Memória sobre a ilha Terceira/V/IV/VI
CAPÍTULO VI Continuação dos atos governativos da Junta. Vinda dos emigrados em auxílio da ilha Terceira. Primeiro bloqueio da ilha feito pelos ingleses. Preparativos de defesa. Segundo bloqueio dos miguelistas. Discórdia entre os membros da Junta e tentativas para a sua extinção. Prosseguiam as devassas em toda a ilha Terceira contra os guerrilhas que infestavam as diversas freguesias: aplicavam-se severos castigos aos indigitados como rebeldes, sucedendo muitas vezes pagar com a vida muitos inocentes, pelo espírito sanguinário e malvadez dos opressores; e por fim, incendiavam-se as casas onde se supunha ser o refúgio de um ou outro miguelista. Bem triste é esta página da história da ilha Terceira, onde tantos crimes se cometeram sob a bandeira da Liberdade, salpicado-a com manchas indeléveis de sangue terceirense! Não será horroroso ver-se, naquela época tão calamitosa para os Açores, ficarem famílias inteiras sem o seu chefe, sem o pão com que sustentar seus filhos, sem o lar com que os agasalhar?! Não será triste e bem triste que a Junta Provisória do Angra, devendo ser a primeira a impor-se pelos seus atos de humanidade e brandura, fosse ordenar que a soldadesca desenfreada percorresse toda a ilha em busca dos seus inimigos, que poucos existiam libertos, maltratando uns à ponta de baioneta e a outros que, para escaparem, andavam sofrendo a fome pelo interior dos matos, espancá-los cruelmente, para virem morrer desamparados nas enxergas dos hospitais?!
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O terror espalhara-se por todos, refugiando-se nos matos onde passavam necessidades famílias inteiras, à espera da hora em que a soldadesca os viesse procurar! Por indicação da Junta Provisória, reuniu-se a Câmara de Angra em vereação, no dia 13 de dezembro de 1828, para serem arrancadas do livro das atas as folhas que continham o auto de 18 de maio com as assinaturas, lavrando-se depois o seguinte auto: «No ano do nascimento de nosso senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e vinte oito, aos treze dias do mês de dezembro do dito ano, nesta cidade de Angra da ilha Terceira, e na sala da Câmara desta mesma cidade aonde se achavam juntos em vereação o juiz pela lei, presidente, vereadores e procurador do concelho, e mais oficiais da mesma Câmara, abaixo assinados, se procedeu a vereação do modo seguinte: — Recebeu-se nesta vereação uma portaria do secretário dos negócios internos, que determina a esta Câmara que, fazendo reunir em vereação dois escrivães do geral, arranque do livro dos acórdãos o auto rebelde de 18 de maio passado deste presente ano; e sendo logo chamados a esta vereação os escrivães do geral Mateus Francisco Parreira e Narciso Xavier de Brum, procedeu na forma abaixo declarada. — Sendo nesta mesma vereação presente o livro dos acórdãos que serviu até sete de outubro do presente ano, onde se acha exarado o sobredito auto rebelde do dia 18 de maio do presente ano, foi determinado pelo senado que em cumprimento da portaria do secretário dos negócios internos de treze do corrente, acima declarada, se arrancasse do mesmo livro o sobredito auto, com todas as assinaturas a ele anexas, e que decorrem de fl. 235v. até fl. 254 do sobredito livro; ficando desta maneira cumprida a dita portaria: em firmeza do que assinaram os sobreditos escrivães, perante mim Manuel José Borges da Costa, escrivão da Câmara o escrevi. — Narciso Xavier de Brum — Mateus Francisco Parreira.» Este acórdão compreendeu outros objetos, e foi assinado pelos vereadoras: Meneses, Carvalhal, Canto, Carvalho, mesteres António Caetano de Lima e Manuel Martins. Havia a Junta Provisória, por Decreto de 6 de dezembro, prorrogado por mais sessenta dias a suspensão do habeas corpus, o que mandara publicar em edital pelo intendente geral de polícia; e ordenar-lhe ao mesmo tempo que, no dia 10, fosse saber aos juízes dos limites, para o publicarem em suas jurisdições; pois que, constando terem os rebeldes feito mais estragos nas casas dos adeptos e defensores dos direitos da augusta soberana, tornar-se-ia necessário proceder nos lugares onde apareciam os estragos, o mesmo que se praticara na Terra-Chã, principiando o incêndio pelas casas mais importantes da povoação. Triste exemplo de uma política exaltada!
