Memória sobre a ilha Terceira/V/IV/I

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CAPÍTULO I Queda da constituição. Instalação do governo absoluto na ilha Terceira Desde a instalação do novo governo constitucional, em que Stockler ficou sem os poderes absolutos de outrora, acabaram as perseguições infames e as denúncias mesquinhas, restabelecendo-se a paz e o sossego entre as famílias terceirenses. Não foi muito duradoira esta nova época de tranquilidade. Os adeptos de Stockler, acérrimos partidários do governo absoluto, não deixaram de maquinar na sombra contra o novo regime político do país, afirmando que El-Rei não reconhecera a constituição organizada pelas Cortes portuguesas e que Stockler seria reconduzido ao seu antigo cargo, a pedido do povo terceirense que o estimava muito. Estes boatos não deixaram de alarmar um pouco o novo governo da ilha Terceira, pondo-o de sobreaviso contra qualquer tentativa dos inimigos da constituição. O general Stockler, hábil político e sabendo simular bem as suas ideias anti-constitucionais, fez distribuir pelos soldados uma proclamação, fazendo-lhes ver: «que para evitar públicas perturbações, consentira ficar na ilha adido ao governo, até decisão do supremo governo do reino; que não aceitaria cargo, poder ou mandado que lhe não fosse concedido pela suprema autoridade; que não tomava parte em tumultos populares, antes os aborrecia e detestava; que esperassem toda a ventura da constância da ordem estabelecida, e das alterações e violência tumultuária, senão males e desgraças». Acreditou o novo governo nestas declarações de Stockler, ficando convencido que dali não lhe adviria contratempo algum para a organização e marcha do novo sistema governativo. Era uma nova tática política, desconhecida na ilha Terceira. Valendo-se os absolutistas da antiga questão dos baldios, que constituiu sempre uma arma das mais poderosas da política


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terceirense, instigaram o povo ao derribamento dos tapumes, palheiros e tudo o mais que fora organizado durante o governo do infeliz Araújo. Foram-se espalhando as arruaças e tumultos populares por toda a ilha, voltando-se o ódio do povo analfabeto e rude contra os cidadãos que juravam a constituição ou se mostravam seus adeptos, vendo-se o corregedor obrigado, na qualidade de intendente de polícia, a tomar enérgicas medidas, dando parte ao Governo para que recomendasse aos povos todo o sossego, do mesmo modo que pedia ao bispo que exigisse dos párocos as práticas nas suas igrejas aconselhando o sossego e reprovando os tumultos. Foi em 1821 que se fizeram as primeiras eleições para deputados, por escrutínio secreto, ficando eleitos os cidadãos Dr. Roberto Luís de Mesquita, Manuel José Coelho Borges e Manuel Inácio Martins Pamplona, depois Conde de Subserra e um dos grandes vultos da política portuguesa. No dia 14 de julho mandou a Câmara de Angra afixar edital para que os habitantes de toda a ilha apresentassem as suas memórias e requerimentos às Cortes, os quais seriam levados pelos deputados acima designados. Nada conseguiu o povo terceirense, concorrendo poderosamente o desleixo do Governo de Portugal para aumentar o partido absolutista. No dia 19 de julho fundeava no porto de Angra o brigue Flor do Mar, com um aviso de El-Rei, onde declarava não considerar como legítimo o governo da ilha Terceira por nele figurarem o Bispo e o general Stockler, sendo logo nomeado para substituir este último o brigadeiro João Maria Xavier de Brito. Vendo-se destituído do poder e temendo qualquer tentativa de assassinato por parte dos seus inimigos, que não eram poucos, resolveu Stockler retirar-se quanto antes para Lisboa, embarcando no dia 11 de agosto de 1821. No ano seguinte recebia a Câmara de Angra uma participação do governo interino, de que vinha a bordo da corveta Voador, o desembargador José Firmino da Silva Geraldes Queilhas, sindicar dos atos do ex-governador Stockler, do governador do Castelo de São João Baptista, Caetano Paulo Xavier, e do Bispo; sendo estes logo presos e remetidos para Lisboa, à exceção do primeiro, que já lá estava. Tomaram também parte na sindicância o corregedor José Joaquim Cordeiro, que fora despachado a 12 de setembro de 1821, e o juiz Grade, figadal inimigo de Stockler, e contra o qual maquinavam os vereadores da Câmara de Angra e os adeptos do governo absoluto. A 9 de abril de 1822 procedia-se pela primeira vez à eleição das Câmaras Municipais, segundo o novo regímen constitucional, ficando eleitos para a de Angra: José da Costa Franco, Jerónimo Martins Pamplona, João Baptista de Bettencourt, Luís Pacheco de Lima, José de Menezes Camelo, Manuel de Barcelos Machado, João Pedro Coelho Machado de Melo, Luís José Coelho, José Joaquim Teixeira; mesteres João Francisco de Oliveira e António Caetano, secretário Manuel José Borges. Na da Praia: os capitães Elisário Coelho Ribeiro, Mateus Dinis, João Pereira Borba, Manuel Caetano


