Memórias Póstumas de Brás Cubas/LXXXI

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CAPITULO LXXXI

 
A reconciliação
 

E comtudo, ao sair de lá, tive umas sombras de duvida; cogitei se não ia expor insanamente a reputação de Virgilia, se não haveria outro meio razoavel de combinar o Estado e a Gamboa. Não achei nada. No dia seguinte, ao levantar-mo da cama, trazia o espirito feito e resoluto a aceitar a nomeação. Ao meio dia, veiu o creado dizer-me que estava na sala uma senhora, coberta com um véo. Corro; era minha irmã Sabina.

— Isto não pode continuar assim, disse ella; é preciso que, de uma vez por todas, façamos as pazes. Nossa familia está acabando; não havemos de ficar como dous inimigos.

— Mas se eu não te peço outra cousa, mana! bradei eu estendendo-lhe os braços.

E sentei-a ao pé de mim, e falei-lhe do marido, da filha, dos negocios, de tudo. Tudo ia bem; a filha estava linda como os amores. O marido viria mostrar-m’a, se eu consentissse.

— Ora essa! irei eu mesmo vel-a.

— Sim?

— Palavra.

— Tanto melhor! respirou Sabina. É tempo de acabar com isto.

Achei-a mais gorda, e talvez mais moça. Parecia ter vinte annos, e contava mais de trinta. Graciosa, affavel, nenhum acanhamento, nenhum resentimento. Olhavamos um para o outro, com as mãos seguras, falando de tudo e de nada, como dous namorados. Era a minha infancia que resurgia, fresca, travessa e loura; os annos iam caindo, como as fileiras de cartas de jogar encurvadas, com que eu brincava em pequeno, e deixavam-me ver a nossa casa, a nossa familia, as nossas festas. Supportei a recordação com algum esforço; mas um barbeiro da visinhança lembrou-se de zangarrear na classica rabeca, e essa voz, — porque até então a recordação era muda, — essa voz do passado, fanhosa e saudosa, a tal ponto me commoveu, que...

Os olhos della estavam seccos. Sabina não herdára a flor amarella e morbida. Que importa? Era minha irmã, meu sangue, um pedaço de minha mãe, e eu disse-lh’o com ternura, com sinceridade... Subito, ouço bater á porta da sala; vou abrir; era um anjinho de cinco annos.

— Entra, Sára, disse Sabina.

Era minha sobrinha. Apanhei-a do chão, beijei-a muitas vezes; a pequena, espantada, empurrava-me o hombro com a mãosinha, quebrando o corpo para descer... Nisto, apparece-me á porta um chapéu, e logo um homem, o Cotrim, nada menos que o Cotrim. Eu estava tão commovido, que deixei a filha e lancei-me aos braços do pae. Talvez essa effusão o desconcertou um pouco; é certo que me pareceu acanhado. Simples prologo. Dahi a pouco falavamos como bons amigos velhos. Nenhuma allusão ao passado, muitos planos de futuro, promessa de jantarmos em casa um do outro; e não deixei de dizer que essa troca de jantares podia ser que tivesse uma curta interrupção, por que eu andava com idéas de uma viagem ao norte. Sabina olhou para o Cotrim, o Cotrim para Sabina; ambos concordaram que essas idéas não tinham senso commum. Que diacho podia eu achar no norte? Pois não era na côrte, em plena côrte, que devia continuar a luzir, a metter n’um chinello os rapazes do tempo? Que, na verdade, nenhum havia que se me comparasse; elle, Cotrim, acompanhava-me de longe, e, não obstante uma briga ridicula, teve sempre interesse, orgulho, vaidade nos meus triumphos. Ouvia o que se dizia a meu respeito, nas ruas e nas salas; era um concerto de louvores e admirações. E deixa-se isso para ir passar alguns mezes na provincia, sem necessidade, sem motivo serio? A menos que não fosse politica...

— Justamente política, disse eu.

— Nem assim, replicou elle dahi a um instante — E depois de outro silencio: — Seja como for, venha jantar hoje comnosco.

— Certamente que vou; mas, amanhã ou depois, hão de vir jantar commigo.

— Não sei, não sei, objectou Sabina; casa de homem solteiro... Você precisa casar, mano. Tambem eu quero uma sobrinha, ouviu?

O Cotrim reprimiu-a com um gesto, que não entendi bem. Não importa; a reconciliação de uma familia vale bem um gesto enigmatico.