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A 9 de janeiro de 1829, enviava a Junta ao general Cabreira o seguinte ofício, visto terem sido infrutíferas as medidas tomadas até àquela data: «A Junta Provisória encarregada de manter a legítima autoridade da Rainha a senhora D. Maria II, manda, em nome da mesma augusta senhora, comunicar a V. Ex.ª para ter a devida execução, que atendendo a diversas circunstâncias, houve por bem determinar, em assento de hoje, que nas casas nobres em que forem achadas armas ou munições de guerra, se pratique a mesma medida que se estabeleceu para as demais em idênticas circunstâncias, com a modificação porém que nas grandes propriedades onde se acharem aqueles indícios de rebeldia, será somente destruída a própria casa em que estiverem depositadas as ditas munições, queimando-se-lhes todas as portas e madeiras, assim de sobrados como de armazéns, depois de arrancadas, para que fique ileso o resto do edifício. — Igualmente manda a Junta participar a V. Ex.ª que tem ordenado que aqueles do povo que forem apanhados em atos de rebeldia, e que contudo não forem chefes de rebelião, desertores, ou apreendidos com armas na mão, sejam punidos com trezentas varadas, pela mesma tropa que fizer a apreensão, ficando logo soltos, devendo contudo os comandantes dos destacamentos dar primeiramente parte circunstanciada a V. Ex.ª para poderem dar à execução este castigo. — Finalmente ordena a Junta Provisória que V. Ex.ª faça expedir as ordens necessárias a todos os comandantes de destacamentos para que fuzilem, logo que se encontrem, os rebeldes de primeira cabeça, e desertores de 1.ª e 2.ª linha constantes da relação junta, e em geral todos aqueles que forem encontrados com as armas na mão, devendo somente conduzir presos aqueles que na mesma relação vão designados. — Deus Guarde a V. Ex.ª — Secretaria da repartição da guerra, em Angra, 9 de janeiro de 1829. — Teotónio de Ornelas Bruges Ávila. — Ill.º e Ex.º Sr. Diocleciano Leão Cabreira.» «Para serem fuzilados logo que se apanhem: — João Moniz Corte-Real, Joaquim de Almeida Tavares, Mateus Pamplona Machado, João Moniz de Sá, Estáquio Francisco de Andrade, o ex-sargento de artilharia João José de Melo, todos os desertores de artilharia e caçadores, todos os milicianos e paisanos encontrados com armas na mão.» A este ofício seguiu-se outro de 12 do mesmo mês, adicionando mais os nomes de João Cabral de Melo e o guerrilha conhecido pelo alcunha de «Boi Negro». Apesar destas medidas rigorosas, nunca foi possível efetuar-se a prisão dos dois chefes, João Moniz e Almeida. Tentou o primeiro construir um barco
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no lugar da Matela, para fugir pelo porto das Cinco Ribeiras, mas vendo que fora descoberto e incendiado pelos liberais o único refúgio de que podia dispor, resolveu, confiado na amizade de dois amigos que militavam no partido constitucional, fugir pelo porto de Angra, disfarçado em marujo de um navio inglês, que o levou. Igual destino e por semelhantes meios tiveram: Joaquim de Almeida, Mateus Pamplona Corte-Real e Estáquio Francisco de Andrade. Passou a Junta, por Decreto do dia 15, a criar em Angra uma Relação, para conhecer provisoriamente dos agravos e apelações, tanto cíveis como crimes, para a pronta decisão dos litígios e execução das leis, suspendendo a Junta de Justiça Criminal, criada por Alvará de novembro de 1810, enquanto persistisse a mesma Relação. Publicou depois uma proclamação, no dia 20, determinando que todo o indivíduo que ocultasse qualquer dos réus de alta traição, já declarados em edital, e os não prendesse ou entregasse à prisão, seria ele, ou o chefe de família, reputado como criminoso de alta traição e irremissivelmente fuzilado. Os míseros preses que havia longo tempo gemiam enclausurados na Casa da Pólvora, onde pensavam