Memória sobre a ilha Terceira/V/IV/III
CAPÍTULO III Aclamação de D. Miguel na ilha Terceira. Estado da ilha em 1828 até ao dia 22 do junho daquele ano Após a morte do desventurado D. João VI, recebeu seu filho D. Pedro, no Brasil, uma deputação de Portugal que ia dar-lhe a fatal notícia e ao mesmo tempo receber as suas ordens, visto ser reconhecido como Rei dos portugueses. Vendo a impossibilidade de governar Portugal de tão longe, abdicou a coroa portuguesa em sua filha D. Maria da Glória, que então contava sete anos de idade, com a condição de casar com seu tio o infante D. Miguel que ia ser chamado de Viena de Áustria. Ao mesmo tempo confirmou a regência nomeada por seu pai, concedeu amnistia geral aos portugueses e por último decretou a Carta Constitucional,1 aprovando a reunião das Cortes e a nomeação dos pares Todas as nações da Europa aceitaram a resolução de D. Pedro, com exceção da Espanha que, inimiga das ideias liberais, tentou passar a regência do reino à Rainha D. Carlota e por sua morte ao infante D. Miguel, a quem só reconhecia o legítimo direito de sucessão ao trono de Portugal. Estas ideias políticas da corte de Madrid foram tomando incremento na Europa e, pouco depois, todas as nações reconheceram o direito em D. Miguel. Avisado D. Pedro do grande erro que ia cometer, nomeando seu irmão para a regência de Portugal, pouco se importou, e por Decreto de 3 de julho de 1827 nomeou-o regente do reino. Estava dado o passo principal para a cruenta guerra civil e esfacelamento de Portugal, formando um dos capítulos mais tristes e vergonhosos da historia portuguesa! A notícia da morte de D. João VI chegara à ilha Terceira no dia 15 de abril de 1826, procedendo-se imediatamente às cerimónias do estilo por parte das Câmaras e clero e as respetivas salvas em todas as fortalezas.
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Foi um profundo golpe que sofreu o partido constitucional, por ver terminada a época de tranquilidade para a ilha Terceira e o presságio de um novo governo para os realistas pela nomeação do infante D. Miguel para regente de Portugal, ele que se recusara obedecer a tudo o que fora decretado por seu irmão, procurando ao mesmo tempo inabilitar sua sobrinha ao trono para ser ele aclamado Rei. Por isso se procedeu com pouca animação ao juramento da Carta Constitucional no dia 21 de agosto de 1826, nas Câmaras da ilha Terceira, com assistência das três classes do estado. Governava ainda como capitão-general dos Açores o coronel e comendador Manuel Vieira Touvar de Albuquerque, varão de pouca ilustração, mas de nascimento ilustre, e que havia sido governador das capitanias do Espírito Santo e de Angola. Prudente no seu governo, mostrou-se ao princípio um acérrimo adversário do partido realista, onde se encontrava a maior parte da fidalguia de Angra. O seu palácio era apenas frequentado pelos constitucionais, os únicos depositários da sua estima e confiança: e tal fora o seu procedimento para com os realistas que, um grupo de três fidalgos distintos, João Pereira Forjaz Sarmento de Lacerda, Luís Meireles do Canto e José Teodósio de Bettencourt, se viu obrigado, deixando relações de família e de amigos, a ir queixar-se ao governo, em Lisboa, das injustiças e violências do general Touvar. Foi talvez com o fim de se vingar deste procedimento da fidalguia de Angra que o capitão-general mandou o corregedor João José Diogo da Fonseca, com o escrivão e tropa, dar busca rigorosa à casa de uma senhora ilustre D. Maria Cândida de Bettencourt, consorte de José Teodósio, que estava ausente, para ver se ali estavam alojados alguns realistas que perseguia. Com a mudança repentina da política portuguesa, começou Touvar a inclinar-se para o partido realista, até que se declarou adepto de D. Miguel, como legítimo Rei de Portugal, caindo no desagrado e indignação dos constitucionais. Para prevenir quaisquer tentativas dos seus novos inimigos, reforçou o tropa com duas companhias de caçadores, que mandou vir de São Miguel, e uma outra do Faial, privando do comando o tenente-coronel Francisco de Magalhães Peixoto, que lhe era adverso. O pequeno partido constitucional de Angra não desanimou perante a atitude do general Touvar e na sombra ia preparando a revolução, que tão funesta se tornou para a ilha Terceira. Os principais caudilhos deste movimento liberal, foram: o advogado Manuel Joaquim Nogueira, o vigário geral João José da Cunha Ferraz, o capitão Luís Manuel de Morais Rego, o major Joaquim de Freitas Aragão e o capitão José Quintino Dias, tendo como chefes dois mancebos ilustres e ricos, o tenente-coronel de milícias Pedro Homem da Costa Noronha, a que depois se uniu seu irmão Manuel Homem da Costa