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de Barcelos, António Machado Fagundes Mouro, procurador José Narciso Parreira, secretário João Jacinto Vieira, juiz ordinário João do Rego de Menezes. Finalmente, na Vila de São Sebastião: Francisco Machado Faleiro, Tomé Ferreira d’Ormond, José Martins Toste, procurador José Machado Homem Enes, secretário Francisco Ferreira Drumond, e juiz ordinário o alferes António Ferreira Fagundes. Durante os primeiros meses de 1822 correu serenamente a administração pública da ilha Terceira, mas sem que os liberais tivessem confiança na permanência do governo constitucional, segundo a marcha que iam tendo os negócios públicos de Portugal. Ao mesmo tempo os absolutistas, cada vez mais empenhados na queda da constituição, esperavam a cada momento uma nova revolta em Portugal, fazendo espalhar a notícia de que o infante D. Miguel se unira a sua mãe D. Carlota Joaquina e ao Marquês de Chaves, para restabelecerem o antigo sistema despótico, sendo novamente nomeado Garção Stockler para capitão-general dos Açores. Não se enganaram os propagandistas destes boatos. Em diferentes pontos de Portugal se tramava contra a constituição; e as primeiras eleições de deputados mostraram cabalmente o seu fatal destino. A revolta do Conde de Amarante, em Vila Real, à qual aderiram os povos de muitas vilas e aldeias de Trás-os-Montes e vários generais, como Gaspar Teixeira e outros, que tinham entrado na revolução de 1820, surpreendeu e alarmou o governo português, que reconheceu a sua fraqueza no exército, onde contava poucos chefes constitucionais. A Rainha D. Carlota Joaquina, que jurara vingar-se dos ultrajes que recebera dos constitucionais em plena Câmara e conhecendo o carácter versátil e incoerente de seu marido, obrigou seu filho, o infante D. Miguel, a pôr-se à frente da revolução portuguesa, fazendo-o marchar disfarçado na noite de 26 de maio, para Vila Franca, onde se apresentou aos soldados, que o receberam com entusiasmo, soltando vivas ao Rei absoluto. A notícia deste pronunciamento da tropa, tendo por chefe o infante, aterrorizou Lisboa inteira, julgando o fraco D. João VI que chegara a sua última hora. De dia para dia aumentavam as adesões da tropa ao infante D. Miguel, até que no dia 30 do mesmo mês só ficou em Lisboa a guarda de honra ao Paço da Bemposta. O governo pedira às Câmaras o seu voto de confiança para reprimir a revolta, o que lhe foi negado, ao mesmo tempo que D. João VI, saindo furtivamente pelo portão da quinta com toda a sua família, fora reunir-se a seu filho, sendo calorosamente aclamado Rei absoluto e organizando logo o seguinte ministério: Conde de Palmela, estrangeiros; Martins Pamplona, depois Conde de Subserra, guerra e marinha; Joaquim Pedro Gomes de Oliveira, reino; Falcão de Castro, justiça; e Mouzinho da Silveira para a fazenda. Quanto ao infante, que não gostara da presença de seu pau, foi