acabar os seus dias, tiveram finalmente inesperada mudança de sorte. Os eclesiásticos passaram para os cárceres do convento de São Francisco e depois para as cadeias da cidade, para onde também foram alguns paisanos de menor condição; todos os mais, de ilustre jerarquiia e representação, foram mandados sair prontamente para Inglaterra, com passaportes, nos navios ingleses que tinham vindo à fruta. Ao mesmo tempo que estes saiam para fora dos seus lares, entravam novos reforços de Inglaterra, mandados pelo Marquês de Palmela. O grande número de emigrados portugueses, de diversas classes, que passaram à Inglaterra e se reuniram no depósito de Plymouth, encontraram ali poderosos auxílios, recebendo todos os seus soldos e ordenados, exceto os académicos e os voluntários. O Visconde de Itabayana, ministro diplomático do Brasil em Londres, de acordo com o Marquês de Palmela, pôs arbitrariamente à sua disposição todo o dinheiro que a legação brasileira devia entregar ao embaixador português daquela corte, em cumprimento do obrigações contraídas pelo tratado de independência de 20 de agosto de 1825 e que Portugal destinara ao pagamento dos dividendos e amortização do empréstimo realizado em 1823. Com aquele dinheiro pôde o Marquês de Palmela transportar a maior parte dos emigrados e igualmente armas, artilharia e munições de guerra, saindo-se do grave embaraço em que se vira, com a exigência do Duque de Wellington, então ministro, para a dissolução do depósito de Plymouth, por assim não permitirem o leis expressas do país, maiormente em aspeto ameaçador e de hostilidade contra Portugal. A jovem Rainha D. Maria II, saindo do Rio de Janeiro a 5 de julho de 1828, com destino a Viena de Áustria, chegou a Gibraltar a 2 de setembro;
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e, sabendo ali que fora aclamado Rei de Portugal seu tio D. Miguel, dirigiu-se a Inglaterra, chegando a Fallmouth a 24 e a Londres a 6 de outubro, guiada pelo Conde de Barbacena. Achava-se doente o Rei Jorge IV; e só no dia 22 de dezembro é que pôde receber D. Maria II no seu palácio de Windsor, com todas as atenções e honras. O Marquês de Palmela pôde então obter da jovem soberana a sua nomeação de ministro, sendo o Decreto referendado pelo referido Conde de Barbacena. Solícito em mandar reforços militares para a ilha Terceira, em auxílio dos seus defensores comprometidos, fez sair de Plymouth o general Saldanha, com uma expedição de quatro transportes, com seiscentas e quatro praças de Infantaria n.° 18 e de caçadores, além de muitos oficiais, quase todos de artilharia; ordenando-lhe que, quando não pudesse entrar na Terceira, seguisse viagem para o Rio de Janeiro. Tinha já nesse tempo o depósito de Plymouth 8127 indivíduos, por se haverem unido os 2386 vindos pela Corunha e Ferrol, os que chegaram da Madeira e os que continuavam a ir de Portugal. No dia 6 de janeiro de 1829, saía de Inglaterra a expedição sob o comando de Saldanha, chegando à Vila da Praia no dia 16. Neste tempo cruzavam os mares da ilha Terceira, em rigoroso bloqueio, duas fragatas inglesas, a Ranger e a Nimrod, sob o comando do capitão Walpole, desde os fins do ano de 1828. Próximo da costa da Terceira, encontrou Saldanha os navios do bloqueio, estabelecendo-se entre os dois comandantes a seguinte correspondência: «Navio de S. M. britânica Ranger, em frente do porto da Praia, 16 de janeiro de 1829. — Senhor: — Peço-vos que me informeis qual é o objeto da vossa presença aqui com a força sob o vosso comando. — Tenho etc… — William Walpole. — Ao Conde de Saldanha.» «A bordo do Susan, 16 de janeiro de 1829. — Senhor: — O objeto da minha presença aqui é executar as ordens de S. M. a Rainha de Portugal, que me determina que conduza à ilha Terceira, desarmados e sem aparência alguma hostil, os homens que estão a bordo dos quatro navios que se acham à vista, porque a ilha não deixou nunca de obedecer e reconhecer como sua legítima soberana, Sua Majestade Fidelíssima D. Maria II. Como súbdito e soldado fiel, julgo desnecessário assegurar-vos que estou decidido a cumprir o meu dever a todo risco. —Conde de Saldanha. — Ao capitão Walpole.» «Navio de S. M. britânica Ranger em frente do porto do Praia, 16 de janeiro de 1829. —Senhor: — Acuso a receção da vossa carta datada de