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Noronha, e seu primo o capitão de milícias Teotónio de Ornelas Bruges e Ávila, depois Visconde de Bruges e por último 1.° Conde da Praia da Vitória, senhor da maior casa vinculada da ilha Terceira e que deixara de ser tutelado por sua mãe D. Rita Pulquéria de Montojos. As sessões deste grupo de conspiradores tinham lugar na casa de Teotónio de Ornelas, e de todas estas operações clandestinas teve conhecimento o general Touvar. Os caçadores do Batalhão n.° 5 que estacionavam em Angra, influenciados pelos sargentos, começavam também por insultar os realistas, sem que o capitão-general procurasse dar providências, respondendo sempre aos seus conselheiros «que tudo sabia, mas que nada temia». Contentou-se unicamente em mandar para a Vila da Praia o capitão Luís Manuel de Morais Rego, em cujo quartel se celebravam também sessões secretas. Já corriam as vozes assustadoras de uma revolta, quando chegou a notícia oficial de ter o infante D. Miguel chegado a Lisboa e tomado conta da regência do reino. Todos quiseram assinalar o seu contentamento, porém uns eram sinceros e outros fingidos. O general Touvar mandou fazer na frente do seu palácio uma vistosa iluminação, onde se liam versos alusivos ao jubiloso assunto. Os realistas, entre os quais estavam os cavalheiros Luís Pacheco de Lima e seus filhos, saíram de noite pelas ruas da cidade com músicas, dando vivas a D. Miguel. Os constitucionais, à frente dos quais estava o seu chefe Teotónio de Ornelas, saíram também com outra música, cantando os hinos constitucionais; porém, vendo estes que o povo seguia os primeiros e se tornava quase indiferente na sua presença, resolveram sair na noite seguinte, apresentando-se todos como uniforme de casaca preta, calças brancos e lenços brancos sobre o ombro direito, o que irritou bastante o partido realista. Pouco depois foram apedrejadas as casas do ministro da polícia, aparecendo um boneco, com o mesmo uniforme da polícia, pendurado na forca, atribuindo-se este atentado aos realistas e estes aos constitucionais. Por diferentes vezes esteve para rebentar o vulcão revolucionário; e as ameaças foram altamente assustadoras no dia 25 de abril, dia memorável em Lisboa, em que o infante D. Miguel fora saudado como Rei de Portugal pela Câmara daquela cidade, que lhe dissera ser a vontade geral do povo português. É nesta situação que chegam os Decretos de 25 e 28 de abril e juntamente os papéis públicos que anunciavam a aclamação espontânea em diferentes partes do reino, mas não sancionada ainda pelos três estados, do novo Rei. Toda a ilha Terceira, exceto o partido constitucional, se encheu de vivo entusiasmo, e, sem refletir na situação em que estava, pretendeu seguir os exemplos da metrópole. Alguns cidadãos cordatos, que pesavam melhor a gravidade das circunstâncias, eram de parecer se esperasse a decisão da junta dos três estados, o que era até consentâneo com o espírito do referido Decreto de 15 de abril,
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ou, pelo menos, desse tempo a ser removido, como se esperava, o Batalhão de Caçadores n.° 5. Todavia cresceu o fervor geral, bem certos os terceirenses que, se iam desagradar a um pequeno partido, tinham o louvor do seu entusiasmo firmado no assentimento geral da nação portuguesa, não podendo fazer vulto ao pé duma grande soma uma pequeníssima parcela. A Câmara Municipal, nesta conjuntura, para evitar tumultos populares, preparava-se para dirigir convenientemente o espírito público, à imitação da de Lisboa. O general, já informado de tudo quanto ocorria, e depois de ouvir o comandante e oficiais de caçadores, que lhe afiançavam a subordinação da tropa, quis também conferenciar com a Câmara, que chamou ao seu palácio no dia 17 de maio de 1828, que era composta pelos vereadores João Sieuve de Seguier Camelo Borges, Egas Moniz Barreto do Couto, António Borges Fournier e procurador Francisco de Azevedo Cabral. Conformou-se o general Touvar com as ideias da Câmara, a