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nomeado generalíssimo das tropas portuguesas. Assim cala a grande obra de Fernandes Tomás e de Borges Carneiro! Ainda não era conhecida oficialmente a mudança de governo em Portugal, já começavam em Angra os tumultos populares promovidos pelos absolutistas, tornando-se mais notável o do 1.° de junho de 1823, em que tomaram parte mais de quatrocentas pessoas. Foi escolhido para ponto de reunião o terreno onde está hoje o cemitério dos hebreus e que naquela época servia de curral do concelho, com o fim de se lhe reunirem forças suficientes com que pudessem obrigar a tropa a acompanhá-los. Pelas dez horas da noite o juiz Grade, homem valente e destemido, penetrou naquele recinto, somente acompanhado pelos oficiais de justiça, e prendeu os principais promotores da revolta; fazendo dispersar o resto do povo que estava convenientemente armado. Poucos dias depois, no dia 3 de julho de 1823, chegava ao porto de Angra o brigue Constância, pelo qual se soube da queda do novo governo e da aclamação de D. João VI como Rei absoluto. A curiosidade tinha chamado muito povo ao cais da cidade e ao saber as novas espalhadas pelo capitão do navio, deu vivas a El-Rei absoluto, fazendo subir ao ar grande numero de girândolas, ao mesmo tempo que na fortaleza de São João Baptista se dava uma salva de artilharia e os sinos da catedral repicavam alegremente. Saíram para a rua os principais fidalgos da cidade de Angra, adeptos do absolutismo, salientando-se o brigadeiro Vital de Bettencourt e seus filhos, o tenente-coronel José Teodósio de Bettencourt e Bento de Bettencourt, o fidalgo João Pereira de Lacerda, Jerónimo Martins Pamplona, Luís José Coelho e vários eclesiásticos, dando entusiásticos vivas ao Rei absoluto. Reuniu-se logo a Câmara de Angra para tomar conhecimento dos ofícios e participações do novo governo, fazendo espalhar depois a seguiu. Proclamação: «A Câmara de Angra aos fiéis e leais angrenses. — Nobres e leais angrenses. Povo fiel e sempre fiel, chegou o suspirado período da nossa salvação: já o nosso Augusto Monarca se acha elevado ao trono de seus maiores, tranquilizai-vos, clama o mesmo Augusto Monarca; sossegai, estai pacíficos, que o nosso Soberano nos assegura que um poder absoluto repugna ao seu paternal, e que outro legítimo há-de segurar a dignidade da coroa, e manter os direitos e liberdades do cidadão. — Honrados angrenses, brioso povo, escutai o que a todos proclama o nosso, o melhor de todos os Monarcas: as seguintes palavras são as da sua paternal proclamação: «cidadãos eu não desejo, nem desejarei nunca, o poder absoluto, e hoje mesmo o rejeito; os sentimentos do meu coração repugnam ao despotismo, e à repressão, desejo sim a paz, a honra, e a prosperidade da nação», obedecei pois ao que vos proclama


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o nosso Augusto Monarca; reparai bem que vos recomenda a paz, e a honra: e para vos constituírdes dignos, como sempre fostes, do honroso título de fiéis e leais angrenses, é preciso que guardeis a paz e sossego; e para manter esta, é preciso não fazer partidos. Esquecei-vos de vinganças particulares; amai-vos mutuamente uns aos outros; dai uma demonstração sincera de que sois verdadeiros católicos romanos, fiéis portugueses: o nosso mesmo Augusto Monarca, o nosso amante pai, nos diz a todos: que só se «considera feliz quando tiver reunidos todos os portugueses; que se esqueçam das opiniões passadas, exigindo fidelidade no comportamento futuro». Portanto, ó fiéis e leais angrenses, o nosso Monarca vos recomenda que nos esqueçamos do passado. É um dever nosso, é um dever sagrado, respeitar e guardar e venerar a sua sábia e paternal determinação, guardando a paz entre todos, respeitando e obedecendo às autoridades, e proclamando sempre: viva El-Rei nosso Senhor, o Senhor D. João VI; viva a Casa de Bragança. — Câmara de Angra, 3 de julho de 1823. — Escrivão da Câmara, Manuel José Borges que a escrevi. — José da Costa Franco, presidente — Jerónimo Martins Pamplona — João Pedro Coelho Machado Fagundes de Melo — João Baptista de Bettencourt Vasconcelos Correia e Ávila — Luís Pacheco de Lima Vasconcelos — Luís José Coelho — José de Menezes Camelo — Manuel de Barcelos Machado — Manuel de Lima da Câmara. — José Joaquim Teixeira — João Francisco de Valença, procurador dos mesteres — José Caetano Nunes, procurador dos mesteres. — Lugar do selo do concelho.» Às 4 horas da tarde do dia 3, chegava à Vila da Praia um soldado de artilharia com as ordens e ofícios do novo governo interino, recomendando o juramento ao novo sistema monárquico absoluto. O coronel de milícias Cândido de Menezes, percorreu as ruas da Vila montado no seu cavalo, seguido de muito povo, e chegando à casa da Câmara, tirou o estandarte com o qual deram vivas ao Rei absoluto, ao infante D. Miguel e à rainha D. Carlota Joaquina. Fizeram-se luminárias e foi cantado um solene Te Deum na igreja matriz. Na Vila de São Sebastião procedeu-se também às mesmas solenidades e Te Deum, com assistência da Câmara. Em Angra tiveram mais luzimento as festas para comemorar o novo governo de Portugal, substituindo-se os dispendiosos festejos de cavalhadas e corrida de touros pelas solenidades religiosas. Começaram no dia 6 de julho por uma solene missa e Te Deum na catedral, a que assistiu a Câmara, autoridades civis e militares, corporações eclesiásticas, nobreza e povo de Angra. Foi orador o reverendo frei António do Rosário, lente de teologia no convento de São Francisco, que, em termos violentos, combateu a constituição enaltecendo o novo governo absoluto. No fim deram-se três salvas