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hoje e informo-vos que eu tenho igualmente que executar um dever imperioso, pois que, em cumprimento das instruções do meu governo, não posso consentir que vós ou qualquer parte da força do vosso comando desembarque aqui, ou em alguma das Ilhas Ocidentais ou dos Açores. Desejarei, portanto, que não tenteis o desembarque, porque serei obrigado a usar da força de que disponho para o impedir; não devereis por isso continuar nestes arredores depois desta notificação. Tenho etc… — William Walpole. — Ao Conde de Saldanha.» Depois da troca de outras cartas ente Walpole e Saldanha, tentou este último forçar o bloqueio inglês, sendo-lhe assestado um fogo vivo de bordo da fragata Ranger, produzindo alguns rombos no Susan, ficando morto um soldado e ferido um paisano. Em vista da resistência que encontrava e da falta de víveres, resolveu Saldanha voltar prontamente, depois de lavrar o seu protesto; e, em vez de seguir para o Rio de Janeiro, como lhe fora ordenado, seguiu para o norte, comboiado pelos navios ingleses até ao cabo Finisterra, de onde seguiu para Brest onde chegou no dia 30 de janeiro. O ministro de Carlos X, Hyde de Neuville, acolheu os emigrados benevolamente e mandou-lhes dar um subsídio mensal, para manterem a vida. O depósito de Plymouth assim se foi dissolvendo, indo muitos indivíduos, de diversas classes, para a Bélgica, estabelecendo-se em Ostende, e depois em Bruges, um outro depósito de portugueses. Não cessavam no entretanto de chegar novos socorros de Inglaterra à ilha Terceira; e, depois da primeira expedição saída de Plymouth, saíram mais alguns navios de Falmouth e do Havre, protegidos pela bandeira americana, conseguindo desembarcarem na Terceira trezentos e tantos homens. Antes da tentativa de Saldanha, já tinham desembarcado seiscentos a setecentos refugiados do Porto, desde 10 a 17 de fevereiro, com munições de guerra. Em 9 de fevereiro de 1829, entrou no porto de Angra outro transporte com emigrados, trazendo também algum dinheiro, de que havia falta extrema; e por isso se começava a fazer dinheiro de bronze fundido no Castelo de São João Baptista. Foram mandados despejar os conventos de São Francisco e de Santo António dos Capuchos, indo os seus religiosos residir na Vila da Praia, para darem lugar aos emigrados, muitos dos quais eram estudantes de Coimbra. Reclamaram os frades contra a ordem da Junta, respondendo-lhes o Dr. Ferraz: «que aquilo era castigo destinado pela Providência, pois desde que vira sair tanto fogo das janelas daquela casa, sempre calculou a sua transformação de casa de paz e de retiro em quartel de tropas». Eram excessivos os aboletamentos em casas particulares e tinham de chegar ainda, em grande número, emigrados militares e paisanos
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que se esperavam; por isso era forçoso desembaraçar aqueles conventos e o da Graça para os receberem. Suspenderam-se, por Decreto de 11 de fevereiro, as garantias individuais por mais dois meses, para os casos de rebelião e invasão, anunciando a Junta Provisória poder suspender e demitir os magistrados, juízes e empregados públicos, sem dependência das formalidades prescritas na Carta Constitucional, e continuarem em pleno vigor as ordens publicadas contra os rebeldes. Era um governo ultra-despótico e absoluto! No dia 15 apareceram três fragatas inglesas, havendo já retirado as