qual convocou pelo seguinte edital, uma sessão para o dia seguinte pelas 10 horas da manhã: «Edital — O Presidente, Vereadores, e Procurador do concelho desta cidade de Angra, etc., etc. — Fazemos saber, que tendo esta Câmara de resolver negócios do Real serviço, e desejando proceder com a devida circunspeção e acerto; deliberámos tratar este negócio na presença das três classes de Cidadãos, pelo que, espera esta Câmara, que amanhã, pelas dez horas da manhã, se hajam de reunir na sala das vereações, para assim se tomarem as convenientes medidas: e para que assim conste, mandamos afixar o presente no lugar do estilo. — Câmara de Angra, 17 de maio de 1828. — Manuel José Borges da Costa, Escrivão Proprietário da Câmara o fiz escrever. — Lugar do selo. — Farinho — Sieuve de Seguier — Barreto — Borges — Cabral.» Apenas foram lidos, no dia seguinte, os Decretos e alguns papéis públicos sobre o importante assunto, o povo, reunido em grande número nos paços do concelho e na praça fronteira, soltou entusiásticos vivas a D. Miguel I, legítimo Rei de Portugal, não permitindo com o seu entusiasmo que a assembleia tomasse deliberação alguma, senão conformar-se plenamente com os desejos vivíssimos e espontânea aclamação do povo; e chegando a Câmara a uma janela do paço municipal, onde desenrolou a bandeira da cidade, deu vivas a D. Miguel, procedendo-se logo ao auto solene da aclamação, que todos, em grande número, assinaram. Eis o auto: «Auto de vereação de 18 de maio de 1828. — No ano do nascimento de nosso senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e vinte oito, aos dezoito dias do mês de maio do dito ano, nesta cidade de Angra da ilha Terceira, e na sala da Câmara da mesma cidade, onde se achavam juntos, em vereação extraordinária,
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o ministro doutor juiz de fora, presidente, vereadores, e procurador do concelho e mais oficiais da mesma Câmara, juntamente presentes as três classes dos cidadãos desta mesma cidade, também abaixo assinados, se procedeu pelo modo e maneira seguinte: — Nesta vereação, reunida em consequência da deliberação tomada no dia de ontem, em auto de vereação extraordinária, para deliberar sobre as medidas que convinha adotar-se para dirigir o espírito público dos habitantes desta cidade que, com o maior entusiasmo se dispunham a aclamar o senhor D. Miguel I como Rei absoluto de Portugal, Algarves e seus domínios, à imitação do que se tem praticado em muitas outras cidades do mesmo reino de Portugal, desde o dia 25 de abril próximo passado, aconteceu que, achando-se já reunida a referida Câmara para entrar na mencionada deliberação, os povos, que em grande número se achavam reunidos na praça pública onde existe o edifício do mesmo senado, unanimemente e sem esperar por tal deliberação, rompeu nos mais inflamados vivas ao senhor D. Miguel I, Rei absoluto de Portugal, Algarves e seus domínios, no que gostosamente apareceu conforme a mesma Câmara, a nobreza, clero e povo, que se achavam reunidos dentro do edifício, e que reconheceram ociosa semelhante deliberação, tornando-se portanto este auto de vereação em um verdadeiro auto de aclamação do referido senhor o muito alto e poderoso D. Miguel I Rei absoluto de Portugal, Algarves e seus domínios, pelo perfeito conhecimento que tem toda esta cidade e jurisdição de que ele é o nosso único e legítimo Rei natural, depois do falecimento de El-Rei o senhor D. João VI, de gloriosa memória. E logo na mesma vereação se deliberou se enviasse a Sua Majestade uma deputação composta de duas pessoas da nobreza desta leal cidade; e nomearam para este fim aos dois comendadores João Pereira Sarmento Forjaz de Lacerda e José Teodósio de Bettencourt, a quem se enviará cópia autêntica deste auto para lhes servir de procuração de tão honrosa comissão: — E logo. deu por findo este auto. E aparecendo a mesma Câmara nas janelas da sala da mesma Câmara para dar os competentes vivas de tão feliz acontecimento. — E assinaram o presente auto o sobredito presidente e mais oficiais da referida Câmara e pessoas presentes, perante mim Manuel José Borges da Costa, escrivão proprietário da Câmara que o escrevi. — Farinho — Sieuve de Seguier — Barreto — Borges Cabral — Cabral — José de Azevedo Leal, tesoureiro. — (Seguiram-se imensas assinaturas de pessoas de todas as classes e jerarquias).»
