieira Bocarro, levando consigo todas as representações e cartas para o capitão do donatário D. Cristóvão de Moura. Em carta régia de 7 de junho de 1597, foi asperamente repreendido o governador D. António Sentono, recomendando-se-lhe que dali em diante se não intrometesse nas atribuições do corregedor e das Câmaras, devendo usar de brandura e respeito para com os terceirenses, como tinham feito os seus antecessores.


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Continuavam as obras do famoso castelo de São Filipe, com os maiores sacrifícios das famílias terceirenses, sobrecarregadas com impostos lançados por El-Rei e pelas Câmaras, quando em 1597 aportou ao porto de Angra a frota das Índias conduzindo para mais de trinta milhões de ouro, sendo perseguida pela armada do Conde de Essex,1 que viera por ordem da Rainha de Inglaterra cruzar no mar dos Açores com o firme propósito de aprisionar os navios portugueses ou espanhóis. Toda a riqueza conduzida nos porões foi depositada no castelo; e com ela conseguiu D. António Sentono dar maior impulso à construção da fortaleza. Corria pacificamente o ano de 1597, e desde 1595 que os soldados espanhóis estavam aquartelados na rua denominada do Quartel, sem disciplina militar e entregues à devassidão e ao roubo. Tendo aumentado as queixas do povo de Angra contra o alojamento dos soldados, foi necessário construirem-se habitações próprias na nova fortaleza. Para isso foi escolhida uma rua bem larga naquela época, começando na linha ocidental da Rua da Boa Nova até à rocha do Porto Novo e limitada pela linha oriental da Rua do Conselheiro Nicolau Anastácio de Bettencourt. Os pagamentos tornaram-se morosos e pouco satisfaziam às exigências duma gente rude, corrompida pelos vícios mais desprezíveis, e que na sombra se preparavam para uma revolta conjuntamente com os seus camaradas das Vilas da Praia e de São Sebastião. No dia marcado, sublevaram-se os soldados de Angra, durante a noite, cercando logo os quartéis do governador e oficiais com o intuito de os prender, sendo depois repelidos pela tropa portuguesa e parte castelhana, que não aderira ao movimento. Na Vila da Praia, onde estava o capitão Francisco de la Rua, tendo como subalternos os capitães Herrera e D. Pedro, foi cercada a habitação do primeiro, que conseguiu escapar, indo depois abafar a revolta com os soldados que se lhe conservaram fiéis, e auxiliado pelo capitão português Francisco da Câmara Paim. Foi D. António Sentono inexorável nas penas impostas aos cabeças de motim, mandando-os executar na forca do castelo, e o chefe da revolta mandado para Espanha por ordem de D. Filipe. No ano seguinte faleceu o Bispo de Angra D. Manuel de Gouveia, denominado o Casto. Foi um sacerdote respeitado e querido pelo povo terceirense, tanto na sua jurisdição eclesiástica como cível. Fundou a paróquia de Santa Luzia de Angra e conseguiu, com muito trabalho, que fosse melhorado o vencimento de vários empregados da Sé Catedral e aumentadas as côngruas dos párocos de toda a ilha. Tais foram os factos principais sucedidos no reinado de D. Filipe I


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de Portugal, que faleceu a 13 de setembro de 1598, no Palácio do Escorial. Sucedeu-lhe seu filho Filipe II de Portugal e III de Espanha, sendo aclamado na ilha Terceira com todas formalidades do estilo, no dia 31 de janeiro de 1599. Francisco Ferreira Drummond, nos seus Anais da Ilha Terceira, referindo-se à morte de D. Filipe diz: «A 17 de setembro do ano de 1598 faleceu El-Rei Filipe I de Portugal e II de Castela, em idade de 71 anos. Achou-se em pessoa na batalha contra os franceses e os venceu [...]». Esta asserção é falsa. Na célebre guerra da religião, que terminou com o Édito de Nantes,2 assinado a 15 de abril de 1598, foi Filipe II um inimigo irreconciliável de Henrique IV, rei de França; e na última batalha de Amiens, vendo-se vencido o orgulhoso rei de Espanha, pediu tréguas, sendo assinada a paz quinze dias depois do Édito (2 de maio); e nos últimos dias da sua vida, já quase moribundo, pediu para ir para o Escorial, onde faleceu num pequeno aposento, cheio de remorsos pelos suplícios mandados aplicar a tantos infelizes.


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