duas primeiras, e colocaram-se em linha, defronte do porto de Angra, salvando a terra. Foi-lhes correspondida a salva, pela fortaleza de Santo António, e tendo desembarcado, de noite, os comandantes dos navios, para obstarem talvez a entrada de novos emigrados, demoraram-se mais do que esperavam; e, querendo voltar para bordo, foi-lhes proibido o embarque pela guarda do cais, resultando daqui uma larga altercação, até que por fim embarcaram, seguindo logo para São Miguel, onde se queixaram ao cônsul inglês. Depois de saber o mau resultado da tentativa de Saldanha, resolveu o governo britânico intimar os refugiados militares que estavam em Inglaterra a embarcarem imediatamente para o Brasil, em direitura, concedendo-lhes transportes, bem como aos paisanos; e que, destes, os casados que preferissem ir para a Terceira, se lhes facultasse embarque, por Decreto assinado por Stubbs1 em Plymouth a 23 de fevereiro de 1829. Entre os membros da Junta Provisória havia já gravíssima discórdia e desarmonia. Torres mostrava-se um grande sanguinário, contra a opinião de Cabreira e dos mais colegas. E vendo o brigadeiro que em nada o atendiam, resolveu largar a presidência do governo, no dia 5 de março, bem como o comando das armas, embarcando pouco depois para Londres. Substituiu-o na presidência seu irmão, o brigadeiro Sebastião Drago Valente Cabreira, e no comando das armas o coronel Filipe Tomás. Nos dias 7 e 8 de março, chegavam ao porto de Angra dois transportes trazendo, cada um, trezentos homens, entre oficiais e soldados. As freiras das Capuchas, no dia 9, foram transferidos para o convento de São Gonçalo, a fim de servir o seu mosteiro de aquartelamento da tropa. A falta de dinheiro, para o pagamento dos soldados e empregados públicos, era grande; e por isso, no dia 1.º de abril, procedeu a Junta a um empréstimo, ameaçando os que se escusassem de concorrer para as urgências do estado, fazendo distribuir a seguinte circular: «A Junta Provisória, encarregada de manter a legítima autoridade da Rainha a senhora D. Maria II, tendo sido obrigada a avultadíssimas despesas para sustentar a sagrada causa da legitimidade, não pode deixar de contrair
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um módico empréstimo para ocorrer aos pagamentos da tropa que defende a mesma legítima causa, por cuja razão, estando a Junta certa de que o reverendo António Joaquim de Macedo é dotado de sentimentos próprios de um cidadão benemérito, ao mesmo tempo que possui, como é notório, meios de concorrer para esta urgência, tem sido portanto contemplado com a quantia de um conto de réis, que é de esperar entregue na tesouraria para lhe ser pago logo que cheguem os socorros pecuniários que a todos os momentos se esperam, ou mesmo já em letras passadas para Londres sobre o excelentíssimo Marquês de Palmela, ministro de Estado de Sua Majestade Fidelíssima. — Parece escusado ponderar ao dito reverendo padre que a Junta só deseja empregar meios brandos e suaves para obter os fins a que se propõe, e que só usará do rigor que a suprema Lei da necessidade ditar quando algum se esquecer de que é do dever de todo o cidadão concorrer para as urgências do estado conforme suas forças, e que por consequência, procurando eximir-se desta importante obrigação, não só se torna inútil e pesado à sociedade, mas prova que é inimigo da pátria quem não socorre podendo, e digno como tal de ser banido dela, para exemplo dos demais. — Secretaria da repartição de fazenda, em Angra, 1.