Memórias Póstumas de Brás Cubas/LVII

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CAPITULO LVII

 
Destino
 

Sim, senhor, amavamos. Agora, que todas as leis sociaes nol-o impediam, agora é que nos amavamos devéras. Achavamo-nos jungidos um ao outro, como as duas almas que o poeta encontrou no Purgatorio:

Di pari, come buoi, che vanno a giogo;

e digo mal, comparando-nos a bois, porque nós eramos outra especie de animal menos tardo, mais velhaco e lascivo. Eis-nos a caminhar sem saber até onde, nem porque estradas escusas; problema que me assustou, durante algumas semanas, mas cuja solução entreguei ao destino. Pobre Destino! Onde andarás agora, grande procurador dos negocios humanos? Talvez estejas a criar pelle nova, outra cara, outras maneiras, outro nome, e não é impossivel que... Já me não lembra onde estava... Ah! nas estradas escusas. Disse eu commigo que já agora seria o que Deus quisesse. Era a nossa sorte amar-nos; se assim não fora, como explicariamos a valsa e o resto? Virgilia pensava a mesma cousa. Um dia, depois de me confessar que tinha momentos de remorsos, como eu lhe dissesse que, se tinha remorsos, é porque me não tinha amor, Virgilia cingiu-me com os seus magnificos braços, murmurando:

— Amo-te, é a vontade do céu.

E esta palavra não vinha á toa; Virgilia era um pouco religiosa. Não ouvia missa aos domingos, é verdade, e creio até que só ia ás igrejas em dia de festa, e quando havia logar vago em alguma tribuna. Mas rezava todas as noites, com fervor, ou, pelo menos, com somno. Tinha medo ás trovoadas; nessas occasiões, tapava os ouvidos, e resmoneava todas as orações do catecismo. Na alcova della havia um oratoriosinho de jacarandá, obra de talha, de tres palmos de altura, com tres imagens dentro; mas não falava delle ás amigas; ao contrario, taxava de beatas as que eram só religiosas. Algum tempo desconfiei que havia nella certo vexame de crer, e que a sua religião era uma especie de camisa de flanella, preservativa e clandestina; mas evidentemente era engano meu.