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de mosquetaria que foram correspondidas por salvas de artilharia nas fortalezas. No dia 17, um grupo de eclesiásticos, tendo à frente o reverendo Manuel Joaquim Fernandes, capelão da igreja do Colégio, celebraram uma sumptuosa festa a Nossa Senhora da Boa Morte, orando o reverendo frei Cipriano do Monte do Carmo, da Ordem de São Francisco. Instalado o novo governo absoluto, não se fizeram esperar muito as represálias, começando as perseguições políticas, as denúncias e os ultrajes aos constitucionais. A primeira vítima foi o juiz Grade, empenhando-se os vereadores da Câmara de Angra na sua demissão, apegando que fora ele o principal promotor da revolta de 2 de abril de 1821. Não conseguiram os seus intentos, por parte do governo; e, apesar da Câmara lhe intimar a sua suspensão, não quis o juiz Grade entregar a vara, retirando-se da Câmara e embarcando, poucos dias depois, para Lisboa por sua livre vontade e em pleno dia, sem que alguém intentasse prendê-lo, tal era o temor que a todos impunha a coragem daquele magistrado. Seguiram-se depois os insultos da populaça da cidade contra os constitucionais, tornando-se difícil a manutenção da ordem pública. Na Vila da Praia, repetiram-se as mesmas violências, sendo ali a primeira vítima Francisco Ferreira Drummond, que teve de refugiar-se no Mosteiro da Luz, para escapar às iras da populaça; e seria assassinado se não fora a proteção do juiz de fora António José Machado. Poucos dias depois teve de fugir para a ilha de São Miguel, juntamente com José Luís da Silva, José Monteiro e o farmacêutico Martiniano Evaristo, para assim escaparem à revolta do povo terceirense. Foi na Vila da Praia que se tornou mais notável a perseguição aos constitucionais: alguns paisanos da Vila, acompanhados pelos soldados de milícias, invadiram, no dia 1.° de agosto de 1823, as casas dos que consideravam como seus inimigos, prendendo e espancando aqueles que pretendiam resistir. Encheram-se as cadeias públicas em poucas horas; e tendo chegado, na tarde daquele dia, à Vila o coronel Cândido de Menezes, acompanhado pelo major António Moniz Barreto e o capitão de estado-maior José Borges Scotto, resolveram estes oficiais, fingindo-se magoados pelos tristes acontecimentos daquele dia, que fossem removidos para Angra todos os presos, para os livrar da fúria do povo, que constantemente gritava pela morte aos seus infelizes concidadãos. No fim de quatro dias, eram conduzidos os presos à cidade, no meio de uma escolta, sendo-lhes arremessadas algumas pedras durante o trajeto. Aumentou a arruaça durante a passagem por Val-de-Linhares e Largo de São Bento, onde estava o povo da Ribeirinha, que sempre se salientou nos tumultos populares. Perto da noite é que puderam entrar na cidade, sendo preciso abrir passagem à força, por entre a multidão que enchia a Rua da


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Guarita, indo depois recolher-se furtivamente este grupo de presos no Convento de São Francisco, onde entraram pelo portão dos carros, por ser o lugar mais escuso. Tentaram os revoltosos um ataque ao convento; e de certo abririam a machado as portas, se não fosse a escolta que permaneceu por algum tempo nas proximidades do edifício. Refletiu-se na cidade o procedimento dos praienses. A soldadesca insubordinada rebelou-se contra o governador, que teve de refugiar-se no interior da ilha, e, reunidos a alguns paisanos, arrombaram algumas casas da cidade, prendendo os constitucionais que encontravam e levando-os à força para o Castelo, onde eram metidos no calejão à entrada da antiga porta falsa. Finalmente, no dia 3 de agosto de 1823, ficava instalado em Angra o novo governo interino composto pelo coronel Cândido de Menezes, que ficou com o governo das armas, João Pereira de Lacerda, Luís Meireles do Canto e Castro, Roberto Luís de Mesquita, e para governador do castelo foi nomeado Manuel José Coelho Borges, que, pouco depois, pediu a sua demissão por não querer anuir às perseguições que de continuo se faziam e que ele julgava injustas.


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