° de abril de 1829. — Pedro Homem da Costa Noronha.» Nos dias 9 e 10, chegaram mais três navios carregados de tropa e de paisanos vindos de Inglaterra; e por eles se soube da esquadra que se preparava no Tejo com destino à ilha Terceira. Tomaram-se logo as convenientes medidas de defesa e criou-se um lugar de chefe de polícia, para o qual foi nomeado o coronel Pedro de Sousa Canavarro. Tornavam-se excessivas e extraordinárias, de dia para dia, as despesas com o grande número de oficiais, empregados públicos e subsídios aos demais emigrados; e os cofres estavam esgotados. Nesta apertadíssima situação, mandou a Junta Provisória, a 12 de abril, circular o papel moeda que existia nos cofres da antiga Junta da Fazenda, e criou outras cédulas de meia moeda e de quartinho, por existirem só de uma. Os sinos das igrejas foram mandados para o Castelo de São João Baptista, onde se estabeleceu uma casa da moeda mas não havendo cunhos nem abridores nem máquinas e utensílios próprios para se cunhar, fundiram-se os ditos sinos, reduzindo-se a moedas pequenas de oitenta réis, elevadas depois a cem réis cada uma, recurso que em tão apertadas circunstâncias foi de grande utilidade pública. Era moeda excessivamente tosca e grosseira, mas de conveniente emissão e giro, facilitando os pagamentos e a compra dos géneros necessários para a vida. Foi nomeado provedor da casa da moeda Teotónio de Ornelas Bruges Ávila.
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Todos os cuidados da Junta eram tomar inconquistável a ilha Terceira. Desde a infrutífera expedição de Saldanha, até aos fins de março de 1829, mais de mil homens tinham desembarcado na ilha Terceira, sendo os voluntários da Rainha os primeiros a porem o pé em terra. Este corpo tinha sido formado em Plymouth com todas as praças dos diferentes batalhões de voluntários, que se pronunciaram pela revolução do Porto, inclusive os voluntários académicos de Coimbra que, por algum tempo, formaram a 1.° companhia daquele batalhão. Armou-se um corpo unicamente de oficiais para servirem como soldados; tantos eram os que haviam afluído. Pouco antes se havia formado também uma companhia de cavalaria. Fez-se um grande recrutamento para completar o batalhão de artilharia, cuidando-se desveladamente na fortificação dos pontos principais. Mandou-se cozer noventa moios de trigo em bolacha e recolher-se na fortaleza de São João Baptista; e, como se notasse a falta de dinheiro em quantidade suficiente para as despesas, cedeu o secretário da repartição da guerra, Teotónio de Ornelas, os seus vencimentos respetivos e suspenderam-se as gratificações dos oficiais às ordens. Deu-se uma nova forma ao plano de defesa da ilha. O Batalhão de Caçadores n.° 5 ficou pertencendo à guarnição do Castelo de São João Baptista, enquanto que ao Batalhão de Voluntários foi ordenado o exercício no manejo da arma de caçadores, para ficar de guarnição e defesa da vasta baía da Vila da Praia; e as diferentes praças que haviam chegado à Terceira formaram o chamado Batalhão Provisório, que ficou na cidade como reserva, e que, pouco depois, por novos recrutamentos, passou a formar um regimento, que, nos fins do mês de julho, contava já cerca de seiscentos homens. Aprontou-se a artilharia de bater, com o que se guarneceu o Porto Judeu, Porto Martins e Vila da Praia; e aos soldados de cavalaria foi encarregado o serviço de postos militares entre os diferentes pontos da ilha. Dividiu-se toda a ilha Terceira em oito distritos militares; aprontou-se a Estrada Real n.° 3 e os ramais que partem da Estrada Real n.° 1 para a Agualva, Vila Nova e fortes de São Sebastião. O comando da força armada foi dado ao coronel António Pedro de Brito; organizou-se meia brigada de artilharia montada; e, das chamadas companhias de artilharia da costa, tiraram-se duas de artilheiros sapadores para os diferentes fortes da ilha Terceira. Em sessão de 6 de maio, João José da Cunha Ferraz, que presidia à Junta, expôs ser o governo caluniado de haver dado ordem para se desarmar o batalhão de voluntários destacado na Vila da Praia, com o fim de aclamar-se Rainha absoluta a excelsa soberana; que era urgente indagar-se a origem de tão falsos e funestos boatos, para serem os autores e cúmplices punidos como cabeças de motim; e propôs se mandasse àquela Vila o desembargador Luís Ribeiro de Sousa Saraiva, encarregado daquela diligência; e que todas as deliberações da Junta fossem, daí em diante, impressas