Entre tão vivo prazer e regozijo público, saiu a Câmara Municipal, com numeroso cortejo, a ir dar parte ao governador, o capitão-general Touvar, do inesperado sucesso, que ele ouviu com demonstrações de grande contentamento. Semelhante aclamação teve lugar nas Vilas da Praia e de São Sebastião. Continuaram por alguns dias as assinaturas do auto, assinando muitos párocos em nome dos respetivos povos, tornando-se notável nesta ocasião
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Agapito Pamplona Rodovalho em se recusar a assinar o auto, pelo que foi imediatamente preso. No meio deste entusiasmo sobressaíram os frades de São Francisco de Angra, que, das janelas do convento faziam fogo de alegria, chegando um deles, chamado frei José do Livramento, a pregar na praça da Câmara o sermão do enterro da Carta Constitucional. Poucos nomes apareceram do partido contrário, que via neste ato público um pretexto para a execução do seu projeto. Apenas assinaram o auto os seguintes constitucionais: bacharel José Jacinto Valente Farinho, juiz de fora e presidente da Câmara, o coronel de engenheiros José Rodrigo de Almeida e Alexandre Martins Pamplona. O governo geral e os tribunais não mudaram de formulário nos papéis oficiais, no que dizia respeito ao tratamento estabelecido daquele príncipe: esperavam, para efetuarem a mudança, que viesse a notícia da aclamação solene, do que já ninguém duvidava, pelos três estados do reino, para cujo tempo se destinavam grandes festejos públicos. O povo da Ribeirinha, obtida a necessária licença e guiado pelo seu vigário Manuel Correia, veia de noite à cidade, em marcha aux flambeaux, dar vivas e entoar singelos cantos em louvor do novo Rei, o que foi imitado pelos povos de algumas outras freguesias que, em várias semanas seguintes, vieram à cidade, ornados com ramos de oliveira e com os seus párocos à frente. Começaram desde então as manifestações do clero terceirense que, valendo-se do púlpito e do confessionário, incutiam no povo a sua adesão à causa de D. Miguel. Tornaram-se mais salientes nesta propaganda: o vigário da Ribeirinha, Padre Baião; o vigário das Lajes, José de Meneses; o das Quatro Ribeiras, José Narciso; o dos Altares, António Pedro; o das Doze Ribeiras, José Luís; e o do Cabo da Praia, Silvestre dos Santos. Vendo os constitucionais o incremento que tomavam, em toda a ilha, ideias miguelistas, resolveram abreviar a revolta. Nada mais se sabia na ilha Terceira do que se passava em Portugal; mas Touvar de Albuquerque, prevendo o grande movimento político que se ia operar e vendo que o Batalhão de Caçadores n.° 5, comandado pelo capitão José Quintino Dias, se mostrava sempre indiferente às manifestações do povo, principalmente às do dia 18 de maio, mandou prender o tenente-coronel de milícias Pedro Homem da Costa Noronha e seu irmão Manuel Homem, mandando-os para a Vila da Praia. Enviou para as outras ilhas os oficiais e soldados de Caçadores n.° 5 que se tinham mostrado mais desafetos no dia 18 de maio, mandando recolher os que tinham vindo de Lisboa: depôs o governador do Castelo de São Sebastião, Joaquim de Freitas Aragão, substituindo-o pelo capitão António Pacheco de Lima, seu afeiçoado, e mandou partir para a ilha de São Jorge o sargento Veríssimo José Fernandes, revolucionário exaltadíssimo.
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Ao mesmo tempo fez recolher ao Castelo de São João Baptista grande número de armas de fogo e munições; chamou a si as pessoas principais das freguesias rurais, entre elas Joaquim de Almeida Tavares, um dos maiores proprietários do Posto Santo, e João Moniz Corte-Real, que foi encarregado de dirigir as operações da força postada nas imediações do seu palácio. Tais foram as tardias medidas adotadas pelo general Touvar, para sufocar a revolução de 22 de junho de 1828.
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