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para chegarem ao conhecimento do público, o que foi plenamente aprovado. O referido desembargador escusou-se, e por isso foi dada a diligência ao corregedor da comarca. Na sessão de 8 do mesmo mês, fundando-se no artigo 98.° da Carta Constitucional, deliberou a Junta que, em todos os diplomas e onde se ordenasse em seu nome, se adotasse o título seguinte: «Manda a Junta Provisória em nome da Rainha a senhora D. Maria II». Continuava a discórdia entre os membros da Junta. Ferraz, a quem já não agradavam os excessivos rigores dos seus colegas, propôs, em sessão de 8 de maio e lida no dia seguinte, referindo-se à legislação pátria, para ninguém ser sentenciado senão por autoridade competente, nem ser preso sem ordem por escrito; e requereu: — 1.° se observasse rigorosamente a Carta Constitucional, com a única exceção dos casos de rebelião e alta traição; — 2.° que se não castigasse pessoa alguma sem ser ouvida e convencida no juízo do seu foro, ficando por conseguinte suspensas as varadas; — 3.° que os presos, em flagrante ou não, fossem imediatamente levados às autoridades civis ou militares, com responsabilidade por qualquer abuso, não devendo deter-se presos no castelo e prisões militares, como nas cadeias, paisanos ou militares por mais tempo do que a lei ordena. — Foi aprovada a proposta, exceto na suspensão das varadas, dizendo-se ser castigo que por «comiseração e indulgência» o governo mandara aplicar aos guerrilhas. De todos os membros da Junta o que mais combatia Ferraz era o coronel Torres, que queria ter a preponderância em todas as deliberações; e por si mandou executar, no dia 21, a sentença de pena de morte aos réus Feliz Maurício, Manuel Jacinto e Luís Pinto da Costa, apesar de se lhe oporem os seus colegas Ferraz e Pamplona. Nas sessões seguintes continuaram os debates entre Torres e Ferraz, chegando este último a dizer: «Eu já vejo o principio da anarquia, ou o despotismo a semear a discórdia entre o governo: é necessário união real e não vocal para resistir a nossos inimigos e vamos a dar providencias enérgicas». Na noite de 28 de maio foi acometido, por três indivíduos embuçados, o secretário dos negócios internos Alexandre Martins Pamplona, que se dirigia a cavalo para sua casa com um seu criado: meteram-lhe um estoque de ferro no peito; mas valeu-lhe ter resvalado o ferro por cima dos ossos, ficando gravemente ferido. Em uma das noites antecedentes havia também Cunha Ferraz, um outro membro da Junta, escapado milagrosamente a um outro atentado. Todos atribuíram estes horrorosos atentados aos facciosos de Torres, ou antes a influência sua direta: indícios veementes o culparam e as indagações da autoridade competente não deixaram dúvida a esse respeito. No dia 1.° de junho mandou-se cumprir a sentença da comissão militar que condenara a pena última os réus António José Coelho e Francisco de
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Paula, por motivo das discórdias civis caracterizadas de rebelião; e declarou-se, sob proposta de Torres, que a suspensão do habeas corpus durasse por tempo de cem dias, contados de 3 de abril último. A 27 de fevereiro de 1829, tinha sido ordenado pelo Governo de D. Miguel, em Lisboa, um bloqueio rigoroso à ilha Terceira, pelo que retiraram os navios ingleses, declarando-se logo a Inglaterra neutral, chegando depois a ser reclamado pela Câmara dos Lordes o ato arbitrário do aprisionamento de alguns navios britânicos pelos do bloqueio, que era feito pela fragata Diana, corveta Lealdade e a nau D. João VI. A 6 de junho, um iate com bandeira americana, rompendo o bloqueio português, foi fundear na baía do Fanal; e, sobrevindo durante a noite uma espessa neblina, os escaleres da nau o vieram tirar daquele lugar, desaparecendo no dia seguinte. Eram vários os juízos acerca de um tal sucesso: uns atribuíam-no a casualidade; outros, a projetos ardilosos clandestinos, fazendo-se espalhar que os membros da Junta eram traidores e que, depois de tentarem o assassinato do Dr. Ferraz e Pamplona, queriam entregar a ilha Terceira ao comandante do bloqueio. Cabreira, em sessão de 9 disse: «que, tendo aleivosamente entrado em um dos portos desta ilha uma embarcação, com bandeira dos Estados Unidos da América, e tendo saltado em terra o seu capitão, que, acompanhado do cônsul dessa nação, o acreditara perante as autoridades por um navio mercante dela; e, tendo-se depois visto que esta mesma embarcação, na madrugada seguinte, se reunira à nau do usurpador que bloqueia este porto, proponho e requeiro que se expeçam as mais terminantes ordens ao corregedor para que, tomando sobre este grave assunto, aquele conhecimento que as leis determinam, o remeta a este governo sem perda de tempo, para se dirigir a Sua Majestade». O comandante que estava na Praia à frente do Batalhão de Voluntários, Manuel Joaquim de Meneses, não duvidando da probidade dos membros da Junta Provisória, mandou à cidade o major Passos a indagar do que havia. Nesta ocasião entrava na Praia Simão José da Luz Soriano, um dos mais distintos voluntários académicos, certificando ao comandante a falsidade de tais boatos que espalhara o seu colega Manuel Anacleto do Vale. Ao retirar-se Soriano para a cidade, ia sendo vítima de um assassinato no lugar do Pico do Celeiro, por alguns académicos capitaneados por António da Costa Paiva (depois barão do Castelo de Paiva) para se vingarem do malogro da sua revolta. Soube-se depois que o iate fora mandado de propósito com uma carta de D. Miguel para a Junta Provisória, com intuitos pacíficos e conciliáveis, cuja copia reproduzimos, sem que a data seja bem precisa (a data é de 9, 11 ou 13 de fevereiro):
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«Presidente e mais membros do governo de Angra. — Eu El-Rei vos envio muito saudar. —Achando-me na posse dos inauferíveis e incontestáveis direitos que me assistem ao Trono de meus maiores, ao qual subi com unânime aclamação e regozijo dos povos destes meus reinos, é com a maior mágoa que vejo uma parte dos meus domínios dissidente de tão justa como sagrada causa; porém, escutando sempre as vozes da clemência, que bradam ao meu paternal coração mais fortemente que os da rigorosa justiça, tenho determinado fazer-vos graça da garantia de vossas propriedades e produto dos empregos rendosos que tiverdes, quer civis quer militares; e vos afianço, debaixo à minha real palavra, que jamais acolherei em minha real mente que fora e medo, mas sim o exato conhecimento dos vossos deveres e sincero arrependimento quem vos restituiu ao caminho da honra e lealdade portuguesa; e vos recomendo que, enquanto as minhas tropas leais não tomarem posse dessa ilha, continueis a governar, praticando os mesmos atos que até aqui tendes exercido, o que tudo darei por bem feito. — Dada no Palácio da Ajuda, aos ... fevereiro à 1829. — (assinado) Rei Miguel I.» Era extraordinária a discórdia entre os membros da Junta Provisória; discórdia que se estendera, por enredos malévolos, aos dois corpos de confiança, o batalhão de caçadores de Angra e o regimento de voluntários da Praia, entre os quais havia já completa desarmonia. Sobressaíram nesta desarmonia os voluntários académicos, o que obrigou a Junta a separá-los do Batalhão de Voluntários e mandá-los para a freguesia dos Biscoitos, com a denominação de Companhia de Artilheiros Académicos de Coimbra.
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